Se você está em busca de respostas sobre a (chamada) inteligência artificial (IA), garanto que você está no texto errado. E, como não tenho nenhum prazer como autora em frustrar as expectativas de um leitor ou espectador, é melhor ser sincera. Esse texto é sobre perguntas, reflexões.
Meu primeiro contato com IA foi num desenho animado: Os Jetsons. Os Jetsons eram uma família do futuro, da qual fazia parte uma robozinha muito simpática. Veja bem uma robozinhA destinada a cuidar da limpeza da casa e outras tarefas domésticas. Uma robozinhA que sempre queria agradar os seus quase-donos, quase-familiares. Uma robozinhA que era “quase da família”. (Nem vou enveredar por aí, porque não é o foco aqui, mas com certeza você já entendeu as cordas sociais que estavam sendo tocadas nesse futuro com pinta de passado). Naquele futuro da família Jetsons, os carros eram voadores, a casa era toda automatizada (o que hoje chamamos de “casa inteligente”. Estava tudo lá. Quer dizer, quase tudo. Faltou colocar nos Jestsons as doenças decorrentes da automação no dia a dia que gera sedentarismo, por exemplo). Mas simbora que o texto é sobre IA.
Será que a Inteligência Artificial nos compreende? Será que a Alexa é capaz de consolar?
Depois disso, meu próximo contato com a famosa IA foi muito bem mediado por Stanley Kubrick com “2001, Uma Odisseia no Espaço”. Aquele robô fazendo leitura labial é uma imagem residual indelével. Em algum momento, cheguei em Blade Runner, com seu futuro falido e seus robôs angustiados pela falta de humanidade, em última instância, pela falta de sentimento.
Para mim, que tenho hoje 46 anos, e nasci antes de existir internet, celular, e uma televisão em cada cômodo da casa, Inteligência Artificial sempre foi um tema de distopias contadas no cinema, na tv e nos desenhos animados.
Hoje em dia, sou escritora. Comecei escrevendo peças de teatro, fui escrever para televisão e cinema, e, há dois anos, publiquei meu primeiro livro. Como roteirista de novela escrevi uma história com 4.500 páginas, entre elas, algumas cenas foram especialmente emocionantes. Em todas as cenas que as pessoas choraram em suas casas, eu chorei escrevendo. Será que a Inteligência Artificial chora enquanto escreve?
Quando um espectador se “identifica” com um personagem, ele está no fundo se identificando com as pessoas que criaram esse personagem. Essa identificação é possível porque ela cria uma dinâmica de alteridade, que acontece no fundo entre os criadores e espectadores. Pensando nisso, como escritora, me pergunto qual é o sistema de alteridade possível de ser instalado em um chip. Um computador pode ler feições tristes e ser programado para dizer isso ou aquilo como resposta. Mas o consolo não está nas palavras ditas e sim nessa sincronia cardíaca, está em saber que o outro “te compreende”. Será que a Inteligência Artificial nos compreende? Será que a Alexa é capaz de consolar?
O mundo não é, nem nunca foi regido pela razão – se fosse, talvez não estivesse instalado nesse caos de Meio Ambiente, além de enfrentar as inúmeras desvantagens práticas da desigualdade social. O mundo é regido pelo coração, por paixões, sonhos e mitos. Estamos sempre em algum ponto entre o medo da morte e a vontade de eternidade. Será que IA sente o medo da morte?
De onde vem tanta paciência com a burrice da IA? E, de outro lado, tanta intolerância com o erro humano
Como criadora de conteúdo há 27 anos no mercado (sim, eu comecei cedo) estou certa de que o acesso, o acúmulo e a organização de informação (data) podem ajudar no desenvolvimento criativo da indústria do entretenimento e do audiovisual. Contudo, existe um salto quântico que acontece no abismo obscuro da criatividade. Esse salto acontece entre a sístole e a diástole. É algo intangível, inexplicável. Ele leva a vida inteira de uma pessoa, mas ao mesmo tempo acontece em um átimo de segundo. A esse “algo”, a esse transbordamento de sentido, esse deslocamento semântico, que provoca um suspiro no nosso jeito de ver o mundo, a isso demos o nome de arte. Será que o jeito de ver o mundo da Inteligência Artifical é capaz de dar suspiros?
Do ponto de vista da sociedade, me pergunto de onde vem tanta paciência com a burrice da inteligência artificial. Como se ela fosse um filho amado, chegamos a achar graça quando ela responde algo errado ou sem sentido. De outro lado, a intolerância total com o erro humano, com as pessoas que estão em formação e precisam de investimento. Pessoas abandonadas pelo Estado, nas quais nada foi investido além da esperança de que elas sejam heróicas. Fico pensando onde estaríamos e até onde podemos chegar se o tempo e os recursos gastos para “ensinar” a IA fossem investidos em formação de pessoas. Imagina se tudo isso fosse investido na regeneração do planeta? Se o tempo e recursos investidos pelos sheiks do petróleo na possibilidade de uma vida em outro planeta fossem injetados na viabilidade de uma vida aqui na Terra. Isso sim seria inteligência.
A desigualdade entre os seres humanos produziu uma humanidade para 30 ou 40% das pessoas que vivem no planeta. Os outros 60 ou 70% sobrevivem de forma desumana ao descaso social, a um só tempo método e objetivo, que pretende não só manter a concentração de renda e o poder instituído, como aumentá-la.
Agora veja que incrível! É justamente esse poder instituído dessa sociedade falida pela desigualdade que “ensina” a tal Inteligência Artificial o que é certo e o que é errado. O que é prioridade em tal ou tal situação. Por exemplo, quem ensina o Google Car como decidir, em caso de inevitabilidade, quem atropelar: a pessoa branca ou a pessoa negra? Na realidade, cada motorista humano fará essa “escolha” em uma reação de milionésimos de segundos, cada um, e a cada vez, guiados por diversos fatores variantes. O Google Car sempre fará a escolha que lhe foi “ensinada”. Com esse simples e muito básico exemplo, já fica claro como o padrão de desigualdade branco, racista, machista, elitista, que concentra rendas, promove o genocídio preto, e exerce a corrupção histórica irá “ensinar” a Inteligência Artificial sobre o que é certo e o que é errado. Sobre, enfim, quem atropelar.
Pensando em tudo isso, aberta a novos questionamentos, fico intrigada com o entusiasmo de 67% da população brasileira diante da IA. É incrível ver como fechamos nossas portas para uma pessoa que pede ajuda, mas as abrimos banhados de hospitalidade para essa ferramenta desconhecida, disposta a colher nossas informações pessoais e mercantilizá-las em escala internacional. Uma ferramenta programada para uberizar nossas profissões (ou o que for possível em cada uma delas), relativizar nossas conquistas trabalhistas e, por fim, roubar nossas horas de sono e de sonho.
Contudo, talvez a pior mensagem que a suposta Inteligência Artificial, já tão cabotinamente batizada, nos traz é que o poder instituído segue reinventando, produzindo novas roupagens para entrar em nossa casa, para nos iludir com seu discurso confuso, para enfim, exercer sua vontade de diminuir o que não nos pode roubar: o que há de mais humano em nós.
Quando me perguntam se eu tenho “medo” da IA… claro que não. Eu tenho medo da burrice humana. Tenho medo da infinita cegueira imediatista, do egoísmo imbecil, da burrice elitista, é disso que eu tenho medo.