Soroterapia: como funciona e quais são os riscos à saúde - Mina
 
Seu Corpo / Reportagem

Tomar vitaminas direto na veia faz bem?

Vendida como bandeira de qualidade de vida e bem-estar, a soroterapia promete curar sua ressaca ou melhorar seu foco em menos de uma hora, mas… Vale o risco?

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O que começou como uma cura “revolucionária” para a ressaca, tornou-se uma lucrativa indústria do bem-estar: o mercado global da soroterapia faz circular 70 bilhões de reais e oferece coquetéis feitos sob medida para aumentar sua imunidade, melhorar seu humor, garantir mais beleza para sua pele e cabelo ou até mesmo acabar com sua insônia.

Embora não existam estudos clínicos que comprovem os benefícios da terapia intravenosa, a popularidade do procedimento, que consiste em tomar uma bolsa de soro com vitaminas, minerais, antioxidantes ou aminoácidos na veia, cresceu muito nos últimos anos – proporcionalmente, inclusive, ao número de influenciadores divulgando a tecnologia emergente.

Não há evidência científica que mostre a utilidade da soroterapia 

O procedimento é simples e, muitos dos efeitos, imediatos – está aí um dos motivos de seu sucesso. Outros são receitados a médio e longo prazo, com sessões semanais de 45 minutos a uma hora. Mas um dos tratamentos mais populares, que oferece mais energia física e mental, o NADH (Nicotinamida Adenina Dinucleotídeo), pode levar até três horas para ser administrado.

Apesar do crescimento desse mercado, a soroterapia está longe de ser uma unanimidade. “Essa moda é uma loucura. Não existe nada de evidência científica que mostre sua utilidade ou grau de segurança. Além de tudo, é um procedimento caro e a maioria das vitaminas sai na urina do paciente”, diz a médica Maria Edna de Melo, endocrinologista do Grupo de Obesidade e Síndrome Metabólica do Hospital das Clínicas de São Paulo. “Por outro lado, também pode haver risco de intoxicação. A injeção de vitaminas lipossolúveis (como A e D) em excesso são prejudiciais, pois são armazenadas em vez de excretadas.”

Hoje, clínicas e drip bars no mundo inteiro oferecem o serviço – com ou sem prescrição médica. Em Londres, de onde escrevo, você pode fazer o procedimento em quiosques no meio de shopping centers ou até mesmo em festivais de música, garantindo – segundo os fabricantes – hidratação imediata, alívio da ressaca e mais energia para dar conta da maratona de shows.

Mas, claro, isso tudo tem preço (e ele é alto): uma reposição de vitamina D, por exemplo, custa a partir de 165 libras (cerca de 1.000 reais); já uma bolsa de soro para melhorar seu foco (uma mistura de aminoácidos e vitaminas do complexo B) sai por 350 libras, ou 2.100 reais.

No Brasil, as clínicas oferecem o procedimento apenas diante de uma receita médica. Os mais baratos custam cerca de R$ 300, mas podem chegar a R$ 1.200 por sessão.

A soroterapia pode ser usada para uma infinidade de tratamentos e os coquetéis mais populares incluem uma mistura supostamente “antienvelhecimento” de glutationa, complexo B e zinco “para pele”, vitamina C, magnésio e aminoácidos “para felicidade” e misturas de vitamina C e complexo B “para energia”.

“A soroterapia não cura doenças, mas melhora a qualidade de vida”, defende a médica Michele Fonseca, pós-graduada em endocrinologia e metabologia. O tratamento, que ela oferece em sua clínica no Rio de Janeiro há pelo menos quatro anos, tem sido alvo do Conselho Federal de Medicina, já que a prática não é regulamentada pela vigilância sanitária.

Vale injetar vitaminas simplesmente para curar uma ressaca?

Ela diz que médicos contrários à soroterapia dizem que muitos dos seus resultados podem ser alcançados com uma dieta balanceada, a prática de exercícios e boas noites de sono. “E eles estão certos, mas a realidade é que a maioria das pessoas não consegue cumprir esse protocolo, e aí buscam a suplementação de vitaminas dessa forma.”

Muitas de suas clientes procuram o procedimento por motivos estéticos, para inibir a fome e acelerar o metabolismo. As substâncias administradas poderiam estar em uma pílula, ela diz, mas são absorvidas mais rapidamente com a aplicação intravenosa. “De qualquer forma, não existe mágica.”

“Às vezes o próprio investimento na consulta já faz a paciente se sentir bem, como um placebo” diz a endócrino Maria Edna de Melo. “Vivemos uma fase da nossa evolução em que é difícil ter paz, as pessoas estão estressadas e acabam sendo induzidas a buscarem esse tipo de coisa.” De fato, um estudo do Centro de Medicina Integrada de Connecticut, nos Estados Unidos, observou um forte efeito placebo em pacientes com fibromialgia que usaram as terapias injetáveis.

A médica, no entanto, reconhece que o tratamento é essencial para pacientes que fizeram cirurgia bariátrica e não conseguem absorver nutrientes ou mulheres com fluxo menstrual muito intenso e que precisam repor o ferro.

Na soroterapia, as vitaminas contornam o estômago e vão direto para a corrente sanguínea, mas isso não é necessariamente uma coisa boa, porque de alguma forma ignora todas as proteções e filtros internos do corpo.

“No mínimo os pacientes precisam ter por escrito quais componentes foram injetados nele”, alerta a médica. “É um benefício proporcional ao risco. Vale fazer isso simplesmente para administrar uma ressaca?”, ela questiona.

Efeitos colaterais e reações adversas são raras, mas ocorrem: dores de cabeça e náuseas, reações alérgicas, inflamatórias e imunológicas são apenas algumas. A modelo Kendall Jenner, que apareceu no reality de suas irmãs Kardashian fazendo o tratamento, já foi hospitalizada após sofrer reações ao soro de vitaminas.

Uma empresa americana, a iV Bars, chegou a ser investigada por oferecer tratamentos intravenosos para doenças graves, como câncer e insuficiência cardíaca congestiva. Outra empresa, a Get a Drip, na Inglaterra, vendia um tratamento de cinco sessões (por 1.375 libras, ou cerca de R$ 8.400) para ajudar mulheres em casos de infertilidade. Após especialistas no assunto refutarem que o coquetel de vitaminas oferecido faria com que elas engravidassem, a empresa se defendeu dizendo que simplesmente visava o “bem-estar geral” das pacientes.

Para se ter uma ideia da popularidade do procedimento, a atriz Gwyneth Paltrow, que também está à frente da Goop, marca de bem-estar, recebia seu coquetel enquanto era entrevistada no podcast The Art of Beeing Well, em março. Outras celebridades, como a empresária Chrissy Teigen, a modelo Cara Delevigne e a cantora Lady Gaga já postaram fotos em suas redes enquanto faziam o procedimento. No Brasil, a prática ganhou embaixadoras como a influencer Gabriela Pugliesi, a apresentadora Luciana Gimenez e a cantora Maraisa.

O médico cirurgião e nutrólogo Roger Bongestab acha que o mercado precisa urgentemente de uma regulamentação, pois essa popularização está ficando perigosa. E, para ele, essa “já é uma tecnologia que não tem volta”. Os números comprovam: o aumento do uso de suplementos e vitaminas é uma tendência mundial, principalmente no cenário pós-covid.

Febre mundial

No Brasil, uma pesquisa da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para Fins Especiais e Congêneres (ABIAD) mostrou que em 2021 o consumo de suplementos alimentares tinha aumentado 10% nos últimos cinco anos e que essa seria uma curva ascendente, com resultados parecidos nos anos seguintes. 

Ainda sobre a pesquisa, pelo menos uma pessoa de 59% dos lares brasileiros consumia vitaminas e 85% buscavam saúde e bem-estar. Um outro estudo, da Future Market Insights (FMI), estima que esse mercado terá um crescimento de 8,8% no valor de CAGR (Compound Annual Growth Rate, na sigla em inglês – Taxa de Crescimento Anual Composta, em português) em um período de dez anos, entre 2023 e 2033.

“Mas como dizer até onde as terapias injetáveis podem ir se não temos estudos ou diretrizes do Conselho Federal de Medicina?”, questiona Roger. Ele pondera que pelo menos no Brasil é preciso uma recomendação médica e a presença de um médico para realizar o procedimento. Além disso, o paciente deve passar por uma triagem com exames e histórico clínico. “Nos Estados Unidos já vi lugares que simplesmente oferecem um cardápio ao paciente e ele escolhe o coquetel de vitaminas na hora, sem nenhuma fundamentação clínica”, diz.

Roger lembra que já atendeu pacientes com ultradose de vitamina D intravenosa. “Algumas vitaminas, em excesso, podem causar intoxicação, alterações cardíacas, crises convulsivas e até lesões renais irreversíveis”, diz.

Para o primeiro vice-presidente do Conselho Federal de Medicina, Jeancarlo Fernandes Cavalcante, a instituição deixa muito claro quais são as indicações e os padrões estabelecidos para o uso de medicações e vitaminas intravenosas no caso de doenças. 

“Já esses tratamentos para fins estéticos, como os anti-ageing ou uso de anabolizantes, não têm diretrizes porque simplesmente não têm base científica – e por isso não são reconhecidos nem por nós nem pela Associação Médica Brasileira”. Ele reconhece que a soroterapia virou “uma febre mundial” e alerta que “pode acarretar risco sério à saúde se feito de maneira insegura”.

Recentemente, uma Força-Tarefa do Serviços de Prevenção dos Estados Unidos (US Preventive Services) apresentou 52 estudos sobre o uso de vitaminas, além de revisar 84 estudos que testaram o produto em quase 700 mil pessoas.

A conclusão? Não há evidência suficiente de qualquer benefício de prolongamento da vida para adultos saudáveis com o uso de vitaminas A, D ou E, cálcio, betacaroteno, selênio ou vitaminas B3 e B6.

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