“Calma”, eles dizem. Você engole ou sente que é só a faísca que faltava para o sangue ferver de vez? Quando é importante deixar a polidez de lado e falar o que sentimos, mesmo que possa ser desagradável? E mais: qual é o custo de manter a calma e o sorriso no rosto só para não desagradar os outros?
Segundo uma pesquisa conduzida pela psicóloga sul-africana Susan David, um terço das 70 mil pessoas entrevistadas disse se julgar por ter “emoções ruins”, como tristeza e raiva. “Emoções normais e naturais agora são vistas como boas ou más”, desabafou Susan no TED O dom e o poder da coragem emocional, onde ela explica que a “tirania da positividade” não é apenas cruel como também ineficaz.
São crescentes os estudos indicando que a vida fica melhor quando as pessoas aceitam sentimentos desagradáveis e os encaram em vez de tentar combatê-los. Segundo a especialista, abafar essas emoções dá ainda mais força a elas. A psicóloga defende abraçar e dar vazão aos sentimentos difíceis para ampliar a nossa capacidade de desenvolver competências para lidar com o mundo como ele é, e não como gostaríamos que fosse. “O desconforto é o preço da admissão a uma vida significativa”, diz.
“Uma resposta mais raivosa é importante para criar um escudo para agressividade do outro”
A obsessão social pela calma é uma reação compreensível à velocidade e ao estresse do mundo atual, acrescenta o psiquiatra Guilherme Spadini. O problema, segundo o professor da The School of Life, é nos apegarmos às “good vibes only” e desconsiderar as importantes funções de emoções desagradáveis como indicadoras de necessidades não atendidas, valores violados e limites ultrapassados. “Sem essas experiências, perderíamos oportunidades de crescimento, de sermos confrontados e desafiados a nos conhecer melhor e mudar.”
Quando mandar a calma para a PQP?
Sentimentos que frequentemente nos levam a estourar, como raiva, frustração, rejeição, inveja e impotência ativam a resposta de “luta ou fuga” do corpo, um mecanismo evolutivo que o prepara para enfrentar ou fugir de uma ameaça. “Isso inclui aumento da frequência cardíaca, respiração acelerada, tensão muscular e liberação de adrenalina”, elenca Guilherme.
Quando você está em uma situação que potencialmente te coloca em risco, pode ser a hora de deixar a calma de lado. “Quando estou sendo agredido, adotar uma postura passiva possivelmente vai me trazer prejuízos”, diz a psicóloga Danielle Rossini. “Em alguns momentos, uma resposta mais raivosa ou agressiva é importante para criar uma barreira, um escudo, para agressividade do outro.”
Mas nada de sair por aí xingando ou batendo nas pessoas. Segundo a especialista, ao fazer isso, você reduz a sua capacidade de elaborar o sentimento e acaba dominada por ele. Para não perder o réu primário nem fazer nada de que vá se arrepender depois, você pode expressar sua raiva falando sobre o seu incômodo com assertividade, adotando um tom de voz firme e uma postura corporal mais ativa, por exemplo.
Fugir da luta também pode – desde que você não reprima suas emoções. Expresse o seu incômodo, diga como se sente diante da agressão e assuma que prefere conversar em outro momento para não se machucar mais. Organizar os sentimentos antes de expressá-los é um recurso especialmente válido em relações de trabalho e para não desgastar outros tipos de relacionamento desnecessariamente.
“Falar o que se sente é a maior expressão de cuidado que podemos dedicar a nós mesmos”
Mas estourar em certas situações também é válido. Afinal, comunicar as nossas emoções de maneira autêntica é um princípio básico para construir relações mais profundas e significativas, defendem os especialistas. “A expressão espontânea pode ser catártica, genuína e, em alguns casos, necessária para romper barreiras de comunicação”, defende Guilherme. “Pode proporcionar alívio imediato de sentimentos reprimidos e, às vezes, é a única maneira de fazer com que sentimentos intensos sejam reconhecidos.”
Nos relacionamentos íntimos, isso pode funcionar como um sinal de alerta, mostrando a gravidade da situação e a necessidade de mudança para a outra pessoa. Ainda assim, defende o especialista, é importante tentar manter a empatia e o respeito para garantir que a mensagem seja recebida por seu interlocutor. Quanto ao momento certo de usar cada uma dessas abordagens, a resposta está na autoconsciência.
Quanto custa manter a calma a todo custo?
“Falar o que se sente é a maior expressão de cuidado que podemos dedicar a nós mesmos, sem sombra de dúvidas. É um dos maiores atributos da saúde física, psíquica e da qualidade de vida”, defende a psicóloga junguiana Eliane Luconi.
E não adianta esperar que alguém abra espaço para manifestar nossas emoções. “O direito de se expressar não vem de fora, ele é conquista do próprio indivíduo no contato profundo e contínuo consigo mesmo”, afirma. “Para isso não precisa violência e, sim, muito trabalho pessoal.”
A sociedade valoriza a imagem de alguém calmo e sorridente, mas manter essa fachada pode ser prejudicial
Guilherme lembra que a repressão contínua das emoções pode levar a sintomas mentais e físicos, como ansiedade, depressão, desconexão emocional (como frieza e cinismo), somatizações, além de um sentimento persistente de inautenticidade, solidão e desconexão.
“Muitas vezes, a sociedade valoriza a imagem de alguém que está sempre calmo e sorridente. No entanto, manter essa fachada pode ser exaustivo e prejudicial”, diz o psiquiatra. “É como usar uma máscara todos os dias, ignorando e escondendo a complexa gama de emoções que fazem parte da condição humana.”
O que fazer com as emoções difíceis?
Segundo os especialistas, o caminho é acessar e trabalhar as emoções conforme elas surgem, sem abafá-las. “Nossas emoções são dados. Elas contêm indícios daquilo que é importante para nós”, disse Susan em seu TED. E mais: “Debruce-se sobre eles, escrevendo, meditando, refletindo, falando e, é claro, através de sessões de psicoterapia”.
Ao elaborar nosso sentimento, perceber sua intensidade e procurar sua origem, muitas vezes podemos descobrir que o que queremos mandar para a PQP não é a calma, mas uma situação insustentável ou uma relação da qual queremos nos livrar. “Se tivermos esta consciência, do que realmente queremos dar fim, é possível até que mandemos essa coisa à PQP, mas de uma forma muito mais saudável”, indica Eliane.
Segundo a especialista, por maior que seja o conflito, o que nos mantém doentes ou saudáveis é a forma de lidar com ele: “É neste espaço que reside a liberdade, a resiliência, a saúde e o bem-estar”.