Semana de 4 dias de trabalho é possível? - Mina
 
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Semana de 4 dias: utopia ou realidade?

Trabalhar demais não significa mais produtividade (ao contrário!). Já trabalhar menos aumenta nosso bem-estar, nosso foco e criatividade vai além. Algumas empresas perceberam isso e começaram a mudar a quantidade de dias úteis

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A redução da carga de trabalho é uma pauta tão urgente quanto antiga. Desde a segunda revolução industrial, a gente bate cabeça com um suposto dilema entre produtividade e bem-estar. Mas esse impasse não faz sentido. Todas as vezes que essa questão foi analisada, ao longo dos avanços na tecnologia e mudanças na sociedade, a conclusão foi que trabalhar menos faz todo mundo ganhar mais.

A semana de 4 dias já começou em algumas empresas pelo mundo

O exemplo que mais aparece ultimamente é o da Islândia, que, depois de 4 anos de testes, está com 86% da força de trabalho com jornada reduzida. Contudo, casos de sucesso podem ser encontrados no mundo todo. Do Japão – onde a Microsoft viu a produtividade aumentar 40% ao oferecer um fim de semana de 3 dias por mês – à cidade de Rio das Pedras, em São Paulo – onde a Solpack Agronet aumentou o número de funcionários e o maquinário graças ao crescimento de 25% na produção que obteve ao reduzir a carga horária.

Só que esse assunto não é novo: já na década de 1890, uma fundição de ferro de Manchester testou por um ano a redução de 54 para 48 horas por semana. Deu tão certo que o governo britânico acabou reduzindo o horário de uma fábrica em Londres também. Durante a 1a Guerra Mundial, os ingleses formaram uma comissão com médicos e acadêmicos, que também concluiu que a redução de horas tinha pouco ou nenhum efeito negativo na produção – e o pesquisador principal tinha trabalhado em uma fábrica de munições, justamente o produto mais requisitado naquele contexto.  

Mas alguma força continua barrando esse avanço – eu deixo pra vocês adivinharem qual é.

Série de matérias ao longo dos anos com empregadores dizendo que “ninguém quer mais trabalhar”

A coisa chegou num ponto que as pessoas estão simplesmente desencanando: no último ano, o grande assunto foi a  “grande renúncia” e, mais recentemente, só se fala em “quiet quitting”. Enquanto isso, em muitas empresas o burnout continua sendo tratado como frescura por quem está no comando e os funcionários ficam cada vez mais doentes, literalmente morrendo de tanto trabalhar. 

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Então, entre 2021 e 2022, o assunto reaqueceu. Empresas e governos começaram a testar o que obviamente funciona: 73 empresas inglesas estão em um teste-piloto pela iniciativa 4 Day Week Global e, agora em setembro, no meio do processo, um relatório revelou que 86% pretende seguir no formato; Canadá, EUA, Irlanda, Austrália e Nova Zelândia também embarcaram recentemente nesse projeto, feito em parceria com as universidades de Cambridge, Oxford e Boston College; Portugal regulamentou testes voluntários, a Espanha está negociando quando vai começar sua fase de testes, a Escócia irá iniciar um julgamento sobre o assunto ano que vem e o País de Gales também está considerando o debate.

Como está o cenário no Brasil?

No Brasil, ainda não há uma expectativa, pelo menos a médio prazo, para regulamentar a redução de jornada sem afetar a remuneração, nem de testes voluntários com algum respaldo legislativo ou jurídico. Mas, para não dizer que o tema nunca foi posto à mesa dos legisladores, existe uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que prevê a redução da jornada de trabalho. Em tramitação há 27 anos, a matéria já recebeu um abaixo-assinado em 2008, com 1,5 milhão de assinaturas das centrais sindicais, mas não avançou e nem existe previsão para ser colocada em votação no plenário da Câmara dos Deputados — apesar de ter concluído todos os trâmites dentro da casa, incluindo aprovação em comissões. 

A lei trabalhista determina apenas o máximo de horas a serem trabalhadas, não o mínimo

Mas aí entra uma questão importante. O governo não pode interferir ou proibir a redução de jornada e adoção da semana de 4 dias úteis, porque a lei trabalhista determina apenas o máximo de horas a serem trabalhadas (até 44 horas semanais), não o mínimo. Tanto que algumas empresas brasileiras estão testando por conta própria a redução, como é o caso da agência de comunicação Shoot (que também adota o modelo 100% remoto) e da empresa de inteligência de dados Crawly, que já está no regime de 4 dias desde 2018. Já a Zee Dog tornou a quarta-feira dia livre para a maior parte da equipe – só varejo e logística que ficaram de fora.

Em entrevista para o site Seu Dinheiro, Felipe Calbucci, diretor de vendas do Indeed Brasil, lembra que “geralmente, o movimento [para a mudança] vem primeiro, depois vem a legislação para se adequar. Então, se o movimento criar uma massa [de empresas adeptas à redução da jornada de trabalho], vai se fazer necessário um ajuste de lei para regulamentar [a semana de 4 dias úteis].”


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Então vamos fazer pressão?

Recentemente, conversei com Lucas Sctuch e Alberto Brandão, do perfil Startup da Real, sobre o famigerado quiet quitting, e uma das coisas sobre as quais falamos foi como as pessoas privilegiadas podem usar a posição de influência, para ajudar a pressionar esse tema a favor do coletivo. De qualquer maneira, o movimento já tem trabalhadores de todas as camadas sociais, que estão se articulando cada vez mais através de redes como o fórum Antiwork – e nós somos maioria: em uma pesquisa com mais de 8 mil profissionais da América Latina, 73% dos brasileiros disseram acreditar que seriam mais produtivos com uma semana de 4 dias.

Será que a conta fecha?

Muitos alegam que a conta não fecharia e que as empresas ficariam no prejuízo, mas não é bem assim não. Como já trouxe acima, inúmeros exemplos provam que reduzir jornada aumenta produtividade, então as empresas não têm o que temer. Além disso, receber o mesmo salário por 30h (ao invés de 40h) diminuiria um pouco o impacto da falta de ajuste no salário mínimo (que segundo o DIEESE deveria ser R$6.298,91 em agosto). A redução também aumentaria o número de vagas de emprego e permitiria que os trabalhadores usassem o tempo para complementar renda, estudar, além de gastar ou investir seu dinheiro com qualidade – o que retroalimentaria a economia.

Não existe mais desculpa para continuarmos trabalhando o mesmo número de horas desde 1988

E em uma camada mais profunda, podemos dizer que se trata de uma questão de saúde pública. Com essa carga que ocupa a maior parte “útil” da nossa vida, as pessoas não têm tempo nem grana para fazer exercícios, ir ao médico, comer direito, e o resultado é aquele quadro de adoecimento e morte que já mencionei.

Ufa, são muitos fatores e argumentos pra dizer uma coisa só: o futuro do trabalho precisa ser menos labuta e mais diversão, menos gente exausta e mais gente cuidando da saúde. O mundo evoluiu, a tecnologia avançou, não  existe mais desculpa para continuarmos trabalhando o mesmo número de horas desde 1988. Precisamos ressignificar o trabalho e entender que produtividade não tem nada a ver com o número de horas trabalhadas. Como diz Rutger Bregman, autor de Utopia para Realistas: “Temos que nos livrar da definição antiga do trabalho e, então, seguir para coisas novas. Trabalho é quando você faz algo interessante, ajuda outras pessoas, cria um produto ou serviço novo. Você faz do mundo um lugar um pouco melhor, isso é o que eu chamaria de trabalho”.

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