Há mais de um século, Alice abocanhava pedaços de um cogumelo que a faziam crescer e diminuir de tamanho na clássica obra de Lewis Carroll. Muito antes disso, há pelo menos 2.200 a 3000 anos, esses fungos alucinógenos já eram utilizados em rituais de povos indígenas do México.
Nos anos 1960, foram amplamente consumidos no embalo do movimento hippie. Após o período de estigma imposto pela guerra às drogas, eles ressurgem como tendência no século 21 com promessas de benefícios para a saúde mental.
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Dos profissionais do Vale do Silício, na Califórnia, espalhou-se aos quatro ventos que as microdoses de cogumelo trazem bem-estar e aumentam a produtividade, ampliando a energia e a criatividade no trabalho.
“A prática tem se disseminado mundialmente como busca por opções de tratamento terapêutico para melhorar não só a performance no trabalho, mas também a saúde mental e os relacionamentos pessoais”, diz Lucas Maia, especialista em psicofarmacologia e coordenador do portal de divulgação científica Ciência Psicodélica. Tentador, mas será que o hype é real?
Alternativa aos antidepressivos
Após anos sem grandes novidades para oferecer a seus pacientes, a ciência psiquiátrica vem resgatando, nos últimos 20 anos, o estudo dos psicodélicos como alternativa aos antidepressivos, como mostra a série documental Como Mudar sua Mente, que estreou em 12 de julho Netflix.
Baseada no livro homônimo de Michael Pollan, ela traz entrevistas com profissionais e depoimentos de pessoas com transtornos mentais que tiveram experiências transformadoras com LSD, MDMA, mescalina e psilocibina, substância presente nos cogumelos alucinógenos – porém em doses de padrão a elevadas.
A microdose promete trazer os efeitos terapêuticos da psilocibina sem que você fique bem louca para isso
Além de ajudar a entender como a mente humana funciona, os estudos com psicodélicos buscam uma alternativa aos antidepressivos, que revolucionaram o tratamento de depressão e ansiedade a partir da década de 1950.
Mas, ao longo dos anos e do seu uso por milhões de pessoas, foram sendo descobertos efeitos adversos, como hipertensão, aumento nas taxas de colesterol e no risco cardiovascular, além de disfunção sexual. “A eles se soma o fato de que 30% das pessoas que fazem uso de antidepressivos não melhoram”, aponta a psiquiatra Débora Tavares, membro da Associação Psicodélica do Brasil (APB).
Cogumelo: modo de usar
O conceito de microdose se popularizou através do Guia do Explorador Psicodélico (2011), escrito pelo psicólogo norte-americano James Fadiman, que apresenta o passo a passo da experimentação. “A ideia é utilizar uma dose muito baixa – de 100 mg a 200mg do cogumelo seco, o que representa de 10% a 15% de uma dose padrão –, de forma a se beneficiar dos efeitos, mas sem perceber que usou um psicodélico”, descreve Débora.
Ou seja, a microdose de cogumelo promete trazer os efeitos terapêuticos da psilocibina e de outras substâncias presentes nos cogumelos mágicos, como relaxamento e aumento da criatividade, sem que você fique bem louca para isso.
O protocolo consagrado por Fadiman orienta ainda o uso a cada três dias. Deve-se tomar uma microdose no primeiro dia, descansar nos dois seguintes – observando alterações de humor, nas emoções, na concentração e em outros temas de interesse –, voltar a ingerir outra dose no quarto dia e assim por diante.
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Sobre o tempo de tratamento, não há uma orientação específica. “Algumas pessoas utilizam por vários meses, outras usam durante um mês, param e voltam depois de algum tempo”, explica Lucas. Mas também há quem faça “microdosagem sem nenhum intervalo, por um ano, um ano e meio, direto”, aponta Marcio Roberto, economista e cofundador da APB, onde organiza um projeto sobre o tema.
O que diz a ciência?
Pesquisas qualitativas mostram que muitas pessoas que estão utilizando as microdoses de cogumelo relatam efeitos terapêuticos como melhora na concentração, na ansiedade, no padrão do sono e na sociabilidade.
“Mas os estudos existentes, além de serem poucos, foram realizados com uma quantidade pequena de pessoas e trazem resultados incipientes e contraditórios”, pondera Lucas. Enquanto alguns relacionam esses benefícios às microdoses, outros o conectam ao efeito placebo, no qual a expectativa da pessoa ao ingerir a substância é maior do que a real eficácia dela.
Fora que são poucos os estudos clínicos em que se tem controle sobre o ambiente de uso, a quantidade administrada entre outros fatores que permitiriam uma investigação mais precisa. A maioria observa pessoas que fizeram o uso por conta própria. Além disso, ainda não foi comprovado que a quantidade ingerida na microdose seria suficiente para produzir efeitos terapêuticos.
“É um campo ainda em estudo e não podemos apostar todas as fichas nele, nos arriscando a cair em uma moda. Como cientista, vejo como um potencial, mas entendo que só quando tivermos mais clareza sobre seus efeitos poderemos atestar sua eficácia”, avalia o especialista em psicofarmacologia .
Contraindicações da microdose de cogumelo
No Brasil, o consumo de cogumelos in natura não é ilegal, mas o da psilocibina, sim, criando uma zona cinzenta na lei sobre o seu uso, explica Lucas. A terapia com microdosagem não é regulamentada pelos conselhos de saúde, então, não há tratamento formal e a prescrição médica é proibida. “O profissional de saúde não pode negar atendimento, então, eles costumam orientar no sentido da redução de danos aos pacientes que fazem uso de microdose por conta própria”, diz Marcio Roberto.
“Os psicodélicos acabam sendo mais um facilitador da psicoterapia do que algo que faz efeito por si”
Débora, por exemplo, orienta quem a procura em sua clínica psiquiátrica sobre possíveis riscos, como interações medicamentosas, e o que o paciente pode esperar da experiência. “Recomendo também que a pessoa esteja sempre em psicoterapia.
Os psicodélicos acabam sendo mais um processo facilitador nesse tratamento do que algo que você toma e que vai fazer um efeito por si”, diz. “Essas substâncias não podem ser encaradas como um milagre, uma panaceia que vai funcionar para tudo e para todo mundo. Tem gente que vai ter mais benefício com outras medicações”, observa.
“Nem tudo são flores. Mesmo as microdoses, pequenas e seguras do ponto de vista fisiológico e psicológico, podem ter efeitos adversos”, diz Lucas, acrescentando que alguns podem experimentar aumento de ansiedade e redução na criatividade ao ingerir cogumelo. “O número de pessoas que relatam benefícios é maior, mas há as que relatam prejuízo. Isso varia de pessoa para pessoa e tem a ver com a dose também.”
O futuro do fungo
Para que os interessados acessem o melhor das microdoses e de maneira segura, além da expansão da pesquisa científica sobre o tema, é necessário regulamentação, destacam os especialistas. “Para isso, é preciso avançar na luta contra a proibição.
A maconha é uma planta que sofreu grande estigma durante todo o século passado e, aos poucos, tem ganhado legitimidade social ao aliviar o sofrimento de muitos pacientes. O campo já está um pouco mais aberto”, aposta Márcio Roberto.
A regulamentação garantiria um maior controle sobre a qualidade e a dosagem. “O cogumelo tem uma concentração diferente de psilocibina dependendo de como foi cultivado. Sem regulamentar, não temos um padrão de qualidade farmacêutica sobre o composto ativo”, argumenta Lucas.
“Em um cenário futuro ideal, as pessoas deveriam poder comprar de fornecedores licenciados com controle de qualidade e utilizar de maneira mais segura, com suporte de terapeutas especializados neste campo.”
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Para Débora, não adianta restringir o controle da substância à indústria farmacêutica, porque isso reduziria a acessibilidade do tratamento sem garantir qualidade. “Existe a hipótese de que, usando a planta inteira in natura, há um efeito sinérgico, com mais benefícios do que na fórmula pura da psilocibina”, diz. Por isso, ela defende que o processo de regulamentação inclua ampla participação popular.
Se não quiser esperar esse processo todo – que, segundo Lucas, pode chegar a dez anos para se desenrolar – não esqueça de seguir a orientação dos especialistas: busque profissionais de psicoterapia e psiquiatria para acompanhar sua jornada pelo mundo (ainda bastante incerto) da microdose de cogumelo.