Quem assistiu à posse do presidente Lula em janeiro acompanhou a subida da primeira-dama do Brasil, Janja, à rampa do Planalto levando pela coleira a vira-lata Resistência. Naquele momento, muita gente descobriu que ela não tinha filhos e passou a chamá-la de egoísta nas redes sociais pelo simples fato de ter escolhido não ser mãe. Não é de hoje que as mulheres são julgadas pelas suas escolhas, mas chama a atenção o peso que a sociedade coloca naquelas que decidem “fugir do roteiro” da maternidade.
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Parece que uma mulher sem filhos só existe em contraposição à idealização – também problemática – da mãe imaculada, bondosa e abnegada. “Há algo de ameaçador em uma mulher que não está ocupada com os filhos. Uma mulher assim provoca certa inquietação. O que ela vai fazer, então? Que tipo de problemas ela vai arrumar?”, escreve Sheila Heti no livro Maternidade (Companhia das Letras, 2019).
Desde 2020 se dedicando ao perfil Sem Filhos com o intuito de dar visibilidade às mulheres que, assim como ela, não são mães, a servidora pública gaúcha Patrícia Librenz, 41 anos, conta que muitas a procuram querendo entender como não se sentirem estranhas ou com medo de falar que não desejam a maternidade. “Crescemos vendo que as vilãs das novelas, dos filmes e desenhos animados quase sempre são mulheres sem filhos, ao contrário das mocinhas, cujo final mais feliz é a chegada de um bebê. Mulheres sem filhos têm sua imagem constantemente atrelada à ideia de perversão”, acredita.
37% das mulheres brasileiras não querem ter filhos
Quando Patrícia fala sobre sua decisão de não ter filhos diz escutar as mesmas frases que suas seguidoras afirmam ouvir: “Você ainda é nova, vai ter tempo de mudar de ideia”. “Quando encontrar o homem certo vai querer ter filhos.” “O relógio biológico vai apitar.” “Se você não der um filho para seu marido ele vai te largar.”
É fato que o assunto ganhou mais atenção nos últimos anos e mais mulheres – inclusive famosas – vêm jogando luz nesse tema que, no fundo, só diz respeito a elas próprias. Não faz muito tempo que a atriz Fernanda Nobre foi criticada ao assumir que a maternidade não é um plano. Ao ser confrontada em seu perfil no Instagram, respondeu: “O comportamento padrão das mulheres é pela maternidade… É tão absurdo, em pleno 2022, a gente ainda ter esse tipo de expectativa sobre o corpo feminino. Acho uma contradição tão grande como o mundo, com o caminho social que estamos seguindo. O que colocam em nossa cabeça é que somos menos, somos incompletas.”
A antropóloga e escritora Mirian Goldenberg, 66 anos, conta que, desde a adolescência, sabia que não queria filhos. “Investi minha vida no meu trabalho. Acreditei que para mim, um caminho de mais felicidade seria ser independente financeiramente e, se possível, emocionalmente. Não quer dizer que consegui ser independente emocionalmente, mas financeiramente, sim, e meu trabalho é um propósito de vida, me realiza e me sinto tranquila com a escolha que fiz.”
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A pressão pela maternidade, conforme conta Mirian, não veio da sua família, tampouco dos homens com os quais foi casada, mas de suas amigas mais próximas. “Elas diziam que eu teria uma uma velhice solitária. Hoje, elas mesmas acham que fiz uma excelente escolha porque comprovaram que filhos não cuidam de ninguém, nem garantem que a velhice não seja solitária.”
Identidade feminina
Uma pesquisa global realizada em 2020 com o apoio da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do Think About Needs in Conception (TANCO) revelou que, no Brasil, 37% das mulheres não querem ter filhos. Se hoje há mais acolhimento e ferramentas que nos ajudam a exercer o papel de mãe, por que não falar do mesmo modo sobre as mulheres que não querem criar uma criança? Por que não colocar para as meninas, desde a infância, a não maternidade como uma possibilidade? Para muitas mulheres, a vida com filhos é gratificante, mas para tantas outras viver sem filhos é fonte de realizações e essa não deveria ser uma questão ainda discutida na sociedade.
“Por muitos séculos, em diferentes culturas se estabeleceu que a maternidade ocupa um lugar central do que se entende por identidade feminina. Então, ser mulher nessa lógica equivale a ser mãe ou pelo menos a agir de modo maternal”, explica Ana Luiza de Figueiredo Souza, pesquisadora em temáticas maternas. “Existe uma crença de que uma mulher só é considerada verdadeiramente adulta depois de ter filhos, do mesmo modo que uma mulher sem filhos é incompleta, imatura e irresponsável. É quase como se uma mulher sem filhos fosse uma eterna adolescente, já que a maternidade marcaria essa passagem definitiva para vida adulta que ela não teve. Então, essa expectativa ligada à maternidade está relacionada à cobrança para que as mulheres ajam de modo a corresponder a essa suposta essência feminina. Afinal, se tornarem mães, não é o que as mulheres desejam? Não é o que as mulheres fazem?”
Em seu livro Ser mãe é f*d@! (Editora Zouk, 2022), Ana Luiza lembra que o número de referências não maternas é muito menor do que as maternas e, quando aparecem, são figuras carregadas de estereótipos, como as vilãs, as madrastas más, as ressentidas e as solteironas. “Em muitos casos, por mais que a maternidade possa ser difícil, acaba sendo mais reconfortante aderir a ela do que lidar com as cobranças, consequências e os estigmas de recusá-la. É mais provável que uma mãe encontre alguém com quem possa dividir os problemas maternais do que uma não mãe ter alguma rede de apoio para conversar sobre as angústias geradas pelo fato de ser a única entre suas amigas a não ter filhos”, escreveu a autora.
“Passei por muitas ginecologistas até encontrar uma que topasse fazer a laqueadura numa mulher sem filhos”
Mirian Goldenberg atenta para os estigmas que acompanham as mulheres que tomaram a mesma decisão que ela. “Até hoje acho curioso quando uma mulher me diz ‘lógico que você escreveu mais de 30 livros e conseguiu espaços de reconhecimento, você não tem filhos’. De certa forma, é uma desvalorização. Segundo algumas mulheres, eu só consegui o que consegui porque não tenho filhos. Hoje não vivo mais como uma pressão, mas é um estigma”, conclui a antropóloga.
Laqueadura sem filhos
A advogada cearense Patrícia Marx, 36, é casada e há três anos realizou a laqueadura, ou seja, a retirada por completo das trompas e a cauterização das fibras. Mesmo sendo garantido por lei, acessar esse procedimento não foi fácil e, por isso, ela hoje administra o perfil Laqueadura Sem Filho, que leva informação a quem deseja o mesmo – de janeiro a junho do ano passado, ela contabilizou mais de 600 mulheres no país que conseguiram realizar o procedimento.
“Não queria ser mãe, nem viver na paranóia de engravidar, mesmo me prevenindo, e descobri a lei que permite a mulher sem filhos fazer laqueadura. Mas passei por muitos ginecologistas até encontrar uma que topasse fazer a cirurgia”, conta. “No decorrer do processo fui sendo tão testada, oprimida e ofendida que tive medo do médico fazer a cirurgia errada de propósito. Hoje respiro aliviada”, diz a advogada.
O procedimento de laqueadura e vasectomia sem filhos para maiores de 25 anos já estava previsto em lei no texto da Lei de Planejamento Familiar. Mas, Patrícia em conjunto com outros grupos de mulheres conseguiu, depois de muita pressão política, pela aprovação da Lei 14.443/2022, que entrou em vigor neste mês, e reduziu para 21 anos a idade para a realização da esterilização de mulheres, ainda que não tenham filhos. Deixou de ser necessário também aprovação do/da cônjuge para a realização do procedimento – uma vitória a ser celebrada na pauta de direitos reprodutivos e sexuais.