Miranda July coloca a perimenopausa no seu devido lugar - Mina
 
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Miranda July coloca a perimenopausa no seu devido lugar

“De quatro”, novo livro a multiartista americana, traz personagem de 45 anos com desejo e tesão e angaria fãs ávidas por histórias de mulheres nessa fase, até então, evitada pela indústria do entretenimento

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“Você precisa ler o livro novo da Miranda July”, me disseram duas respeitáveis mulheres em resposta à última coluna que escrevi e onde perguntava: “Cadê a menopausa sendo abordada naturalmente, como uma condição biológica, em personagens de filmes, séries e em livros?” Antes que pudesse tomar providências, fui interceptada pelo comentarista de literatura do Estúdio CBN, programa que apresento diariamente, o falando maravilhas sobre De Quatro (editora Record), da Miranda July, escritora, atriz, roteirista, diretora de cinema, performer e multiartista norte-americana premiada. “É um livro que dá tesão”, me resumiu um amigo. Aparentemente, já temos uma seita mundial chamada “cadelinhas do livro novo da Miranda July”.  

Há alguns anos, salvo exceções, tenho lido basicamente autoras, que em geral escrevem protagonistas mulheres. Li coisas muito boas, obviamente, mas andava sentindo falta de encontrar personagens mais parecidas comigo. Pois lá fui eu me internar, com prazer, em Miranda July — traduzida por Bruna Beber, outra maravilha de escritora. 

Ser inteira para uma mulher de 45 anos pode ser pesado

A narradora anônima45 anos, uma carreira considerada bem sucedida, é uma figura mais ou menos conhecida. Tem uma parceria longa e estável num casamento com um cara bacana, é mãe de uma criança, tem amigas e amigos leais. Vivendo o esplendor da perimenopausa, ela larga todos esses papéis para passar 3 semanas sendo “só” uma mulher no mundo, desprendida de todas as suas responsabilidades e agindo “só” na direção dos seus desejos.

Ganhar anonimato, fingir ser outra pessoa, qualquer pessoa, de qualquer tempo. Caminhar por lugares desconhecidos, imaginar cenários e viver dentro deles. Não ser filha de ninguém, mãe de ninguém, companheira de ninguém, amiga de ninguém, conhecida de ninguém, profissional de nada. Não ter que desempenhar nenhuma função, não ter atribuição alguma, não “ter que” nada. A não ser sustentar o peso dessa escolha.

“Davey e eu havíamos deitado de conchinha nesse carpete como dois bebês dentro do útero – em suspensão, nos alimentando um do outro, mas sem qualquer objetivo em mente. Não gozamos, não produzimos coisa alguma, sem pôr em prática qualquer necessidade, só as exigências de nossas almas em expansão”, trecho do livro.

Ser inteira para uma mulher de 45 anos pode ser pesado. Descobrir os próprios desejos e agir na direção deles, sem culpa. Se notar, se perceber, se surpreender com jeitos diferentes de se relacionar, de se ligar eroticamente a alguém. Um jogo que se desenrola em ritmo e velocidade muito estranhos para os nossos tempos de cliques e jatos de dopamina imediatos. O exercício da sexualidade é descrito cristalinamente. É menos sobre as cenas, mais as sensações. É mesmo um livro que dá tesão. 

Ela pincela um assunto que tem rondado minha cabeça imparável: a fantasia e o real. O que é preciso e como faz para trazer a imaginação todinha para o corpo? Não é só de coragem que se trata. Quais são os marcadores de realidade, o que caracteriza que algo aconteceu e não foi apenas imaginado? Eu, entusiasta da maior transparência possível nas relações e um ser que lida muito mal com mentiras, me pus a repensar o conceito diante de um contexto complexo com o qual de alguma maneira me identifiquei. 

A lista de sintomas da menopausa parece descrever uma doença terrível, possivelmente fatal

De quantos compartimentos é feita a nossa existência? Quantos papéis desempenhamos, o quanto eles podem ser conflitantes e de que forma podemos viver todos eles com integridade? 

“Embora as crises de meia-idade fossem mal faladas, talvez cada uma seja única e profunda, e sua má-fama seja culpa de uns idiotas em conversíveis vermelhos. Me imaginei cumprimentando um cara desses com solenidade: Percebi que você chegou na fase dos grandes questionamentos. Que Deus te ajude, guerreiro”, trecho do livro

Crises existenciais e de choro, quedas bruscas e incapacitantes de energia física e mental, um tesão louco, são todos sintomas de transformações fisiológicas que impactam profundamente a nossa vida. Essa fase é considerada por muitas médicas uma segunda adolescência, dada a brutalidade da variação hormonal no nosso organismo e tudo o que ela provoca. 

Olhar a lista de sintomas da perimenopausa continua sendo um susto, e até uma sentença para muitas mulheres. “Fiquei súbita e oficialmente velha”, constata a narradora da Miranda July. Diante daquele veredito, para ela é o fim. Contesto com veemência, já que a nossa expectativa de vida é de 79 anos. Pode parecer o fim porque é quando a gente constata que vai ter que fazer musculação pra sempre e isso pode parecer a morte para quem nunca levantou mais do que copos. Estamos falando de uma nova etapa da nossa existência, diferente do que foi até aqui. Isso significa que é fácil e indolor? Claro que não, inclusive porque os sinais são físicos. Isso também não significa que possa haver um luto envolvido nessa passagem. E quase sempre há, cada uma vivendo o seu, pessoal e intransferivelmente, se despedindo de coisas, do colágeno à memória afiada. 

“De cara, a lista parecia descrever uma doença terrível, possivelmente fatal, mas ao relê-la, percebi que a maioria dos sintomas já me era familiar, que iam e vinham com alguma regularidade”, trecho do livro 

Na transição que descontraidamente passei a chamar de “hormônios muito loucos”, não é raro a gente se sentir perdida sobre si. Um estranhamento, um descolamento, como se um novo ser estivesse surgindo. “Cadê aquela que eu costumava ser, quem é essa que eu sou agora, o que estou fazendo da minha vidaaaa?”. É como viver pulando de pedra em pedra, e estar e-xa-ta-men-te na parte do salto. Naqueles milésimos de segundos suspensos, em que já se tirou um pé de uma pedra, mas ainda não se colocou o outro pé na pedra seguinte. Um instante de suspensão em que a gente não se reconhece mais como era,  parece ter perdido o controle e não tem a menor ideia do que está se tornando. Socorro! 

Alívio cômico: Miranda July também me fez gargalhar em altos decibéis e horários inapropriados, com um humor muito afiado e peculiar. Porque tudo bem, às vezes a gente vai estar na merda, mas sem fazer piada e rir de si não tem condição. 

Como é bom ler e reconhecer cada parte de uma personagem caleidoscópica que se aventura por estradas nas quais é fácil se projetar, ainda que esses caminhos sejam tão alheios àqueles que eu escolhi. De Quatro pode ser um abraço indie-pop nas nossas angústias e desejos mais secretos. Comunhões que só a combinação de mulheres e arte é capaz de promover.  

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