Jornalista Tatiana Vasconcellos conta por que evita usar salto alto - Mina
 
Seu Corpo / Reportagem

Pelo direito das mulheres descerem do salto e usarem tênis onde bem entenderem

Nos embalos do burburinho causado pela foto da Renata Vasconcellos de tênis no Jornal Nacional, a jornalista Tatiana Vasconcellos fala sobre a sua relação com a imposição do salto alto e a escolha pelo conforto que fez há alguns anos

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Sou entusiasta do tênis. Não do esporte, do calçado. Fui uma adolescente atleta que usava tênis o dia inteiro, pra treinar e pra ir pra escola. O sapato passou a fazer parte do meu armário quando ingressei na adolescência e ainda mais na vida profissional. Fui trabalhar em um lugar em que as mulheres quase diariamente usavam salto. Era meu primeiro emprego, tinha 18 anos e achava bonito. “O salto deixa as mulheres mais elegantes”, era o que eu ouvia (ainda ouço) e no que acreditava. 

Minha maior ousadia foi comparecer a uma festança usando vestido de estilista da moda e: tênis

Nunca me acostumei a espremer meus pés de atleta num sapato que joga todo o peso do meu corpo para os dedos, mas “a mulher fica tão mais bonita de salto”. E lá ia eu ao trabalho, andando até o ponto, em pé no ônibus e me equilibrando no caminho pelas calçadas esburacadas do centro de São Paulo. Depois tinha a volta. Não era gostoso, mas ficava tão “bem arrumada”. 

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Já no jornalismo, comemorei demais a moda do terninho com tênis do começo dos anos 2000. Trabalhava em uma emissora de TV e ficava “bem arrumada” do tornozelo pra cima, bastava. Anos depois, na reportagem diária da Rádio CBN aprendi na prática que esse negócio salto como sinônimo de elegância não servia de nada quando era preciso fazer uma cobertura de incêndio, ou de rebelião em carceragem de distrito policial, ou qualquer outra que exigisse agilidade para deslocamento rápido em superfícies irregulares. Teve uma semana em que fui de salto cobrir enchente e, no dia seguinte, arrependida, quando meti uma camiseta e um All Star no pé pra ir trabalhar, a pauta era uma reunião de empresários na Fiesp. Acontecia de estar desajustada, mesmo quando mirava na adequação. 

Gosto do meu corpo sobre o salto, coluna ereta, bunda pra trás, cabeça alta. Pena que não sou capaz de caminhar 10 passos em cima dele. E, olha, insisti muito. Uma vez, cerimônia de prêmio, tinha feito um procedimento cirúrgico simples, não podia usar sapato alto. Foi uma questão. Chateada, calcei uma sandália rasa que combinava com o vestido e fui. Me achei horrível, com uma postura negligente, relaxada, torta… Mas tão aconchegante. 

Nada contra o salto. Tudo contra os rígidos códigos que nos aprisionam

Acho que foi aí que aboli o salto. Não fazia nenhum sentido sofrer pra parecer bonita, ou arrumada, ou elegante ou sei lá o quê. E do sapato baixo para o tênis foi um pulo. A maior ousadia foi comparecer a uma festança usando vestido assinado por estilista da moda e: tênis. Quem vai dizer que não tava elegante? Estava, sim. 

Beleza é um conceito filosófico, não tem nada de objetivo. O que um par de tênis nos pés comunica sobre nós? “Vestir-se é um ato político. Nada do que vestimos é aleatório, neutro ou puramente pragmático. Por meio da moda, conseguimos compreender e até mesmo transformar a sociedade”, dizem Mayra Cotta e Thais Farage no livro Mulher, roupa, trabalho – como se veste a desigualdade de gênero, Ed. Paralela. “A análise de vestimentas é uma chave interpretativa central para entendermos hábitos, culturas e valores”. 

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Elas contam que recentemente, no Japão, as mulheres decidiram se manifestar contra a imposição do calçado nos ambientes formais de trabalho. Se juntaram, recolheram milhares de assinaturas e entregaram o documento ao ministro do trabalho japonês, em 2019, considerando que a exigência era uma manifestação violenta do patriarcado.

Nada contra o salto, inclusive uso alguns bem cômodos quando estou a fim. Tudo contra os rígidos códigos que nos aprisionam. Voltando ao livro, “o salto não é algo ruim por princípio, ou seja, não há uma essência própria do sapato de salto que nos permita defini-lo como algo a ser necessariamente repudiado. Para muitas pessoas, o salto alto pode representar coisas incríveis, aliás”. Autoconfiança, segurança, elegância, poder.

Também me sinto assim eventualmente sobre uma plataforma de 10 centímetros de altura. Mas, para mim, o valor principal é o conforto, o bem-estar. Casamento? Um agradável e estiloso tênis. Evento corporativo? Tênis. Almoço ou jantar com amigos? Um arrumadinho tênis. Show, cinema, teatro? O despojado tênis. Caminhar pelas cidades? Nada mais adequado do que um bem macio. Apresentar o Jornal Nacional? Ué, tênis! Por que não? 

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