O que mudou quando me tornei uma mulher de cabelo curto - Mina
 
Seu Corpo / Reportagem

Soltei as mãos da feminilidade e, enfim, me encontrei comigo

O seu cabelo transmite quem você é ou o que os outros esperam que você seja? A escritora Laressa Teixeira conta como ficar careca melhorou a forma como ela mesma se enxergava

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Nasci de mãos dadas com a feminilidade. Não tive escolha. Minha mãe a pariu junto comigo quando o médico revelou que eu era menina. Desde pequena, senti minha existência sufocada por nossas mãos entrelaçadas, mas demorei para conseguir perceber sua presença, entender quem era e nomeá-la. Fe-mi-ni-li-da-de. Quando o esclarecimento chegou — a duras penas, livros, vídeos e conversas —, uma máquina de cortar cabelo entrou na história, transformou nossa relação e afrouxou nosso laço. 

A feminilidade nasceu junto comigo porque ela também nasceu junto da minha mãe, da minha avó e das minhas bisavós. Uma herança nossa compartilhada entre tantas outras mulheres. Sem saber da sua existência e do seu impacto, mamãe conduziu boa parte da minha infância conforme o que ela e o padrão de beleza ditavam. Antes de me tornar uma pessoa com autonomia, eu era filha. E, enquanto filha, o meu cabelo estava sempre impecável — ou seja, passando por uma tentativa de aproximar do padrão —, longos, acompanhados de acessórios rosa. 

Tenho 1,58 e passei a maioria dos meus anos de vida pesando menos de 50 kg. Ou seja, uma pessoa bem pequena. Esmirrada. E, eventualmente, ofuscada por alguns acessórios. Era assim que eu me percebia. Posso dizer que nunca me achei feia, mas também que ao olhar no espelho, poucos foram os dias que eu me senti satisfeita com o que enxergava. 

Queria olhar no espelho e me sentir em paz com o que enxergava

Cresci e passei pelo processo de descobrir o meu cabelo natural, aprender a cuidar dele e a amá-lo. Mas ainda faltava algo. No meu caso, a ausência de identificação ultrapassou questões raciais, era sobre personalidade. Com o passar do tempo, entendi que meu cabelo estava dentre os acessórios que me faziam sentir sem brilho.

Já mais velha, no ano de 2019, para ser mais exata, acordei em uma sexta-feira de carnaval com muita coragem. Estava na hora de ir em busca da sensação de olhar no espelho e me sentir em paz com o que enxergava. Estava na hora de descobrir uma nova possibilidade de ser. Estava na hora de ficar careca. E eu tinha um plano: se desse errado, pintaria a careca de loiro e entraria no clima com uma fantasia de carnaval. Se desse certo, bom, finalmente o espelho faria sentido.

Aconteceu. A caminho de casa, uma das primeiras pessoas que encontrei foi minha avó, uma mulher que eu diria que tem a mão direita e a mão esquerda entrelaçadas com a feminilidade. Ela me olhou da cabeça aos pés e disse “você está linda, parece uma boneca”. Uma boneca que até então ninguém tinha dito existir ou que poderia existir, mas que, naquele momento, decidi inventar dentro de mim. 

Não importava quem mais eu encontrasse no caminho até minha casa ou no caminho da vida. Tinha finalmente chegado em um entendimento de quem eu era e aberto uma porta para as possibilidades de tudo que poderia ser se quisesse e se tivesse coragem. As mãos, outrora firmemente entrelaçadas com a feminilidade, se afrouxaram e eu me senti livre para caminhar em direção ao que fizesse sentido para mim. Desde então, tento levar isso para minha vida no máximo de aspectos possíveis. Minha casa nem sempre está impecável. Minha unha raramente está feita. Sigo sem cabelo. E ainda, sim, me sinto vaidosa, bem cuidada. O que me faz bem é o meu bem-estar.

O homem que não gosta de mim careca, não gosta de mim e ponto

Apesar dos variados e aparentemente infinitos pedidos para fazer as pazes com o que a sociedade considera feminino, nos últimos 4 anos, não houve um dia que senti saudade dos fios. Sim, ouvi e ouço falas desagradáveis. Muitas pessoas associam a minha ausência de cabelo a doenças, outras tentam substituir o cabelo por outros marcadores de feminilidade por meio de sugestões indiretas. Você já pensou em usar brincos maiores?”. Sim, senti medo de parecer menos atraente, de diminuir os pretendentes, mas logo afastei essa bobagem e substituí o medo por um critério. O homem que não gosta de mim careca, não gosta de mim e ponto. Afinal, mais do que nunca, estou sendo eu. O patamar subiu. 

Certa vez, em uma roda de conversa, pediram para me apresentar dizendo uma palavra que me definisse no passado.“Desconhecida”, respondi. Lembro que algumas pessoas não entenderam, pediram para repetir. Repeti e expliquei, mas confesso que não me interessava que entendessem. Apesar de ser uma apresentação para o outro, me interessava quem eu era para mim. Antes eu era desconhecida, hoje, me conheço e aperto qualquer mão com a certeza de que a feminilidade não está totalmente no comando.

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