Quando olha para trás, a cantora e compositora Alice Caymmi, de 33 anos, se dá conta de que passou a vida toda questionando a própria imagem. “Só consegui ter mais liberdade, me olhar com mais carinho, depois dos 25”, relembra. “Tive problemas de autoimagem muito fortes. E isso ferra a gente em vários aspectos: na relação com o amor romântico, com a sexualidade, com as nossas escolhas de vida… São cicatrizes que o corpo não esquece.”
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Alice sabe que seu drama está longe de ser particular. Ela vê essa realidade compartilhada por milhares de mulheres vítimas da ditadura da magreza e de tantos outros padrões. “Na minha geração, as mulheres nunca tiveram essa experiência de ser bonita. Nunca fomos bonitas e magras o suficiente”, diz a cantora.
“Tive muitos problemas de autoimagem. E isso ferra a relação com o amor romântico, com a sexualidade”
Ela cresceu ouvindo que era gorda, mas, ao repassar fotos antigas, percebe que não. A pressão sobre sua aparência e as dietas impostas pela família desde muito nova resultaram em uma compulsão alimentar. Hoje, abraçou uma versão maior do seu corpo e está em paz com isso. “Essa coisa de ‘eu me amo’ não é a minha. Mas ‘sou assim e mereço respeito’, está rolando”, diz.
“E não se trata de romantizar a obesidade”, pondera. “O movimento Corpo Livre não é só para gordo. É para todos os corpos, livres para mudar de tamanho e ser o que quiserem”, afirma, acrescentando que essa busca por liberdade envolve a revolução de gênero e o direito ao aborto.
Em suas redes sociais, a cantora expõe reflexões a respeito do tema, mas, nem por isso, quer ficar presa nessa caixinha. “Eu estou gorda. E sou muito mais do que isso”, afirma. “Não sou influenciadora, sou artista.” Ser artista, segundo ela, é justamente expor as vulnerabilidades, conectando-se com o público por meio das fragilidades. “Nós temos muitas inseguranças e o fato de a gente reconhecer e acolher isso nos dá muita força.”
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A seguir, Alice narra as idas e vindas com seu corpo por meio de cinco fotos.
“Desde que me entendo por gente, estou fora do padrão”
Festa de aniversário não era motivo de comemoração para Alice, uma vez que ela não tinha liberdade para comer o que quisesse. Desde muito nova, foi obrigada a fazer dieta porque médicos da família alertaram que, aos 2 anos, já estava acima do peso. “Nos anos 1990, como ainda acontece, havia o culto ao corpo, bullying desenfreado e muito médico falando bobagem com base no IMC [Índice de Massa Corporal].”
“Fui ensinada que para fazer sucesso era preciso ser magra”
Ela enxerga que seu corpo não era gordo, mas, sim, grande e forte. “Olhar essas fotos me fez perceber como nunca fui gorda. Fui colocada nesse lugar de uma maneira injusta e horrorosa por profissionais renomados em quem confiávamos. Meus pais [os cantores Danilo e Simone Caymmi] só faziam o que os médicos indicavam, pensando na minha saúde.”
“Não soube lidar com os olhares masculinos”
“Meu pai me via como artista desde menina, mas não forçava nada. Sempre respeitou as minhas escolhas”, conta. E relembra que toda vez que ele a chamava para o palco, ela topava cantar. Apresentou suas primeiras composições em saraus da escola, fazendo sucesso, especialmente, entre pais e professores. Por outro lado, era odiada pelos colegas por ser filha de artista e receber mais atenção, sem falar no bullying que sofria por ser grande. “Me dei muito mal na escola, as crianças queriam me assassinar. Foi trauma atrás de trauma.”
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Na adolescência, ela conta, seu corpo esticou e logo se desenvolveu. “Não soube lidar com os olhares masculinos. Eu não estava pronta, mas meu corpo já estava lá”, diz. Foi nessa fase que desenvolveu uma compulsão alimentar que a acompanha até hoje.
Tendo subido ao palco pela primeira vez ainda bebê e desde sempre ter cantado, a pressão também atingia a ‘Alice artista’. “Na adolescência, pessoas me diziam: ‘Se você emagrecer, te dou este vestido.’ A dificuldade de encontrar roupas que servissem era outro problema. Por ter que apertar um corpo de pernas grandes e quadril largo no jeans 42 – o maior tamanho na época –, ela desenvolveu problemas de pele na região da virilha, o que evoluiu para uma cicatriz.
“Vocês não vão conseguir me derrubar”
No começo da vida adulta, ao ingressar na faculdade de Direito, viu o bullying recomeçar. Diante de um auditório lotado, durante uma palestra, ela pediu o microfone ao professor e disse: “Vocês não vão conseguir me derrubar e trazer para cá a dinâmica tóxica que destruiu a minha infância. Acabou, eu não vou deixar”, conta ela, que diz ter sido ovacionada após a fala. “Foi um momento libertador.”
A morte do avô Dorival Caymmi, em 2008, a fez perceber que a vida era curta demais para não seguir a sua natureza de artista. Foi quando ela deixou a graduação para viver de arte. Quatro anos depois, lançou o primeiro álbum, Alice Caymmi (2012), seguido por Rainha dos Raios (2014). “Eu não era gorda, mas já era considerada gorda. Tinha muita pressão mesmo assim”, diz ela sobre a sua estreia na indústria fonográfica.
“Qualquer coisa que me limite é uma prisão”
“Depois dos 25 anos, eu dei uma boa engordada. Demorei para entender que essa era eu e estava tudo bem”, diz. Nos anos seguintes, a cantora já não conseguia mais se identificar com o repertório de seu terceiro disco, Alice (2018). E esse momento foi uma verdadeira virada de chave. Ela raspou o cabelo, inspirada em Electra, princesa da mitologia grega exilada pelo risco de matar a própria mãe, que tinha assassinado o pai.
“Sou uma pessoa muito livre, qualquer coisa que me limite é uma prisão”
“Precisei me livrar do meu cabelo, porque ele estava num lugar tóxico para mim. Eu sou uma pessoa muito livre, então, qualquer coisa que me limite é uma prisão”, diz. “Quando eu raspo a cabeça é como se eu virasse uma tela em branco e pudesse construir o que eu quisesse partir daí.”
Seu quarto disco, Electra (2019), como a própria diz, foi feito para conseguir sobreviver. Precisou, no entanto, desmanchar a imagem que tinha de si mesma. “Entrei tão fundo nesse personagem que tive outra questão alimentar – cheguei a comer uma banana por dia. Emagreci muito”, relembra.
Seu quarto disco, Electra (2019), como a própria diz, foi feito para conseguir sobreviver. Precisou, no entanto, desmanchar a imagem que tinha de si mesma. “Entrei tão fundo nesse personagem que tive outra questão alimentar – cheguei a comer uma banana por dia. Emagreci muito”, relembra.
“Depois de anos sem me aceitar, estou em paz com o meu tamanho”
Alice oscila muito de peso, de cabelo, de forma. “É da minha natureza. Mas o meu centro, o meu afeto, é sempre o mesmo.” Na pandemia, ela chegou ao máximo do seu tamanho e pensou que a carreira chegaria ao fim. “Fui ensinada que para fazer sucesso é preciso ser magra. A mensagem era: desse tamanho, você não vai chegar a lugar nenhum, ninguém vai querer saber de você.”
No primeiro show após a fase mais restritiva de isolamento social, conta que não conseguia se mover no palco. Estranhou sua nova forma. “Naturalmente, fui diminuindo de tamanho porque não estava em casa morrendo de medo de morrer.” Quando emagreceu o suficiente para “subir uma escada sem ficar ofegante”, se deu por satisfeita e hoje seu peso está 15 quilos acima do dito “ideal”.
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A dança flamenca tem sido importante para conectar mente e corpo, ampliando sua consciência sobre o espaço que ocupa. “Tenho direito de ser aquela pessoa atlética que eu era e que sou, do tamanho que for.” Mais autoconfiante e amante da moda, Alice veste roupas de estilistas que admira e que, enfim, estão produzindo peças do seu tamanho.
O projeto do recém-lançado disco Las Brujas é inspirado no poder das bruxas e recebeu críticas de haters. Mas ela não abre mão da sua liberdade criativa. “Estou num momento muito bom. Depois de anos sem me aceitar, sem me entender, sem ser livre, estou em paz com o meu tamanho, com o espaço que ocupo, com o meu peso sobre a Terra”, diz. E conclui: “O mais importante, estou cada vez mais em paz com a artista que sou e com as escolhas que fiz. Pode ser que dê errado ou que dê certo, mas o importante é que está sendo muito legal.”