Entrevista com Vera Iaconelli sobre coletividade, parentalidade e mais - Mina
 
Suas Emoções / Entrevista

Vera Iaconelli: “O autocuidado só tem sentido se incluir nessa conta o cuidado com o outro”

A psicanalista Vera Iaconelli alerta para o perigo de cultivarmos o bem-estar individual deixando de lado o cuidado coletivo. Conta como superou o período da menopausa e garante: “Adoraria ter o colágeno dos 30, mas odiaria ter a cabeça que tinha aos 30”

Por:
Fotografia:
17 minutos |

Nos últimos anos, a psicanalista Vera Iaconelli virou referência em tornar acessível explicações sobre a condição humana, a maternidade, a gestação, a relação entre pais e filhos e as questões de gênero. Colunista da Folha de S.Paulo há quase seis anos, em seus textos semanais ela aborda esses e outros assuntos de forma clara, assertiva e colocando o dedo na ferida. 

Vera é diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, com sede em São Paulo, e ganhou ainda mais notoriedade durante a pandemia. Todo mundo queria ouvir o que a psicanalista tinha para falar sobre as angústias, dúvidas e desejos, sabendo, inclusive, o quanto isso mexeria com a nossa zona de conforto. Porque Vera é especialista em nos tirar desse lugar. Nessa conversa, ela faz isso diversas vezes, desde quando critica os manuais a que pais e mães têm se apegado para criar os filhos até quando acende um alerta sobre o perigo do autocuidado virar falta de cuidado coletivo.

+ Leia também: Silvia Ruiz: “O estilo de vida das mulheres de 50 anos mudou, não se espantem”
+ Leia também: Tati Bernardi: “Quem mandou eu comprar o sugador de clitóris foi meu psiquiatra”

Numa conversa franca, a psicanalista fala também das próprias vulnerabilidades. Conta como aprendeu a ressignificar seus cabelos brancos e discorre sobre a jornada que enfrentou – incluindo uma depressão – até encontrar a luz no fim do túnel da menopausa. Tá pronta pra ser cutucada? Então vamos:

A pandemia fez as pessoas se atentarem para a importância do autocuidado, tanto físico quanto mental. O que você pode dizer sobre esse movimento?
Eu acho que o autocuidado veio para ficar. Teve um boom de buscas por autoajuda, psicologia, yoga, tudo o que pudesse ajudar a lidar com o estresse, que não era possível de escapar. A ideia do autocuidado vir em primeiro plano é ótima, mas na psicanálise tem sempre um senão. Isso é importante, desde que a gente não confunda com uma visão que é muito forte hoje, que é a individualista. Eu cuido de mim, o mundo está acabando, mas estou aqui na minha yoga, na minha meditação. E se está tudo bem dentro de mim, dane-se o resto. Essa é a toada do neoliberalismo. Se você resolver o que está se passando com você e ficar bem, não importa que desbarrancou e morreu um monte de gente na praia, porque eu mando um pix e me livro disso, me sinto bem.

O autocuidado, então, só faz sentido se for pensado no coletivo?
Sim, esse olhar do autocuidado só tem sentido se for pensado como um cuidado que você cuide de você, para não ser um peso para o outro, mas que também inclua nessa conta, cuidar do outro. Senão, a gente vai reproduzir um discurso neoliberal que leva todo mundo para o precipício, como tem levado. A ideia de autocuidado é muito bem-vinda desde que não seja absolutamente individualista. Senão, todos padecemos.

“Quando a gente acha que pode não pagar nada para viver em sociedade, a gente acaba perdendo tudo”

No seu ponto de vista, o que significa o bem-estar?
Para a psicanálise, um dos grandes termos do Freud, que chega quase a ser um conceito, é o mal-estar. Então, o bem-estar, para mim, soa como uma coisa quase marciana [risos]. O que ele quer dizer com isso? É muito interessante: “Não existe possibilidade do humano estar em sociedade, ou seja, na própria fundação da civilização, sem um preço”. Cada um vai ter que perder alguma coisa. Ou seja, eu não posso fazer tudo o que quero. Então, você faz algumas coisas e outras não; eu faço o que posso e a gente vai negociando para que cada um perca um pouco e ganhe um pouco. E não que algumas pessoas ganhem tudo e outras percam tudo. O mal-estar é inerente às civilizações.

Esse mal-estar muda de geração para geração?
Sim. Cada geração fruto desse mal-estar paga de formas diferentes e tem sintomas diferentes. Estamos em uma geração que acha que pode não pagar nada para viver em sociedade e nisso a gente acaba perdendo tudo. Porque, se eu perco pouco, ganho um monte de coisas. A ideia de que eu não vou perder nada não se sustenta e todo mundo vai ficar sem nada. Eu não vou à praia e ligo um som alto para ouvir minha música, porque também não quero que o outro ligue. Se todo mundo ligar um sonzão, ninguém vai ouvir nada. É claro que tem gente que faz isso, mas não é civilizado. Então, abro mão de alguma coisa, mas fico na praia em silêncio. E é legal também. A ideia de bem-estar vai na contramão do Freud se ela não contemplar o mal-estar inerente à existência humana, que é o preço que a gente paga para conseguir conviver. Porque a gente também não consegue usufruir das coisas que temos. Estamos sempre sonhando com um momento no qual tenhamos tudo. Esse é um tema muito grande para psicanálise.

“As coisas têm que valer muito a pena. Senão, é melhor dizer não”

Um tema grande e complexo também, né?
Vou dar um exemplo. As pessoas têm dó quando o filho vai parar de mamar. “Ah, ele vai perder o peito.” Escuta, mas vai ganhar a feijoada, a panqueca. A gente abre mão de uma coisa e vai ganhar o mundo. “Ah, ele não vai poder ser o namoradinho da mamãe.” Não, não vai poder ter a mamãe, mas, eventualmente vai poder ter outras mulheres e homens que quiser. Se você ficar fissurado na mamãe, vai ser daquelas pessoas que não conseguem ter uma vida. Essa perda é a condição inerente aos outros ganhos. Isso o Freud chama de castração. Castração não é perder um pedacinho do corpo. É falar: “Vou ter que abrir mão disso, senão não vou ganhar as outras coisas”. O problema é quando o bem-estar é visto como uma experiência sem perda. Se for assim, vai acarretar mais mal-estar ainda. Você não ganha nada, só perde.

+ Leia mais: Andréia Sadi: “Gosto de estar no controle de tudo. Meu caos tem método” 
+ Leia mais: Djamila Ribeiro: “Autocuidado é fundamental para sobrevivência”

E como você, Vera, mantém o seu bem-estar emocional e físico?
O que eu faço para não pirar? Olha, aprendi ao longo desses anos de análise a tentar, na medida do possível, mas não sem limitações, ser o mais honesta que der comigo mesma. Então, estou sempre me checando, se aquilo que estou fazendo corresponde ou não ao meu desejo. As minhas escolhas são para agradar alguém ou dizem respeito ao que eu quero? A gente faz muitas coisas que não queremos, aceitamos muitos compromissos de trabalho, nas relações familiares. E é importante que a gente saiba que está fazendo uma concessão ali. Acho que escolher as concessões, que são inevitáveis, é um mal-estar, não tem jeito. Mas se aproxima mais do bem-estar. Em nome do que eu levanto e faço tal coisa? É por prestígio? É para agradar o outro? E quanto me custa agradar o outro? Essa busca por ser honesta em relação às minhas concessões e às minhas motivações tem me ajudado a aguentar o tranco de existência, que é sempre pesadíssimo, né? As coisas têm que valer muito a pena. Senão, é melhor dizer não. Tenho aprendido a dizer cada vez mais não para as coisas que não quero. Isso ajuda.

Por que você procurou a análise pela primeira vez na vida?
Eu tinha 17 anos e fui para a psicanálise porque precisava de ajuda psicanalítica, muito por causa do meu sofrimento, das minhas perdas, por causa da minha história – nessa época, eu já tinha perdido um irmão. E, basicamente, pela minhaa neurose. Eu não formulava assim, mas com certeza, também por ser uma mulher num mundo machista. Num dado momento, percebi que eu entendia o mundo muito de uma forma psicológica. Mesmo sem saber nomear dessa forma, sempre me interessava pela arte, pela música, pelo teatro, pela literatura. Sempre numa vertente psicológica. As minhas brincadeiras infantis, a forma como via o mundo, eram totalmente voltadas para o mundo interno. Eu tinha interesse pelas histórias, pelo jeito das pessoas pensarem. Isso era muito forte para mim. Aí fui estudar psicologia e num determinado momento formulei que gostaria de oferecer para outras pessoas aquilo que eu tinha vivido como paciente. 

“Eu admiro as soluções que as pessoas deram para lidar com os próprios perrengues”

Você trabalha as questões existenciais, o inconsciente das pessoas. Como você encara a sua própria vulnerabilidade?  
Ao contrário do que as pessoas pensam, é justamente o fato de você se abrir com a sua vulnerabilidade o tempo todo, de não tentar fingir que está tudo bem, que consegue escutar o outro. Dentro da minha perspectiva, da ética psicanalítica, escuto o outro sabendo que ele é potente. Quanto mais a pessoa me conta uma história inacreditável de ruim, reconheço que ela sobreviveu àquilo. Eu admiro as soluções que as pessoas deram para lidar com os próprios perrengues. Embora alguns acontecimentos me emocionem profundamente na clínica, não me tocam no lugar de dó do outro. Não tenho dó de ninguém. Tenho compaixão, mas não me acho melhor do que ninguém para dizer “coitadinho”.

Qual é a grande questão da mulher hoje que chega para você na clínica?
A mulher hoje está em uma experiência insustentável de conciliação entre família, trabalho e vida pessoal. Seja porque ela quer ter uma família, seja porque ela tem uma família; ou porque tem dúvida de se deveria querer ter. A família está colocada apenas para as mulheres como uma exigência social. Só que elas chegam na análise achando que está faltando alguma coisa para elas, e não que existe uma situação estrutural que não é sustentável. Essa tem sido a queixa mais recorrente e que aparece de muitas formas: pacientes depressivas, ansiosas, com somatizações, surtos… Além disso, as mulheres têm que se haver com o que, afinal, chamamos hoje de ser mulher e do feminino. Tudo o que a gente não compreende na gente, homens e mulheres, é depositado na figura feminina. As mulheres é que são loucas, que não sabem o que querem, que são manipuladoras. Elas estão se perguntando: afinal, o que é ser mulher? 

As mulheres hoje estão falando menos em idade biológica e mais em atitude. Muitas não querem mais ouvir que “os 60 são os novos 50. Você tem percebido esse movimento?
Essa  discussão é recente, ainda é preciso mais diálogo, mas acho que a gente tem que bancar a idade que tem. Eu tenho 58 anos. Adoraria ter colágeno de 30, mas odiaria ter a cabeça que tinha aos 30. A perda das funções do corpo é penosa porque ela aproxima a gente da morte, da castração. Precisamos parar de nos comparar com quem fomos e começarmos a pensar no que vamos ser. E quando digo que é importante assumir a idade, reitero uma visão psicanalítica de que é importante para mim. Se o outro não quiser dizer, ninguém tem o direito de obrigá-lo. Cada um tem que bancar o seu lugar. Para mim, é importante, assim como foi importante assumir o cabelo branco. Cada um faz o que quiser no corpo, detesto essas patrulhas. Mas, temos que reafirmar quem podemos ser. O etarismo não pode ser usado para uma corrida, para que a gente pareça ter 30 ou 60. Porque aí você está deixando o diabo voltar pela porta dos fundos dizendo que só tem valor quem parece ter 30. E se eu não quiser? Se eu não quiser fazer tratamentos de beleza? A grande graça do feminismo é que a gente possa desejar particularmente. É poder bancar o desejo como mulher. A discussão do etarismo é: temos que seguir desmontando estereótipos. O cabelo branco numa mulher era sinal de desleixo. Hoje, pode ser sexy. Mudar o olhar sobre o que a gente chama de beleza feminina é fundamental.  

+ Leia também: Christian Dunker fala sobre escuta
+ Leia também: Luiza Trajano: “Bem-estar começa com comida na mesa e casa para morar”

Você disse que foi importante assumir o cabelo branco. Em que ocasião parou de tingir?
Quando a minha mãe fez 90 anos [seis anos atrás] ela entrou linda, de cabelo branquíssimo, que sempre deixou, e com uma maquiagem muito leve, que nunca usou. Achei aquilo muito lindo e a partir daí fui assumindo o branco. Lamentei, porque imediatamente fiquei muito mais velha. E depois banquei. Quando você tem cabelo branco, a gestalt é de uma senhora. Isso ficou imediatamente claro no olhar masculino para mim. Inclusive, do meu marido. Ele falou: “Que legal, mas você nunca mais vai tingir?”. Eu disse: “Posso tingir se me der vontade, porque meu cabelo não é bandeira de nada. Posso, mas não pretendo.” Aí, aos poucos, fui gostando de várias coisas, de não ter que tingir, da textura. Comecei a receber elogios e consegui conciliar alguma coisa aí.

” Fiquei muito magoada com o meu corpo. Na minha fantasia onipotente, achava que teria uma menopausa diferente das outras”

A proximidade dos 60 anos mexe com você em algum lugar?
Mexe muito. Estou chocada. Não vamos fingir que é não difícil, bicho. Mas o pior foi a menopausa. Eu tinha 54 anos. Justamente porque sou uma pessoa que corria, que tem uma saúde muito boa, que não toma remédio para nada… De repente, o corpo não dá mais. Fiquei muito magoada com o meu corpo. Na minha fantasia onipotente, achava que teria uma menopausa diferente das outras. Fiquei bem deprimida nessa época, com essa constatação da castração. Fiz um longo percurso aí de me haver com isso. 

Como você está em relação a esse processo hoje?
A menopausa acabou, porque é um período. Tem muita vida depois da menopausa, tem sexo, tem prazer, tem alegria. Tem corpo depois dessa transição. Eu descobri que a minha saúde física, a minha energia, era um significante muito importante para mim. Porque se trata de perdas consideráveis. A gente está indo para o fim da vida, né? Não tem jeito. Não vou viver mais 50 anos. O que me deprimiu foi primeiro lidar com o que eu não podia, e segundo, a fantasia de que a vida seria para sempre meia-boca. E não é verdade. 

“A exigência de performar está destruindo a possibilidade dos pais terem uma relação mais concreta com os filhos”

Mudando o assunto para parentalidade. Hoje vemos pais buscando manuais para educarem seus filhos. Em que momento a sociedade virou essa chave e acreditou que tinha que ser assim?
Na década de 1980, começa uma nova versão da parentalidade, que a gente comunga mais hoje. Nos anos 1900, por exemplo, era diferente, a parentalidade não era espontânea, tinham discursos que diziam o que você devia ou não fazer. Uma criança do século 18 não podia ser elogiada publicamente pelos pais, era de mal gosto. Hoje, a gente só faz isso. Com a chegada do capitalismo avançado, a transmissão de geração para geração se quebrou; a transmissão agora é toda feita por especialistas. Então, se você quer saber como cuidar de um bebê, você não vai mais perguntar para a nonna, vai fazer o cursinho da maternidade, que vai dizer “faz assim”. E o especialista entra na lógica capitalista da venda de um produto. A parentalidade foi totalmente atravessada pela lógica capitalista neoliberal que vai especializando os pais. 

E o que significa exatamente especializar os pais?
Significa desautorizar qualquer intuição, qualquer competência que eles poderiam ter, o que [psicanlista inglês] Winnicott vai chamar de “gesto espontâneo em relação aos filhos”, o uso de qualquer feeling. E os pais ficaram quebrados, inseguros, achando que tinham que cumprir metas, fazer uma performance parental, criar uma criança para ser um novo Steve Jobs. Há toda uma exigência sobre os pais que está destruindo a possibilidade de terem uma relação mais concreta com os filhos. Viraram reféns de uma lógica parental que aposta todas as fichas nas crianças prodígios, com o intuito de qualificar a criança, para ter ali um pequeno grande performer. 

De que forma essa nova parentalidade afeta essa geração de crianças?
Isso tem um efeito direto sobre uma geração que está extremamente demandada e, ao mesmo tempo, extremamente protegida, e na qual foram depositadas expectativas irreais. É uma geração que não consegue fazer prova, porque tem medo de falhar, que toma ansiolítico em dias de testes porque ficam nervosos. E não é uma criança, é 10%, 15% da classe, nas melhores escolas do Brasil. Os pais transmitem para essas crianças que elas também não podem errar e o que as crianças fazem é adoecer.

A pandemia trouxe mais à tona essa questão?
A pandemia fez a gente repensar a questão do tempo. E administrar o tempo é administrar a vida. No capitalismo, time is money, e você tem que correr para conseguir as coisas por meio de performances. O problema é que as coisas prometem que quando forem conquistadas você vai se sentir bem, o que não é verdade. O Iphone que você tanto queria daqui um ano já não vale nada. Essa “cenoura” está sempre ali na nossa frente e o final disso é a morte. Ninguém quer pensar nela, e seria uma possibilidade de a gente dar valor ao nosso tempo. Então, as crianças estão sendo criadas como os pais, numa corrida contra o tempo, que é uma corrida contra a vida. Porque o que está em jogo é a ideia de que a felicidade está em algum patamar que você vai alcançar. Só que a felicidade não acontece em algum lugar, ela acontece episodicamente. A percepção de felicidade é instantânea e no presente, e a gente vai postergando ela como se você fosse chegar no platô. E não tem platô. É como se fosse uma música que vai tocar uma nota só pra sempre; ela deixa de ser música e vira silêncio. A gente só tem a felicidade na nuance entre silêncio e som. Ou seja, entre infelicidade e felicidade, frustração e satisfação. É nesse jogo que você sente a felicidade. Mas a promessa está na felicidade como estado e ela não é um estado, ela é um momento. Esses erros estão levando a gente a ser muito infeliz. A depressão é o grande sintoma da contemporaneidade, nunca estivemos tão infelizes e ansiosos.

“A promessa está na felicidade como estado e ela não é um estado, ela é um momento.”

Mais lidas

Veja também