No último ano, trouxe aqui diversas reflexões sobre a forma como a gente lida com o trabalho. Falei sobre a importância do descanso, das empresas valorizarem autenticidade, do sonho da semana de 4 dias e dos perigos de acumular muitas tarefas, entre outros debates fundamentais para alcançarmos o real bem-estar na carreira. E o que eu quero é renovar com vocês o pacto de buscar alternativas para criarmos uma relação mais saudável com a nossa fonte de renda nos 365 dias que estão por vir. Afinal, trabalho é importante, mas é só uma parte da vida.
Trabalho é só um meio para se chegar a um fim, que deveria ser viver bem, feliz e saudável
Então, aproveito este momento de renovação para compartilhar algumas ideias corporativas que adoraria aposentar em 2023. São frases repetidas a todo momento que perpetuam uma ideia tóxica de trabalho e reflete diretamente na nossa saúde mental e física. Se a cultura de uma empresa é o conjunto de práticas que a gente vive e repete, mudar nosso repertório de jargões organizacionais pode ser um passo para mudar também a nossa realidade. Então vem comigo!
1. “Quem não é visto não é lembrado”
É o chamado viés de presença, que desgasta as pessoas física e emocionalmente. Fisicamente porque faz com que elas se forcem a trabalhar o máximo possível. Emocionalmente porque elas vivem com medo de sofrer represálias caso não ultrapassem o expediente ou optem pelo trabalho remoto. Mas o que pesa mais no fim das contas, o esforço ou a eficácia? A sugestão é colocar mais energia em métricas de entrega de valor, como conversão e vendas, ao invés de continuar propagando essa frase.
2. “Você precisa ter atitude de dono”
Bom, para ter esse comportamento, eu precisaria de todas as informações, autonomia e estrutura que o dono tem. Pode ser? Por mais que essa frase seja um pedido por mais iniciativa, protagonismo e afins, seu efeito prático é criar uma abstração grandiosa. Ela exige da gente um investimento de tempo e energia muito maior do que realmente nos cabe. E, no fim das contas, essas “atitudes de dono” envolvem principalmente autonomia no ambiente de trabalho. Então, o que a gente precisa mesmo é se libertar da lógica de comando e controle e criar um ambiente que estimule esse comportamento.
3. “Liderança tem que dar o exemplo”
Crianças até podem aprender pelo exemplo, mas com adultos o que funciona mesmo é testar e viver situações, errar e evoluir a partir dos seus próprios experimentos. Se você quer construir um modelo de liderança, o melhor é ser bem específico e usar exemplos tangíveis dos comportamentos esperados. Essa frase é especialmente perigosa para mulheres, porque a gente já se sente obrigada a cumprir um monte de papel idealizado com uma noção de “exemplo” embutida. Precisamos espalhar pelo mundo que lideranças são seres humanos vulneráveis como todos os outros. Cobrar perfeição não está nos levando a um lugar bom e não é uma ideia que inclui a liderança feminina.
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4. “Isso é questão de bom senso”
O que chamamos de bom senso, na verdade, é um conjunto de opiniões, pensamentos e valores de um indivíduo. Em um mundo com crenças tão diversas e conflitantes, essa frase cria um espectro enorme de possibilidades, afinal, o que é bom senso para mim, pode não ser para você. Categorizar as coisas dessa forma faz com que as pessoas vivam em um estado de tensão, questionando os próprios valores e inteligência por não atenderem o que o outro espera. Precisamos parar de usar conceitos abstratos e começar a estabelecer parâmetros mais concretos de trabalho através de conversas abertas sobre necessidades compartilhadas.
5. “Feedback é um presente”
Feedbacks já me fizeram questionar minha competência, minha capacidade, até minha personalidade. Muitas características que são cruciais para eu ser quem sou e chegar onde cheguei já foram vistas como coisas a serem “consertadas”, então o que outra pessoa percebe como um problema pode ser fundamental para a sua jornada. Feedback bom é feedback solicitado ou autorizado, não caia no papo que o outro sabe mais sobre você do que você mesma.
Não tem terapia que administre nossas emoções se nosso salário não proporciona condições dignas
6. “Temos um desafio para você”
Nem todo mundo quer ser desafiado. Cada pessoa tem seus desejos e motivações, e cabe à liderança entender e dialogar com essa pluralidade. Então, se a gente quer falar de inclusão, colaboração e autonomia, precisaremos também ter mais curiosidade sobre o que realmente instiga as pessoas a irem além – querer um sem fazer o outro, não dá.
7. “Saia da sua zona de conforto”
Em um país de condições tão desiguais quanto o nosso, chega a ser desonesto falar em zona de conforto como um ponto fácil de se alcançar. Mas, mesmo para quem é privilegiado, essa frase é um problema. Um levantamento mostra que o Brasil é o segundo país com mais casos de burnout do mundo. Isso é uma consequência dessa privação de conforto e da corrida sem fim para atingir metas megalomaníacas.
8. “Salário emocional”
Os boletos no fim do mês não aceitam salário emocional como pagamento, então a minha parte eu quero em dinheiro, obrigada. Ter um bom clima organizacional não deveria ser visto como um benefício, mas como padrão nas empresas. E não tem terapia que administre nossas emoções se nosso salário não proporciona condições dignas de vida. Quando a maioria não tem o básico, salário emocional só é entretenimento para quem já tem um bom dinheiro garantido.
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9. “É só se esforçar que você consegue”
Claro que a gente tem que fazer um mínimo de esforço na vida, senão possivelmente nada vai acontecer. Mas a essas alturas já podia estar claro que pessoas diferentes saem de lugares diferentes, e uns vão ter que se empenhar mais do que os outros. Nem todo mundo recebe as mesmas oportunidades ou pode se arriscar por sonhos. A gente pode e merece mais, mas essa noção de que só basta se esforçar é bem perigosa e pode nos levar a um lugar de exaustão, já que sempre parece que não estamos nos esforçando o suficiente.
10. “Seu propósito está no seu trabalho”
Trabalho é só trabalho: um meio para se chegar a um fim, que deveria ser viver bem, feliz e saudável. A lógica capitalista trouxe essa relação entre trabalho e propósito, mas é só observar como os povos originários abordam a existência de uma forma totalmente diferente. O seu propósito pode estar em outra coisa, ou talvez a vida nem tenha uma missão tão profunda assim. Às vezes existir, ser quem você é, já é suficiente.
Esse delírio faz muita gente cair em papo de coach charlatão, porque gera crise existencial em quem não vê significado no trabalho que está fazendo. Se (ou melhor, quando) a nossa relação com o trabalho mudar, ele pode ganhar outro significado e aí sim fazer parte de um propósito. Mas, por enquanto, podemos abandonar a frase de efeito.
Existem muitos outros jargões que precisam ser cancelados, mas esses são os que mais me incomodam. E você, tem uma listinha dessas?