Mariam Chami (@mariamchami_), aos 32 anos, continua se deparando com o preconceito por ser uma muçulmana no Brasil. Mas, se antes ela se calava, a partir dos 25 anos começou a se posicionar. Mariam lembra da vez em que um cliente de sua antiga rede de sorveterias disse que não queria um “sorvete bomba” e ela retrucou: “isso não se diz, é falta de respeito e um tipo de intolerância religiosa”.
Com o intuito de desfazer preconceitos e responder a curiosidades sobre a sua religião, ela criou uma página no Instagram que hoje reúne mais de 1 milhão de seguidores. Lá, Mariam fala com humor, leveza e senso crítico sobre o seu dia a dia como muçulmana, mãe, filha, esposa e influenciadora.
Quem vê toda a sua desenvoltura nos vídeos, não imagina que ela já lidou com problemas de insegurança após sofrer bullying na adolescência. A internet, inclusive, fez parte do processo de reconstrução da sua autoestima. Hoje, Mariam se vê mais bonita do que aos 20 e se identifica com a opinião de que a beleza vem com a maturidade.
“A vida é muito curta para gente ficar se restringindo”
A influenciadora evita usar filtros em suas postagens já que, segundo ela, as pessoas estão ficando doentes ao se identificarem com essa ferramenta e não conseguirem mais aceitar a própria imagem. E, se na juventude ela não saía de casa sem maquiagem, hoje aparece tranquilamente em posts de cara lavada.
Mariam admite ainda ter algumas inseguranças, principalmente em relação à qualidade do seu trabalho, e diz que gostaria de ter uma rotina mais organizada. Na profissão, seu sonho é fazer sua mensagem chegar a ainda mais pessoas como apresentadora de algum programa.
A gravidez ajudou no processo de se aceitar e relaxar quanto à aparência. “Engordei 10 kg e demorei três anos para voltar ao meu peso. Se quero comer alguma coisa, eu como. A vida é muito curta para ficar se restringindo”, afirma. Sem fazer dietas mirabolantes nem academia, ela adquiriu novos cuidados, como skincare e massagem modeladora, após ter seu filho.
Mas nem tudo foram rosas na gravidez. “Até ele ter oito meses, eu chorava todos os dias. Tive apoio da família, mas não foi fácil”, diz ela, sobre a depressão pós-parto. “Acho que levei a maternidade de uma forma muito pesada no início. Pensava que minha vida tinha acabado, que nunca mais ia sair e me divertir”, conta. “Quando entendi que cada momento no crescimento do meu filho era único e eu precisava aproveitar isso, tudo ficou mais leve.”
“Eu brincava de ser apresentadora de programa de culinária na TV”
“Minha infância foi bem normal. Eu não usava lenço fora da escola, então, não tinha tanto essa questão do preconceito“, diz Mariam, que, ainda assim, lembra de ouvir coisas como: “Você não vai colocar isso na cabeça igual à sua mãe, né?”. Ela achava estranho que as pessoas falassem o que ela e a família deveriam ou não fazer.
O hijab, lenço com o qual as mulheres muçulmanas cobrem a cabeça, é opcional antes da menstruação. Mas, como estudava em uma escola islâmica, em São Paulo (SP) e via todo mundo de véu, Mariam escolheu usá-lo durante as aulas.
Competitiva, ela começou a jejuar no Ramadã aos seis anos para provar aos pais que também era capaz. Ao invés de ficar o dia inteiro sem comer, passava apenas algumas horas. “Nessa idade, não temos muitas responsabilidades religiosas, mas eu já gostava do islamismo e decorei algumas suratas [capítulos] do Alcorão nas aulas da escola”, conta.
Mariam adorava jogar futebol e brincava de ser apresentadora de TV de programa de culinária enquanto a mãe cozinhava, embrião de alguns dos vídeos que a tornaram famosa na internet anos depois.
“As pessoas olhavam para mim, cochichavam e riam”
Na adolescência, Mariam sofria bullying na escola por causa da sua aparência. “Eu era bem moleca. Nunca liguei para me arrumar, não fazia a sobrancelha por causa da religião e usava óculos”, diz ela, que não compartilhava a situação com ninguém. Mariam se fazia de forte, revidando os xingamentos, mas, por dentro, o bullying deixava um rastro de tristeza que a levou a desenvolver insegurança e baixa autoestima.
“Enquanto as meninas da minha idade menstruavam aos 11 anos e já tinham um corpo de mulher, eu só menstruei com 14”, conta. Mariam lembra bem do dia em que isso aconteceu: foi em uma ida ao banheiro antes da primeira oração do dia, às 5h. Segundo ela, a menstruação não é um tabu no islamismo. “Minha irmã brincava com o absorvente da minha mãe, que conversava sobre o assunto com a gente”, diz.
Ainda assim, ficou com vergonha de falar com o pai sobre o tema. Quando soube, ele a abraçou e disse que nada mudaria. Mas mudou: a partir dali, se tornava obrigatório o uso do hijab. “Eu sentia vergonha de usar porque as pessoas ficavam me olhando, cochichando e rindo”, diz Mariam, que lembra do dia em que a atendente de uma loja disse para ela tirar o véu, já que estava no Brasil. “Eu ficava sem reação, quieta.”
“Meu casamento foi arranjado pelo Mark Zuckerberg”
Mariam estudou nutrição em uma faculdade onde apenas ela e outra aluna usavam hijab. “Eu sentia muitos olhares. Nos primeiros dias, ninguém falou comigo, foi difícil”, conta ela, que, com o tempo, se adaptou e fez amizades. “Eu comecei a me colocar mais e meu colegas me respeitavam. Eles não insistiam para eu beber álcool ou ir para baladas”, diz.
Com o amadurecimento, Mariam passou a ligar menos para os olhares curiosos. Mas, apesar de participar de diversos processos seletivos, nunca foi contratada como nutricionista por puro preconceito. Uma vez, após ter sido aprovada para uma vaga e se desculpar por não poder cumprimentar o dono da empresa, já que esse contato físico não é permitido no islamismo, ouviu que ela não daria certo ali e foi dispensada.
O jeito foi trabalhar no restaurante dos pais. Em seguida, Mariam teve um “casamento arranjado por Mark Zuckerberg”, como gosta de brincar. “Conheci ele no Facebook. A irmã dele me seguia, ele me adicionou, começamos a conversar até que decidimos nos casar”, conta.
“As pessoas diziam que se inspiravam na segurança que eu transmitia”
Mariam se mudou para Santa Catarina, onde o marido vivia, e, lá, eles abriram uma rede de sorveterias. Em 2019, ela começou a postar tutoriais de maquiagem e respostas às curiosidades sobre a sua vida como muçulmana. “Eu gosto muito de falar sobre a minha religião e as pessoas me perguntavam sobre isso na rua, no mercado… Pensei que, criando conteúdo na internet, mais gente teria acesso”, explica. As postagens também foram importantes para ela se sentir menos sozinha após a mudança.
O trabalho ainda não dava dinheiro, mas exigia muito tempo e dedicação, que faziam falta na administração das sorveterias. Foi aí que ela teve que escolher entre os dois ofícios. No ano seguinte, engravidou e percebeu que o trabalho na internet era a melhor forma de conciliar a maternidade e resolveu apostar nas redes sociais
Se expor nas redes sociais também foi importante no processo de recuperação da autoestima. “As pessoas diziam que se inspiravam na segurança que eu transmitia. Eu não me enxergava daquele jeito, mas o olhar delas me ajudou a me sentir mais segura”, diz.
“Quando você está bem com você, tem mais escolhas”
Há dois anos, Mariam tem a internet como seu trabalho principal. Por lá, já ouviu críticas sobre a sua aparência. “No começo, as pessoas perguntavam: ‘por que você não faz uma cirurgia no seu nariz, botox, isso ou aquilo?’ Mas eu nunca fiz”, conta. “O mais louco é que agora elas falam que o meu nariz é bonito.”
O mesmo acontece com as sobrancelhas: antes apelidada de “taturana”, hoje elas também são elogiadas sem que nenhum fio tenha sido arrancado para isso. Para Mariam, o segredo é a autoconfiança. “É o famoso ‘carregar o look’: as pessoas acham bonito porque você está carregando aquilo em que você acredita”, diz.
A gravidez deixou estrias na barriga, afinadas após um tratamento. “Elas ainda estão lá, mas eu não me importo. São marcas do filho que eu gerei, do que aconteceu na minha vida e que me fez evoluir”, diz. A maior tranquilidade com a aparência, aliás, é um dos legados positivos da gravidez. “Quando você está bem com você, você tem mais escolhas, como, por exemplo, sair sem maquiagem na rua.”