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Drogas psicodélicas no hospital são uma realidade no Brasil

Com a quebra de paradigmas e o crescente avanço nas pesquisas científicas, substâncias como ayahuasca, cetamina e os cogumelos “mágicos” revelam seu potencial terapêutico em clínicas e tratamentos para depressão

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Já ouviu falar em renascença psicodélica? Trata-se da retomada de estudos e tratamentos com LSD, MDMA, mescalina (e afins). Iniciada na década passada, só agora, em 2023 e num mundo pós-pandêmico, estamos assistindo à consolidação desses estudos. Testes e ensaios amparados por todo o rigor acadêmico da medicina moderna atestam que os psicodélicos, quando consumidos em ambiente propício e supervisionado por um profissional qualificado, são uma alternativa promissora no tratamento de diversos males da mente, como é o caso da depressão refratária, aquela que permanece mesmo com terapia e com a tentativa de pelo menos dois antidepressivos.

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“Desde o lançamento dos antidepressivos tricíclicos, 50 anos atrás, essa classe que não viu um avanço em eficácia. Mesmo a fluoxetina, que foi a última grande inovação dos antidepressivos, há mais de 30 anos, não vemos alterações, as evoluções ficam todas no ramo da redução dos efeitos colaterais”, explica Rodrigo Delfino, supervisor do Programa de Distúrbios Afetivos e Ansiosos (Prodaf), da Unifesp, e psiquiatra da clínica de tratamentos psicodélicos Beneva, onde administra cetamina endovenosa em pacientes com depressão persistente.

Logo após a primeira aplicação de cetamina já é possível observar uma diminuição nos sintomas de depressão

Com o transtorno de humor apontado pela OMS como “o mal do século XXI”, os psicodélicos ressurgem na hora certa. De clínicas especializadas a retiros com práticas integrativas em spas luxuosos (como o da caricata série Nine Perfect Strangers, com Nicole Kidman), passando por imersões em aldeias na Amazônia ou cultos sincretistas como Santo Daime, são vários os contextos no Brasil onde se pode fazer uso legal e responsável. E aqui, estamos falando do chá enteógeno ayahuasca, há milhares de anos consagrado pelos povos indígenas da Bacia Amazônica; a psilocibina, extraída dos cogumelos “mágicos”; a ibogaína, mais usada para dependência química; e a cetamina, um anestésico que dá barato e que apenas nos últimos 20 anos vem sendo estudado e usado em tratamentos para saúde mental.

A eficácia tem seu preço

No final de 2020,  foi aprovado pela Anvisa o uso de Spravato, um spray nasal de escetamina (parente próximo da cetamina) da Janssen. Indicado para depressão persistente. Ele chegou às drogarias com o preço em torno de R$ 3 mil. O tratamento completo com cetamina na Beneva, após as devidas avaliação e triagem, é de seis aplicações subcutâneas da droga, custando R$ 1.250 cada. Tudo com acompanhamento conjunto entre Delfino e o psicólogo e/ou psiquiatra do paciente. Recém-inaugurada no bairro de Pinheiros, em São Paulo, com aporte de US$ 1,25 mi de um grupo canadense, a clínica dispõe de aparato hospitalar, equipe de enfermagem e um time multidisciplinar de especialistas em psicodélicos e saúde mental. Detalhe: a filial na Vila Clementino deve abrir este mês. A procura é alta porque o resultado é eficiente e, principalmente, rápido.

Segundo Delfino, logo após a primeira aplicação de cetamina já é possível observar uma diminuição nos sintomas de depressão, enquanto os antidepressivos levam de 3 a 4 semanas para começar a fazer efeito. “Os benefícios são imediatos e acumulativos”, avalia Delfino, que estima uma taxa de 50% a 70% de melhora e de 50% a 70% de remissão completa do quadro depressivo, entre os pacientes da Beneva.

Ação no cérebro

Em casos de depressão crônica, é como se os neurônios ficassem como os galhos secos de uma árvore, incapazes de se ramificar e portanto de estabelecer novas conexões. É o que talvez explique aquele estado de ruminação, no qual os pensamentos entram em um beco sem saída, incapazes de encontrar uma solução. E os psicodélicos têm um efeito chamado neurogênico, que é o de formar novas ramificações e conexões, reflorestando o cérebro com novas sinapses e proporcionando, assim, a neuroplasticidade. O que favorece que o indivíduo consiga enxergar além dos problemas, ver o copo meio cheio ao invés de meio vazio.

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“Essas substâncias quebram a hierarquia entre determinados processos e funções cerebrais dos estados ordinários da consciência. Em outras palavras, isso permite aos pacientes alterar padrões no processamento de ideias e memórias, percepções, crenças e narrativas aprisionadoras e dolorosas sobre si mesmos e sobre a vida. Promovendo uma flexibilidade afetiva, mental e cognitiva, que renova comportamentos enrijecidos e propicia, assim, mudanças profundas e duradouras”, define a psicoterapeuta Daniela Monteiro, que integra o conselho diretor da APB e é co-gestora do coletivo Terapeutas em Rede pela Integração Psicodélica (Trip).

Enfrentando medos

A experiência psicodélica pode ser considerada uma janela de oportunidade para que a pessoa acesse e elabore lembranças difíceis, sem a barreira do ego ou daqueles mecanismos de defesa que via de regra impedem que a gente entre em contato com esse tipo de conteúdo. Por isso, essas substâncias funcionam tão bem quando acompanhadas de psicoterapia. “Os psicodélicos questionaram o paradigma biomédico e mecanicista que reinava na psiquiatria, fazendo uma espécie de síntese com a psicologia clínica e colocando a psiquiatria para sentar no divã”, acrescenta Daniela.

“Pense como se a mente da pessoa fosse um vaso de cerâmica enrijecido que tem uma rachadura. Durante um período ele estará maleável e vão ter duas mãos mexendo naquilo, uma do paciente e outra do terapeuta”, ilustra Sidarta Ribeiro, vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que recentemente passou a integrar a equipe de pesquisadores do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.

“Os pacientes que tiveram mais alterações visuais e auditivas foram os que mais apresentaram melhoras”

“É como uma cirurgia, precisa ser realizada com muito cuidado, a pessoa que está conduzindo tem que fazer muito bem e a pessoa que está passando pela experiência tem que ter coragem para enfrentar seus medos e demônios, de passar pela tempestade sem deixar o barquinho virar”, diz o neurocientista, que desde 2006 faz pesquisas com psicodélicos. Junto com Dráulio Araújo, entre outros autores, publicou em 2011, na revista científica Human Brain Mapping, dos Estados Unidos, o primeiro estudo de neuroimagens do cérebro sob efeito da ayahuasca já realizado, Seeing With the Eyes Shut – Neural Basis of Enhanced Imagery Following Ayahuasca Ingestion.

Foi divulgada recentemente uma pesquisa da Imperial College London, com imagem por ressonância magnética funcional (fMRI) do cérebro sob efeito de DMT (dimetiltriptamina), molécula presente no chá ayahuasca. “O que foi visto neste estudo é muito semelhante ao que observamos lá atrás, o aumento da conexão entre várias áreas do cérebro, uma redução da diferença entre os circuitos que costumam funcionar de maneira muito separada, um aumento da capacidade de decodificar informações e muito do que já tinha sido visto antes com outros psicodélicos”, comenta Sidarta. 

E a viagem?

Colega de Sidarta na UFRN, a pesquisadora Fernanda Palhano-Fontes concluiu em 2017 sua tese de doutorado, que foi o primeiro estudo duplo-cego (quando metade dos voluntários recebe placebo) com ayahuasca para depressão. Ela garante que quanto mais intensa a experiência psicodélica, mais promissores os resultados.  “A substância promove uma série de mudanças, no pensamento, no humor, na percepção. Observamos que os pacientes que tiveram mais alterações visuais e auditivas durante a fase aguda foram os que mais apresentaram melhoras”, comenta Fernanda. “Os pacientes (que não tomaram placebo) apresentaram melhora imediata, que se sustentou durante todo o período observado, de 7 dias”.

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Entre alterações visuais proporcionadas pelos psicodélicos, são comuns mirações de fractais, padrões geométricos ancestrais, luzes intensas e assim por diante. A atriz paulistana Mayara Sartori não pode reclamar de suas viagens na cadeira do hospital, onde recebeu sete doses de cetamina com o anestesista Tiago Gil, a quem foi encaminhada pela Beneva. “Nossa, a viagem é a melhor coisa do mundo. Você sente uma leveza e um bem-estar inacreditáveis”, diz ela, que desde a infância sofria com tristeza e ideação suicida e só aos 27 foi diagnosticada com depressão, ansiedade e síndrome do pânico.

Nove anos, meia-dúzia de médicos e uma dezena de medicamentos depois, ela já não respondia a vários desses antidepressivos, ansiolíticos e sedativos. Residente em Londres, ela veio ao Brasil para fazer o tratamento com cetamina no final do ano passado. “Continuei tomando os remédios e agora estou iniciando o desmame. “Em vários aspectos, é como se eu tivesse renascido. Me deu mais autoconhecimento, autoestima, confiança de que as coisas agora podem dar certo. Minha postura antes era muito mais pessimista, agora eu consigo diferenciar tristeza e depressão. Com a cetamina consegui enxergar o mundo lá fora”, conta.

O mercado

Seguindo o caminho aberto pela cannabis medicinal, começam a surgir startups e empresas de inovação em biomedicina focadas nos psicodélicos, é o caso da inglesa COMPASS Pathways e a norte-americana MindMed, ambas com ações disponíveis na Nasdaq. “O Brasil já está no radar de empresas internacionais, contudo os dados são incipientes. Algumas têm se destacado, como a Biocase Brasil, já do ramo da cannabis medicinal, e a startup Scirama.  As empresas do mercado da cannabis, tanto aqui como lá fora, veem os psicodélicos como um novo mercado a ser explorado. A nossa preocupação é que o processo de regulamentação não acabe por fazer do Brasil apenas um mercado consumidor da emergente indústria dos psicodélicos. Não faz sentido ocupar esse lugar, se nosso país é uma potência no campo da ciência psicodélica”, alerta o psicólogo Márcio Roberto, fundador da Associação Psicodélica do Brasil (APB).

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