Ela é a heroína da faxina. De vassoura na mão e galochas nos pés, vai abrindo caminho e pisando nas baratas. “Se eu não pisar, elas sobem em mim”, diz Ellen Milgrau, relatando uma cena recorrente no seu dia a dia. A modelo e influenciadora se dedica, de forma voluntária, a limpar a casa de pessoas que enfrentam depressão, ansiedade e acumulação compulsiva, como uma maneira de ajudá-las a recuperar alguma clareza mental, a partir da limpeza e organização do ambiente em que vivem.
Na luta contra a depressão, a dificuldade em manter a casa limpa é um dos maiores desafios. Boa parte dessas pessoas são acumuladoras, acabam rodeadas de lixo, pilhas de roupas e louças sujas, alimentos e remédios vencidos e até larvas, ratos e insetos, em cenários chocantes, que ela transforma em um antes de depois inacreditável nos vídeos da “Faxina Milgrau”.
“Se a gente não limpasse direito, o chinelo da minha mãe cantava”
Os episódios são exibidos nos canais da modelo, que somam 3 milhões de seguidores, entre TikTok, Instagram e YouTube. O contraste entre o glamour do mundo da moda e a dureza das faxinas chama a atenção em suas redes, ainda que Ellen vista um figurino fashion para pegar no pesado.
Além dos produtos de limpeza, Ellen vem munida de muita empatia, até porque ela sabe o que é estar nesse lugar. Tem 31 anos e convive com a depressão há mais de dez, quando foi diagnosticada e passou a fazer uso contínuo de medicação. Na época, ela tinha voltado ao Brasil, depois de cinco anos entre Paris, Milão, Londres e NY, trabalhando com grandes marcas de moda, como Prada, Paco Rabanne e Valentino. “Voltei com uma mão na frente e outra atrás”, lembra, ao contar sobre a relação abusiva com um namorado alemão. “Gastei todo o meu dinheiro com esse boy, fiz as piores escolhas.”
Paulistana, criada na Zona Leste, filha de um casal de comerciantes evangélicos, Ellen e a irmã, Elissandra, dez anos mais velha, conviveram com a rigidez da mãe no cuidado com a casa. “Se a gente não limpasse direito, o chinelo cantava”, lembra.
Aos 19 anos, voltou para a casa dos pais. Arrasada com o fim do relacionamento e sem perspectivas de trabalho, veio a depressão. “Não conseguia tomar banho, comer, fazer nada.” Amparada por amigos, consultou um psiquiatra e recebeu o diagnóstico de transtorno bipolar e comportamento suicida. “Tentei mais de uma vez”, confessa.
Aos poucos, a vontade de viver e os trabalhos voltaram a aparecer. Foi nessa época que Ellen Melo virou “Milgrau”, ao postar vídeos e fotos escrachados do seu dia a dia, sem filtro ou maquiagem. Daí o nome “Milgrau”, que ela escolheu por “zueira” e acabou pegando.
O papel de faxineira também surgiu por acaso, quando resolveu ajudar um amigo deprimido limpando a casa dele. Inspirada em uma influenciadora estrangeira, compartilhou o antes e depois no TikTok. Em três dias, viralizou e alcançou mais de um milhão de visualizações. Com o sucesso na plataforma, foi convidada pela MTV para apresentar o programa “Ridículos” ao lado de Hugo Gloss e Felipe Tito, mas a atração não vingou. “Ainda quero voltar à TV para dar voz à causa da depressão.”
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Foi nesse momento que decidiu criar o projeto “Faxina Milgrau”, que em dois anos soma 30 faxinas – a maioria em São Paulo e uma no Rio de Janeiro. Em 2023, Ellen colocou em ação o quadro “Faxina Milgrau Celebrities”, em que artistas contribuem para a causa. Na estreia, convidou a cantora Karol Conká. Depois vieram Linn da Quebrada, Enzo Celulari e Fernanda Lima, entre outros.
“Não gosto de limpar minha casa, só a casa dos outros”
Com uma equipe de voluntários, hoje, ela conta com o patrocínio de uma marca de limpeza e outra de eletrodomésticos, embora ainda use recursos próprios na produção – seu rendimento vem da publicidade. Ellen mora em uma casa na Granja Viana, no meio de muito verde, e confessa que deixa uma loucinha na pia para lavar no dia seguinte. “Não gosto de limpar minha casa, só a casa dos outros”, ela se diverte.
Sua visão, contudo, vai além do pó e da sujeira. Ao mostrar que um ambiente limpo pode ter um impacto significativo na depressão, Ellen quebra estigmas ao abordar a saúde mental de maneira aberta, destemida e inclusiva, provando que a empatia pode se manifestar de diversas formas, inclusive por meio de água e sabão.
Cada canto organizado é um testemunho da transformação interna que ocorre na vida das pessoas e também da própria influenciadora, que encontrou no trabalho pesado uma forma terapêutica de lidar com seu caos interno. Em entrevista, remarcada por conta de uma faxina que atrasou, Ellen Milgrau relembra sua trajetória e reflete: “A faxina é uma terapia para os dois lados. Ajudo as pessoas a acabo me ajudando também.”
Você teve de remarcar essa entrevista por causa de uma faxina que não conseguiu terminar. Como foi isso?
Foi a faxina de uma senhora de 78 anos, acumuladora. Achei que ia terminar em três dias, no máximo, mas depois de retirar o lixo, vimos que a casa não tinha nada, estava crua, como um apartamento que se compra na planta. Chão de concreto, paredes sujas, cocô de bicho. Resolvemos fazer uma obra. Não deu pra aproveitar nada do que ela tinha, tivemos que comprar tudo de novo, sofá, geladeira etc. Como não tenho uma equipe de produção, sou eu, meus amigos e voluntários, isso leva tempo. Fomos comprar as coisas enquanto o pedreiro estava na obra, ao mesmo tempo administrando a vida da senhora no hotel, enfim. Demorou mais que o previsto, sete dias para terminar.
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Qual máximo de tempo que leva uma faxina?
Essa foi a que mais demorou, uma semana. No mínimo, leva um dia, um dia e meio, contando a diária de 12 horas. Mas se é casa de acumulador, demora uma média de dois a três dias.
Faxina é modo de dizer, né? O que você faz é quase um trabalho humanitário, pois é difícil não se chocar, nos vídeos, com a quantidade de lixo e sujeira acumulada nas casas. Você ainda se choca?
Eu não me choco mais. Porque já vi de tudo, só falta encontrar uma pessoa morta no meio da casa. É cachorro e gato morto, larvas, baratas…
Você não tem medo de barata?
Tenho agonia de barata. Mas com muita gente junto não tenho medo. Se eu estiver sozinha e aparecer uma barata, vou ficar com medo. Quando encontro uma na minha casa, uso spray, mas na faxina são tantas que tenho que sair pisando mesmo, senão elas sobem em mim. Por isso uso galochas.
“Ter as coisas organizadas me ajuda mentalmente, é o que me mantém na linha”
O cheiro a gente não vê no vídeo, como você lida?
Quase sempre é insuportável, muito forte, mas vai chegando uma hora que até me acostumo. Uso duas, até três máscaras, quando está muito forte. Mas durante o dia vou me acostumando, quando vejo já estou sem máscara. Só quero terminar.
Sempre gostou de fazer faxina? Como foi a sua criação em relação a limpeza?
Minha casa eu não gosto de limpar. Gosto de limpar a casa dos outros! Mas vem de berço, sim. Minha mãe sempre foi rígida com limpeza. Venho de uma família simples, meus pais são comerciantes, têm uma loja de material e construção. Não tínhamos empregada. Enquanto eles trabalhavam, éramos eu e minha irmã que fazíamos o serviço, e nunca era o suficiente. O chinelo cantava se a casa não estava arrumada. Até hoje, a casa da minha mãe é um brinco, dá para comer no chão. Depois, fui morar fora e percebi que não curto sujeira. Dividindo a casa com outras modelos eu já surtei, pensei: “Não vou conseguir ficar aqui, elas são porcas”. Logo fui morar sozinha. Ter as coisas organizadas me ajuda mentalmente, é o que me mantém na linha.
Por que “Milgrau”?
Ah, menina, essa é uma história de quando eu era jovenzinha, revoltada. Quando voltei a morar no Brasil, aos 19 anos, meio que tinha desistido de tudo. Tinha levado um pé na bunda de um namorado alemão, perdi tudo o que tinha ganhado. Voltei para umas agências, mas as pessoas me controlavam muito, não queriam nem deixar eu postar as fotos que eu gostava, sem maquiagem, mostrando a real. Um dia, pensei: “Não quero mais, cansei de ser apagada”. Para zoar, falei: “Ah, é? Então, vou fazer tudo do meu jeito, agora sou a Ellen Milgrau”. A palavra veio do nada. Isso fez com que rompessem meu contrato, mas uma outra agência que me observava viu que mudei de nome, quis me agenciar e me deu carta branca. “Será, véi?”. Estranhei. Tinha colocado esse nome por causa da zueira… Mas foi e ficou.
Como você identificou a depressão?
Depois do pé na bunda, voltei para o Brasil com uma mão na frente outra atrás. Minha vida estava boa, consolidada e eu tinha esse namorado. Larguei mão de tudo, gastei todo o meu dinheiro com esse boy, fiz as piores escolhas pra ficar com ele. Acabei voltando sem perspectiva, fora de medida, sem dinheiro, morando com meus pais. Desabei. Em uma semana, me vi num buraco. Não conseguia comer, tomar banho, levantar do sofá, nada. Meus pais não entendiam, depressão é tabu. Achavam que era preguiça. Falavam: “Levanta, vai lavar uma louça”. Mas não é assim quando sua cabeça te prende. Simplesmente é um peso, um fardo muito grande, você não tem como levantar.
Quem te salvou?
Aí, meus amigos falaram: “Você não está bem, vamos levantar, fazer alguma coisa?”. Eles me pagaram uma consulta no psiquiatra. Eu não tinha noção do que era aquilo. Fui diagnosticada com bipolaridade, comecei a fazer terapia, já faz mais de dez anos. É um tratamento contínuo.
Qual foi o seu fundo de poço?
O momento mais difícil é que sua cabeça não deixa você sair daquela negatividade. O sol pode estar brilhando, pode tudo estar acontecendo e você fala: “a vida é uma bosta, não quero estar aqui”. É assim, a cabeça que manda na gente, não tem um momento mais doloroso porque o sentimento é relativo quando você cai nele.
Esse “não quero mais estar aqui” foi literal? Você já declarou em outra entrevista que tentou tirar a própria vida.
Eu tentei mais de uma vez, tomando coisas. Mas deixei uma carta de despedida e me acharam. Me levaram para o hospital. Hoje, já nem me lembro mais dos comportamentos de antes. Vez ou outra tenho umas piras, tem dias em que olho as coisas e não vejo sentido, mas não a esse ponto. Fui me reerguendo, trabalhando, me tratando.
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Daí você vai para a faxina e as coisas ganham sentido.
É isso. As faxinas são uma puta lição de como a gente reclama da vida, sendo que tem gente em situação muito pior.
Porque a faxina ajuda na saúde mental?
Você consegue se organizar, é uma coisa a menos para se preocupar, quando tem pensamentos te fechando. Imagina você triste, numa casa suja, e não consegue sair daquilo, não consegue arrumar a casa… É muito importante manter a organização do ambiente para organizar a mente.
É “ter-a-pia”, no sentido de encarar uma pia de louça suja, que resulta num efeito terapêutico.
Sim, a faxina ajuda para os dois lados. É uma terapia que ajuda quem recebe e quem dá.
“Quando termino, chego em casa com um brilho no olhar, fico muito feliz mesmo”
Você não revela a identidade dos donos das casas. Como costuma ser a reação das pessoas?
Ah, ontem entregamos a casa dessa senhora de 78 anos, ela chorou. A maioria chora muito. Depois o semblante muda. É muito bom, gratificante. Até a energia da pessoa muda.
E você, como se sente ao voltar para casa?
Me sinto realizada. Com mais uma missão cumprida. Adoro missões, coisas a serem feitas. Quando termino, é louco, porque chego em casa com um brilho no olhar, parece que a dopamina liberada é muito grande, fico muito feliz mesmo.
Deve chegar exausta também. Como se cuida, ainda faz outras atividades físicas, tipo academia?
Faço academia para me fortalecer, porque preciso de músculos, mas tem dias que chego podre. O cansaço é recorrente, e às vezes mais mental do que físico. É muita informação, muita coisa para resolver. Mas aí, ao chegar, faço uns banhinhos de alfazema para dar uma aliviada na energia. Gosto de ler. Amo livros de serial killer.
Tudo começou sem pretensão, mas virou um business. Como é isso na sua cabeça?
Na pandemia, tudo começou a ficar estranho. Estava de novo meio pra baixo, querendo fazer alguma coisa útil. Fui ajudar um amigo que estava deprimido, fazendo uma faxina para ele. De repente, começou a chegar pedido, acho que era para ser. Os parceiros que eu tenho são super legais. Poucos e bons. Me apoiam, entendem, e não me cobram muito. Produto de limpeza bom é caro, e eles estão lá junto mesmo. Não me pedem para mostrar os produtos assim e assado. Fora isso, como embaixadora da marca de limpeza, crio conteúdo específico para eles. Virou um business voltado pra faxina.
E os ajudantes, como você seleciona? Eles curtem?
Tenho uma equipe. Todo santo dia, sem faltar um, tem gente mandando mensagem no inbox pra ser voluntário. Mas não tenho como lembrar, é muita gente. Então, criei um grupo no telegram, tipo um banco de gente, ou divulgo no Insta para amanhã, tal hora. No caso dos famosos, no começo, procurei alguns, para expandir, ter mais alcance. A ideia era colocar artistas para dar voz ao projeto. Comecei com quem já era amigo, caso da Carol e da Lynn. Nisso, outros viram e pediram para participar. Em geral eles adoram, é legal ir no meio do caos e depois ver o resultado da casa limpa.
E depois, as pessoas deprimidas conseguem manter a arrumação?
Muitas pessoas que foram ajudadas relatam que conseguiram manter a casa em uma situação bem melhor. Já recebi vários retornos de que a pessoa estava mais motivada com a limpeza.
O contraste entre o glamour do univesro da moda e a dureza das faxinas chama a atenção nas suas redes. Como concilia esses dois mundos?
Sou mais realizada, completa, feliz e bem paga hoje, fazendo faxina, do que trabalhando com moda. Faço um trabalho ou outro na moda, mas não com a mesma frequência, porque resolvi dedicar minha vida a este projeto. Seleciono o que faço, e também sou influencer, entrego publicidade. Hoje mesmo está uma loucura, acabei de gravar uma, terminando aqui tenho que gravar outra. Se a faxina demora mais que o esperado, minha vida vira uma bagunça.
Sua família te apoia?
Normalmente, eles curtem. No início, não levavam a sério: “Tá maluca, que mina doida, eu, hein?” (risos) Mas depois, com os vídeos, meus pais se deram conta que depressão não é frescura. Que muita gente vive assim. Óbvio que nunca cheguei na situação dessas pessoas que atendo, até porque morava com eles. Tinha a casa em ordem.
“Quero levar a faxina para um programa de TV”
Gostaria de levar a faxina pra TV ou escrever um livro? Quais os planos futuros?
Escrever livro, não. Não tenho tudo isso de palavra. Mas gostaria de levar a faxina para um programa de TV, sim, como existe lá fora. Até porque a realidade do brasileiro é outra, a gente precisa botar isso em pauta, mais do que nunca. Lembrar que a saúde mental pode ficar ainda mais precária quando a pessoa chega nesse transtorno de acúmulo, de depressão. O buraco aqui é mais embaixo. Há pouco apoio, é preciso dar voz à depressão.
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Qual conselho você daria para as pessoas que convivem com alguém deprimido?
Diálogo. Um ombro amigo é muito importante, uma entradinha para entender, ajudar, ouvir a pessoa que está em sofrimento. Se todo mundo soubesse dialogar, de coração, seria mais simples ajudar. Mas tem que ser um diálogo de verdade. A pior coisa quando você tem depressão é a pessoa falar que está te ouvindo, mas com aquele ar de “vai, fala logo”. Às vezes eu só queria conversar, chorar, falar, e via que o outro não estava ali de verdade.
Você desenvolveu uma dinâmica para a faxina. Quais as dicas?
Primeiro, tirar o lixo, recolher tudo o que está no caminho para ver o que presta e que não presta. É preciso tirar tudo da frente para ter a visão do espaço, o nível de sujeira. Depois, me divido com a equipe, cada um pega um cômodo.
O que você mais gosta de fazer na faxina?
Gosto de limpar fogão. Um bom produto, bucha, água, pronto, sai toda a gordura, acabou.
Quem faz a limpeza da sua casa? Você tem faxineira?
Mesmo não gostando de fazer para mim mesma, eu faço. Mas toda quarta-feira tenho a ajuda de uma moça que vem e faz a limpeza pesada. Depois, durante a semana, vou mantendo.
E você deixa aquela loucinha na pia?
Deixo! Tem dias que depois da janta eu só quero deitar e ficar jogada. No dia seguinte, lavo. É bom ter a pia limpa para fazer um cafezinho da manhã.