Tatiana Vasconcellos escreve sobre seu processo de escolha pela não maternidade - Mina
 
Suas Emoções / Reportagem

Ser mãe é uma das inúmeras possibilidades transformadoras, mas não é a única

Tatiana Vasconcellos fala sobre a pressão social sobre a mulher que escolhe não ter filhos, explica como se fez sua certeza e não solta a mão de ninguém: "faço parte da aldeia que vai criar crianças melhores para esse mundão de meu deus"

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Nunca tive certeza se queria ser mãe: não sabia nem se queria, nem se teria condições de trazer uma criança ao mundo. Também nunca tive aquele desejo de engravidar, gestar e de exercer a maternidade, o chamado “instinto materno”, conceito com que meninas e jovens mulheres inevitavelmente se deparam em algum momento da vida – seja nas conversas entre amigas, seja na mídia. 

Há uma crença popular de que, mais cedo ou mais tarde, a mulher será arrebatada pelo desejo de ser mãe

Depois, passei a entender a maternidade como circunstancial. Algo para depois de experimentar caminhos na carreira de jornalismo, de me emancipar financeiramente da minha família e quando tivesse um relacionamento sólido. “Ah, mas se você esperar as condições ideais para ter um filho, você não vai ter.” Talvez sim. E depende de que condições cada uma considera ideais. Mas acredito que a frase talvez sirva como viés de confirmação a quem tem a pretensão de ser mãe. Ou para reforçar a desimportância do nosso desejo diante do caráter compulsório atribuído à maternidade para uma mulher.   

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Mesmo sem saber se queria ter filhos, tive namorados que ficavam em pânico quando pensavam sobre a minha idade, porque presumiam que logo eu certamente quereria ser mãe e talvez eles “não estivessem preparados” para serem pais. “Passou dos 30, logo, vai querer ter filho”. Embora não fosse uma certeza, eles entendiam que era algo que inevitavelmente aconteceria. É a crença popular no “relógio biológico”, segundo o qual em algum momento, quando você menos esperar, será arrebatada por um desejo incontrolável de ser mãe.  

Só mais tarde, provocada por uma estranha sensação de inadequação e fazendo muitas perguntas, fui adquirindo consciência, entendimento e letramento do quão imersos todos estamos nesses padrões, vivendo para atender à expectativa social sobre nós, nossos corpos e destinos, em detrimento da nossa vontade. Também entrei em contato com muitas pensadoras feministas que atribuem à maternidade uma estratégia cruel do patriarcado para continuar tendo poder sobre as mulheres. É nessa linha que vai, por exemplo, a escritora Lina Meruane em Contra os Filhos (Ed. Todavia). 

Para ela, a maternidade a que somos pressionadas, consciente ou inconscientemente, volta a domesticar a mulher, depois de tanta luta por autonomia. Não acho a tese absurda, apesar de o texto ser bastante cruel em algumas passagens. Mas também não acredito no superpoder das mães. 

Apesar da convivência com mães me despertar doçura, não tenho vontade de encarar essa jornada

Todas as que conheço estão sobrecarregadas, exaustas mental e fisicamente e se sacrificam demais para conseguir desempenhar todos os papéis que precisam cumprir, sobretudo as que não têm ou têm uma rede de apoio restrita. “É preciso uma aldeia inteira para se educar uma criança”, diz o provérbio africano, bastante evocado. Concordo e confronto com dados de realidade. Na prática, a teoria é inversa e sobra quase tudo nas costas de uma única mulher: ela mesma, a mãe. 

O tempo passou, os 40 se aproximavam. Saboreava uma vida pessoal autônoma e livre, satisfação com os caminhos que percorria na carreira, o contentamento com as preciosas relações amorosas que construí. Observava com atenção as gestantes e mães próximas de mim, as mudanças que uma criança, ou a expectativa da chegada dela, traz ao entorno. Me emocionam a ternura, o amor imenso, o desenvolvimento daqueles serzinhos, as descobertas deles, as delícias parecem muitas. As dores também. Foi quando entendi que, apesar de me despertar amabilidade e doçura, de fato não tinha vontade de encarar essa jornada. E fiquei em paz. 

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E não estou sozinha. Hoje estima-se que 37% das brasileiras não contemplem um filho (número que vem aumentando) principalmente porque “percebem na maternidade um lugar de grande exigência social e forte renúncia dos projetos pessoais”. Uma pesquisa qualitativa com 10 mulheres em idade fértil feita pelas pesquisadoras de saúde mental e gênero Valeska Zanello e Daniele Fontoura Leal mostra que, ter um filho, foi associado por elas à: perda de liberdade, perda de si mesma, excesso de responsabilidades, deixar de cuidar de si para cuidar do outro e criação de um elo irrompível com um homem. 

Também aparece um contexto mais amplo que pesa contra: uma visão pessimista da sociedade e a sobrecarga da mãe. Sobre as pressões, a maioria ressalta a família, especialmente a mãe (“quando você vai me dar um netinho?” ), os amigos (destaque para as mulheres que vivem a maternidade) e até os ginecologistas (como os que sugerem gravidez como cura para a endometriose). O simples desejo da maioria dessas mulheres e não ter filhos deveria bastar, não? 

Ser mãe é um jeito de existir, não ser mãe é um outro jeito

Como escreve Sheila Heti no livro Maternidade: “Algumas pessoas tentam imaginar como seria não ter filhos – e o que elas veem é uma imagem de si mesmas sem filhos, em vez de imaginar a pessoa que elas talvez nunca sejam.” Talvez por isso, uma mulher sem filhos ainda é olhada com pena, como se faltasse alguma coisa pra ela, como se ela ainda não tivesse “chegado lá”. 

Lá onde, gente? Ser mãe é um jeito de existir, não ser mãe é um outro jeito. Ninguém olha para uma mãe como se lhe faltasse algo, por ela ter aberto mão de experimentar uma vida sem filhos. Alguém pergunta a uma mulher por que ela teve filhos? Ou “e se você se arrepender de ter tido filhos”? Nem vou falar da santificação da mãe para não me alongar (mas que ela continua aí no nosso imaginário continua). 

Ninguém deveria ter de se explicar por suas escolhas pessoais. Uma vida solo é distinta de uma vida em dupla ou em trio, que é diferente de dividir apartamento com amigos, que é quase o contrário de morar sozinho, com suas gostosuras e perrengues particulares. Não se trata de qual formato é melhor ou pior. Trata-se da vida que escolhemos para nós, quando nos é possível escolher. Que experiências queremos e, sobretudo, de quais damos conta. 

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Por isso, essa máxima da incompletude da mulher sem filhos é uma balela tirânica. Filho não tem nada a ver com plenitude (assim como um par também não tem). É, ou deveria ser, essencialmente uma escolha consciente de que tipo de existência plena você deseja para si e quais são suas implicações. 

Ser mãe é uma das inúmeras possibilidades transformadoras na vida de uma mulher, mas não a única e nem uma obrigação a ser cumprida (como falamos no episódio 6 do Na Morada, meu xodó, série em podcast que fiz em parceria com a amiga e jornalista Laura Cassano). A propósito, amo e procuro ser uma boa tia para a minha sobrinha e para todas e todos os sobrinhos da família que escolhi, dá para distribuir amor (um tanto para as crianças/adolescentes, outro tanto para mães e pais). E estou pronta para colaborar na aldeia que vai criar crianças melhores para esse mundão de meu deus.

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