A maternidade é uma identidade. Primeiro tem a gestação e todas as mudanças físicas perceptíveis. Um corpo novo para gestar uma vida nova. E não se engane. Ainda que seu filho tenha chegado através da adoção, ainda que você cuide de netos, sobrinhos ou afilhados, quando você é a principal figura de referência, o corpo se expande para fazer caber alguém que existe porque você está lá.
É como se precisássemos de mais espaço para sustentar o caminhar feito agora ao lado de uma outra pessoa. Nada nos prepara para essa transformação continental, esse terremoto que tira tudo do lugar. É a partir dos escombros que esses movimentos internos provocam que criamos uma nova combinação, um novo jeito de existir, num trabalho árduo e invisível, que acontece em um espaço íntimo, profundo e silencioso.
A mãe nasce desse caos, entre a despedida de quem fomos antes e essa nova versão, desconhecida, que se apresenta no espelho. É um processo solitário, ainda que você tenha companhia, porque é preciso navegar por dentro e quase sempre nos encontramos sem bússola para essa travessia. A necessidade do bebê ou da criança encontra resposta rápida no corpo da mãe. Há uma mistura, uma fusão que garante de certa forma o fortalecimento psíquico das duas partes, num acordo tácito que é, na verdade, o motor que ajuda todo mundo a sair desse mergulho profundo.
A quem serve a culpa materna?
A mãe nasce, cresce e se fortalece. A mãe nutre o bebê que também cresce e se fortalece.
Mas o ciclo não se fecha, porque é preciso resgatar partes da mulher que nos trouxe até aqui. É preciso trazer algo de volta daquela de antes para compor essa nova mulher mãe. Talvez essa seja uma das missões mais difíceis, porque se expandir pelos filhos é algo bonito e percebido como grandioso. Mas abrir espaço para a mulher que sustenta a mãe parece menor, desimportante. Um grande ato de egoísmo, porque ele nos coloca diante do inevitável: a importância de faltar.
Para existir em sua vida, ocupar postos de trabalho, ser outras versões de si, desejar outros corpos, ter outros planos além das viagens em família, a mãe precisa encarar sua falta. Precisa lidar com a regra proposta pela física de que dois corpos não ocupam o mesmo lugar e que é importante abrir espaço para que o filho construa outras relações de afeto, para que outras pessoas cuidem, levem, busquem, acolham quando ela não estiver, entendendo que nada disso é um risco à sua imagem ou à relação. Essa falta é o que permite que ela se veja, mas também é o que autoriza simbolicamente que o filho vá em busca da sua própria identidade.
Mas esse processo não é vivido sem culpa e ela se torna um acessório quase indispensável no exercício da maternidade, que vai funcionar como um grande regulador da relação da mulher consigo mesma. Como se qualquer passo em falso, ou na sua própria direção, fosse um atestado da sua competência materna, a sua falta de dedicação ao seu bem mais preciso.
A culpa é o entolho nos olhos das mulheres para que elas não se vejam. Porque uma mulher que se enxerga, é uma mulher mais livre. E se você escolhe não ter filhos, tudo bem viver essa liberdade, mas mães não são autorizadas e nem se autorizam a desfrutar dessa possibilidade. Mas a quem serve a culpa materna? Serve para a manutenção das coisas como elas são. Para que a gente siga, sem questionar, o ideal patriarcal da maternidade que diz de forma velada e ao mesmo tempo escancarada que a boa mãe é abnegada, que faz tudo pelos filhos, que naturalmente se coloca em um lugar menor para acomodar todos de quem ela cuida.
A mãe que falta porque precisa de si não é menos mãe
O que a gente tem perdido desse ideal é a impossibilidade de cuidar de alguém, sem cuidar de nós mesmas. Sem se escolher, sem buscar prazeres, sem se ver, sem se priorizar. Aprendemos a observar o cuidado como uma fonte natural e inesgotável que carregamos, mas isso não é verdade. Esse recurso ou habilidade que desenvolvemos diante de uma sociedade que nos empurra para esse caminho como sendo o único, precisa estar amparado por uma prática de autocuidado, que tem menos a ver com banhos de sais ou retiros espirituais e mais a ver com a capacidade de estabelecer limites nas relações.
A mãe que falta porque precisa de si – seja para descansar, seja para trabalhar, seja para namorar ou para viajar – não é menos mãe. É uma mãe inteira consciente de si, dos seus espaços vazios e da importância desses espaços também para os filhos.
Quando entendo a importância das fronteiras ou do meu espaço interno, eu habito meu território com mais segurança e tranquilidade, autorizando de forma consciente quem entra, quem sai, quem visita, quem se aproxima e quem deve se afastar. Autorizando a presença e a ausência. Cuidar dessas fronteiras é saber até onde posso ir, quais meus limites. E entender que ainda que eu precise ultrapassá-los de vez em quando, eu sei por onde voltar que assim, meu filho saberá também.