Mariana Valente: “Tenho esperança em uma internet segura para mulheres” - Mina
 
Nosso Mundo / Reportagem

Mariana Valente: “Tenho esperança em uma internet segura para mulheres”

Advogada especializada em direito digital pesquisou, por 10 anos, como a misoginia funciona no ambiente digital e como mudar isso

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Texto não costuma ter cheiro, mas o conteúdo dos comentários de notícias e das replies recebidas por mulheres com relevância em plataformas como o X (antigo Twitter) parecem feder a esgoto. E é neste ambiente insalubre que a advogada Mariana Valente esteve mergulhada em 10 anos de pesquisa. Especializada em direito digital, a diretora do InternetLab, grupo de pesquisa sobre direitos humanos no ambiente digital, compilou suas descobertas no livro “Misoginia na Internet”, que está sendo lançado pela editora Fósforo. 

Professora assistente na Universität St.Gallen, na Suíça, Mariana começou a se interessar pelo tema gênero na internet em 2012. “Via as plataformas bloqueando imagens de nudez de mulheres em manifestações políticas, o que não era banido dos jornais. Essa diferenciação me intrigou”, conta nesta entrevista. Em 2014, com a criação do InternetLab, ela entendeu que havia um vácuo de pesquisas: a violência de gênero pelo campo do direito da tecnologia. 

É que, na época, nós discutíamos muito sobre o vazamento de fotos íntimas, mas a sociedade ainda não entendia o ataque como uma violência, muito menos de gênero. “Tinha um verdadeiro desespero, no campo ativista e jurídico, porque tinha um discurso de que a ‘internet é uma terra sem lei’, de que não tinha o que fazer”, fala a pesquisadora. A partir dos desdobramentos dessa extensa pesquisa, Mariana mapeou como a misoginia funciona no ambiente digital e traz algumas maneiras de como tornar esse lugar mais seguro para as mulheres. O trabalho dela se tornou tão importante que participou da CPI da ALERJ de Violência Cibernética contra as Mulheres, presidida pela deputada Martha Rocha. 

Chamamos Mariana Valente para falar sobre as particularidades da misoginia na internet, como o debate tem avançado e se, um dia, poderemos ter um ambiente digital menos violento. 

Quando começou a pesquisa, em 2012, o debate sobre direito no ambiente digital estava começando a ganhar força. Acha que as coisas melhoraram desde então? 
Hoje em dia há formulários para remoção desse tipo de conteúdo. Houve uma série de mudanças tecnológicas, porém, ao mesmo tempo, isso aconteceu quando a adoção da internet explodiu no Brasil e também os conflitos em torno das questões de gênero. É uma situação paradoxal: o debate avançou, mas as situações estão mais complexas. 

“A vigilância sobre os corpos femininos está em todos os espaços”

Em que momento as mulheres mais sofrem misoginia no ambiente digital?
Há muitos tipos diferentes de ataques e eles estão ligados à normativa de gênero diferente. Tem a sexualidade, por exemplo, no caso de vazamento de imagens íntimas. Este é um ataque que pode acontecer com qualquer mulher, porque a vigilância sobre os corpos femininos está em todos os espaços. Há grupos mais vulneráveis, mas podemos dizer que esta é uma moralidade transversal. Porém, tem um tipo de misoginia que se dirige às mulheres que quebram a norma de ser discreta, recatada, de ficar no espaço doméstico, privado. 

Então acontece quando a mulher decide se expressar nas redes sociais?
Quando ela se expressa e, principalmente, quando ela se expressa quebrando alguma norma. As mulheres que assumem posições como pessoa pública, representantes políticas ou comunicadoras acabam sendo grandes alvos de violência. Mas também não dá para dizer que é apenas contra elas, porque essa hostilidade é um recado para todo mundo. Se eu vejo uma mulher expressando suas opiniões políticas e sendo atacada por isso, é uma mensagem para que eu não fale o que penso.

Em que plataforma as mulheres são mais atacadas?
A misoginia aparece em todas as plataformas, mas a arquitetura faz muita diferença. Então as nossas pesquisas comparativas têm mostrado que o X, antigo Twitter, como um espaço particularmente violento. Poucos usuários têm o perfil fechado. E o próprio algoritmo do X entrega os posts que estão em alta, muitas vezes de quem você nem segue e, em alguns casos, não concorda. Isso faz com que os seus posts atraiam muita oposição. Ali, a violência aparece de uma forma mais marcada.

Qual o papel das plataformas para lidar com esses ataques?
As plataformas têm um grande obstáculo na moderação. Elas têm um desafio grande nas mãos sobre o que deve ficar, mas é inegável que, por outro lado, elas não estão cumprindo o papel delas na extensão que deveriam. Isso tem a ver com investimento em recursos de moderação de conteúdos, o que não está havendo. E estamos falando sobre as empresas mais lucrativas do mundo, né?

Como foi fazer essa pesquisa sendo mulher com presença digital?
Tenho que ter um distanciamento, mas este é um tema acadêmico e ativista para mim, e eu estou nas redes sociais. Eu também já fui pessoalmente atacada. Não dá para comparar com algumas coisas que eu vi, mas eu já senti medo, tanto nas vezes em que fui atacada quanto quando eu fiquei repensando se postaria alguma coisa com receio da violência que poderia vir contra mim.

No Brasil, criam-se leis e crimes para resolver algo. Isso não é preventivo.

Qual foi a parte mais difícil dessa pesquisa? Teve um capítulo desse livro, sobre as palavras que são usadas contra as mulheres, que eu tive que mergulhar nos sites mais misóginos que já vi. Foi emocionalmente muito desgastante, foi muito pesado porque eu conhecia algumas pessoas que estavam sendo atacadas.


E como você não deixou tudo isso te abalar emocionalmente?
Dizer que eu não me deixei abalar é forte, mas não parei de fazer a pesquisa, né? Tive algumas pesquisadoras que trabalharam junto comigo que, em algum momento, disseram que não queriam mais pesquisar o assunto. Mas eu faço terapia e tento pesquisar outros assuntos. Discutir a área da regulação da economia digital, cultura. São coisas que se cruzam, mas estão em outros ambientes, outros debates. Isso me ajudou a respirar. 

Você acha que há uma solução para diminuir a violência contra a mulher na internet?
As soluções passam por educação, saúde, bem como avanço da conscientização para mudar o padrão de debate, porque isso vai fazer uma mudança cultural em nosso país. Uma das coisas que aprendi com essa pesquisa é de que não existe uma Bala de Prata. Temos uma tendência no Brasil de criar uma lei e, mais especificamente, criar um crime para resolver algo. Não acho que essa seja uma saída. Isso tem seu papel, mas não é o que se espera: não é preventivo, não é reparador. Temos que pensar nesse problema de uma forma transversal. Um dos pontos seria a regulação das plataformas digitais. 

“Hoje há um maior reconhecimento sobre as violências que acontecem na internet”

E do ponto de vista individual, como as mulheres que estão na internet podem  proteger umas às outras?
O trabalho de educação digital é muito importante. Não no sentido de responsabilizar as vítimas, mas saber quais são as articulações possíveis para se defender caso algo aconteça. No livro “How to Be A Woman Online: Surviving Abuse and Harassment, and How to Fight Back”, de Nina Jankowicz, ela dá um passo a passo de como se proteger, desde como pedir para derrubar um conteúdo, entender as políticas de uso das plataformas e como articular isso para a sua proteção. E há, ainda, um trabalho comunitário. Quando uma mulher está sendo atacada no Instagram ou no Twitter, as pessoas podem se organizar para comentar, prestar apoio porque, em massa, isso faz muita diferença. Pensar nisso também em um lugar de ativismo. 

Você acredita que a internet pode ser um lugar mais seguro para as mulheres?
Tenho esse otimismo sim, acho que apesar dos pesares a gente avançou muito no debate e estamos em um novo momento em relação às plataformas digitais. Sempre prevaleceu a ideia de que aquele espaço era delas, que elas podiam fazer as coisas do jeito que queriam, mas estamos em um outro momento, pensando na regulação desses espaços. Houve, também, um grande avanço nas interpretações da lei, levando em consideração o gênero, como no caso da Lei Carolina Dieckmann, sobre o roubo de fotos. Tudo isso me dá bastante esperança, porque há um maior reconhecimento sobre as violências que acontecem na internet.

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