“A rainha é o arco-íris, a felicidade, a leveza na vida do homem. E o homem tem o fardo da responsabilidade, da proteção, da provisão e da liderança. O que acontece quando a mulher divide o fardo com o homem? Ela não tem energia para estar feliz, para ser esse arco-íris”, declara Larissa Töpper na sua conta com 1 milhão de seguidores no TikTok que celebram a energia feminina.
Na mesma rede social, Bruna Ferrari, que tem mais de 400 mil seguidores, decreta: “Coisas que fazem um homem ficar obcecado por você: primeiro ponto, deixar ele fazer o papel de homem dele”. Teoria semelhante da que prega Jaque Barbosa no Instagram para mais de 130 mil seguidores. Em uma sequência de stories, ela afirma que “uma mulher precisa de um homem e um homem precisa de uma mulher que precise dele”.
Conteúdos como os de Larissa, Bruna e Jaque podem ser encontrados a baciadas nas redes, em diferentes roupagens – basta um clique na #energiafeminina. Mais que uma hashtag, essas duas palavras juntas abrem os portais de um universo distópico, onde influenciadoras belas, recatadas, do lar e de bochechas marcadas com filtro rosa bebê convidam para uma jornada de resgate da feminilidade, celebrando essa tal de energia feminina.
Feminilidade essa que, segundo elas, foi confiscada pelo feminismo, inverteu papéis de gênero e nos aprisionou num limbo de infelicidade amorosa. “O grande problema dos relacionamentos modernos hoje é que tudo está empurrando a mulher para a energia masculina e, o homem, para a feminina. Então tem muita mulher aí que é o ‘Carlão’ do casal e muito homem banana”, define Jaque em um Reels, espaço em que frequentemente aconselha suas seguidoras a desocuparem a “cadeira yang” e se entregarem à “essência yin”.
As coaches de feminilidade contam com uma agenda moral retrógrada e arriscada
Já Bruna não recorre à filosofia chinesa dos opostos complementares, mas endossa o discurso. Em seus vídeos, a influenciadora dá dicas práticas de como se tornar uma “mulher de alto valor” para encontrar um “homem de alto valor” – não à toa, a definição é a mesma usada pelos machões red pills, cancelados recentemente, mas que seguem vivíssimos pregando misoginia à uma audiência cativa nas redes.
Segundo ela, as moças valorosas devem “exalar feminilidade” em tempo integral – seja nos looks de academia (“use shorts, mas nada daqueles curtos e justos demais”), no primeiro date (“vá de maquiagem leve e unhas bem-feitas”) e até nos Stories (“não poste bêbada ou com a garrafa virando na sua boca”).
Além da falácia da inversão de papéis e da cartilha estética, as coaches de feminilidade também contam com uma agenda moral retrógrada e arriscada. Larissa, por exemplo, recomenda em uma série de 24 stories que as mulheres deixem suas finanças aos cuidados do parceiro.
“O dinheiro representa para o homem essa autonomia, esse ‘eu posso proteger a minha mulher’. Então, ele estar no domínio, mesmo que ilusório porque você trabalha e ganha o seu dinheiro, decidindo na planilha, passando o cartão, vai empoderar ele”, sugere.
Mas afinal, o que é a energia feminina?
A psicóloga Valeska Zanello é categórica ao afirmar que a tal energia feminina não existe. A autora do livro Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação explica que a ideia de uma ordem natural onde homens são líderes fortes e provedores e, mulheres, delicadas, sedutoras e maternais, não passa de construção social.
“O que existe é um conjunto de habilidades e emoções que foram historicamente atribuídos a pessoas do sexo masculino e feminino, marcado por uma relação de poder com profundas desigualdades”, explica.
“A construção da feminilidade é branca, com traços europeus e inerente a um antagonismo racial”
Para a psicanalista Joice Beth, autora do livro Empoderamento, o fato de ainda perdurar essa definição de feminilidade se deve a uma falha da luta feminista. “O feminismo não mergulhou fundo em questões que eram fundamentais, como a transsexualidade. Era um ponto que vinha para quebrar esse essencialismo do que é ser mulher. Ser mulher é ser gente!”, diz Joice. “Como o movimento não bancou essa disputa narrativa de nos desconectar dessa essência feminina compulsória, essa ideia sempre esteve aí e vai se fortalecendo.”
A psicanalista também destaca o caráter racista do padrão estético de feminilidade – vale lembrar que a maioria das coaches é branca, de cabelos lisos. “Ninguém chama uma mulher negra de delicada, sensível e passível de ser protegida. A construção da feminilidade é branca, com traços europeus e inerente a um antagonismo racial”, pontua Joice.
As publis da mulher de alto valor
Assim como uma influenciadora fashion ou fitness, as coaches de feminilidade lucram na velocidade com que o engajamento aumenta. Em uma publicidade recente para uma marca de bijuterias, Bruna Ferrari indicou às seguidoras “acessórios delicados que transmitem feminilidade”.
Larissa Töpper ministra o curso Vida de Rainha, onde promete revelar às mulheres “tudo para aumentar a energia feminina e se tornar magnética para ele”. Jaque Barbosa vende mentorias e tem três e-books à venda em sua conta no Instagram.
Para a escritora Renata Corrêa, autora do livro Monumento Para a Mulher Desconhecida – Ensaios Íntimos Sobre o Feminino, os ventos da extrema-direita são favoráveis à maré das coaches. “As pautas conservadoras vão envelhecendo com as mudanças sociais e se tornando super agressivas. E aí, como torná-las palatáveis ao grande público? Leva-se essas mesmas pautas para as redes sociais com uma roupagem pop”, explica.
“O discurso dessas coaches é do tipo ‘por trás de um grande homem há uma grande mulher’, que é a ideia de que o homem vai brilhar e ter destaque com o apoio da mulher. E o que é esse apoio? O trabalho não-remunerado das tarefas de cuidado com a casa, com os filhos. E a mulher que sai desse padrão e almeja outras coisas para sua vida, está não cumprindo seu papel natural”, diz a escritora.
Culpa, caos, derretimento
Renata aponta ainda outra conhecida ferramenta de opressão machista que explica o alto interesse das mulheres que investem financeiramente na ladainha das coaches: a culpabilização. “A sociedade vende um discurso meritocrático do ‘só depende de você’. Então, elas passam a pensar que, se os homens se ressentem do sucesso delas na carreira e não as querem, isso não é um problema sistêmico, é um problema delas”.
Nessa visão, a mensagem que fica é: a culpa é sua, mulher, que está desconectada com sua energia feminina. “E deve ser muito reconfortante olhar para os conteúdos dessas influenciadoras e pensar: ‘só depende de mim ser amada, respeitada e ter um relacionamento de sucesso'”.
A escritora atenta ainda para o tom despolitizado das coaches, que desconsidera por completo pontos essenciais como os vários tipos de violência da física à patrimonial – que uma mulher está sujeita em um relacionamento. “É um discurso perigoso”.
“A constituição humana é mais complexa do que essa polarização entre masculino e feminino”
“Quem acredita nele, pode se manter em uma situação de abuso porque ao invés de entender que o parceiro é tóxico, vai acreditar que tem algo dentro da sua identidade e da sua personalidade que não está em harmonia com ‘o feminino’. Então você vai tentar se modificar para fazer aquela relação dar certo”, pondera.
A psicanalista Maria Homem, autora do livro Coisa de menina? Uma conversa sobre gênero, sexualidade, maternidade e feminismo, é mais otimista. Para ela, o fenômeno das coaches é reflexo que toda mudança de paradigmas causa.
“Nos últimos séculos, diversas pesquisas mostraram que o processo de formação e de constituição subjetiva humana é mais complexa do que essa simples polarização entre masculino e feminino. E isso pode trazer angústia, porque a gente não compreende exatamente a vida, o mundo e o que fazer nas relações”, afirma Maria.
Ela acredita que, por isso, existe essa vontade de voltar ao passado. “Vem dessa ideia de que antes era melhor e que agora é caos, angústia, derretimento e crise. Mas eu arriscaria dizer que o retorno àquela ordem, tal e qual, já não é mais possível”.