Carmen Maria Machado se sente atraída por uma mulher misteriosa apresentada por uma amiga. A química entre as duas leva Carmen, identificada como bissexual, ao seu primeiro relacionamento lésbico. Mas, pouco a pouco, o doce começa a amargar. A namorada deixa de lado os elogios, passando a xingar, beliscar e encurralar Carmen em diversas ocasiões. “Por que ninguém me falou sobre isso?”, pergunta ela sobre o fato de que uma mulher pode ser abusada por outra.
A tragédia pessoal é narrada pela escritora norte-americana em “Na Casa dos Sonhos” (Companhia das Letras). Uma forma de ressignificar a dor, o livro também foi um jeito de não se calar diante da ex-companheira, que pediu a Carmen para não tornar públicas as agressões que aconteciam entre quatro paredes. A obra é ainda uma forma de compartilhar sua experiência com a população LGBTQIA +, carente de relatos como este.
“Muitas vezes, as relações lésbicas são colocadas como um paraíso idílico: sem problemas, sem violências, sem patriarcado”
“Passei anos lutando para encontrar outros exemplos de minha experiência nas histórias das mulheres queer”, escreve a autora. “Folheei livro após livro sobre as mulheres queer do passado, com a caneta pousada no papel, perguntando-me o que teria acontecido se elas contassem ao mundo que haviam sido destruídas por alguém que tinha tão pouco poder quanto elas.”
O tabu que ronda o tema dificulta a identificação do abuso, de acordo com especialistas. Para a psicóloga Franciele Justin Reinaldo, cofundadora da @ClinicaHabilite, voltada à saúde mental das mulheres, elas acabam sendo pegas desprevenidas por acharem que o relacionamento com outra mulher seria um lugar seguro. Porém, como a base do abuso é o machismo estrutural, as relações lésbicas não estão livres desse tipo de violência.
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A psicóloga e psicanalista Janaína Rossi explica que existe uma alta expectativa social sobre as mulheres, ligada à misoginia e à figura grandiosa da mãe na infância. “No inconsciente coletivo, há essa tendência de exigir mais das mulheres e idealizá-las”, afirma. “Muitas vezes, as relações lésbicas são colocadas como um paraíso idílico: sem problemas, sem violências, sem patriarcado.”
Justiça lesbofóbica
A exemplo de Carmen, Carolina* também foi pega de surpresa. Apenas na separação, após treze anos de relação estável com outra mulher, ouviu de um advogado que havia sido vítima de violência doméstica. Sua ex-companheira Ana Cláudia* a xingava, diminuía suas capacidades e conseguiu convencê-la a não investir em sua profissão para cuidar dos pets e manter a casa em ordem.
“Ela dizia que trabalhava muito, mas que, quando atingisse determinada posição, daria toda atenção para mim e nossos filhos. Me vi diante da promessa de uma família e ficava esperando esse dia chegar”, explica Carolina, que deixou de lado oportunidades de trabalho em outras cidades, além de abandonar a carreira acadêmica após concluir o doutorado, tudo para dar suporte à companheira.
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Franciele explica que a relação abusiva, para além da identidade de gênero, está muito conectada ao poder. E o poder está atrelado a comportamentos estereotipados da masculinidade. “Se uma das companheiras tem maior salário que a outra, por exemplo, isso pode se tornar fonte de maior controle e poder”, diz. “Afinal, uma delas é a dona da casa.”
Ao buscar a Justiça para garantir seus direitos, incluindo sua parte no patrimônio que ajudou a construir ao lado da ex-companheira, Carolina enfrentou ainda mais violência. Uma promotora disse que a Lei Maria da Penha não se aplicaria a um casal lésbico. Um escrivão se recusou a redigir suas denúncias, argumentando que era normal a mulher ser constantemente ofendida em um relacionamento. “O pior é, depois de tudo isso, descobrir que nosso judiciário é preconceituoso, homofóbico”, lamenta. “Ana Cláudia me dizia para ficar quieta quando eu questionava suas agressões. As instituições fazem a mesma coisa, tentam me calar.”
Carolina diz que se sente numa busca solitária em busca de reparação. “As pessoas não acreditam em mim e perguntam: ‘por que você não saiu da relação?’, mas se nem eu mesma percebi que era abusiva…”, lamenta. Para Janaína abusos entre lésbicas são julgados de forma ainda mais cruel pela sociedade. Essa e outras discriminações resultam em um maior isolamento da lésbica pelo risco de enfrentar um novo estigma.
“Violência não é só chute, tapa… Manipulação também é”
Marcas do abuso
Além de depressão e crises de ansiedade, o relacionamento abusivo deixou em Carolina a marca de um transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), condição que afeta veteranos de guerra. “Tenho pensamentos intrusivos, como vozes e flashes dela me dizendo: ‘como você é burra!’. Violência não é só chute, tapa… Manipulação também é”, diz. “Estou enfrentando uma luta para recuperar minha autoestima e me reinserir no mercado de trabalho.”
Janaína trata de casos de lésbicas como transtorno de estresse pós-traumático TEPT em seu consultório, mas sintomas como desconfiança e dificuldade de se abrir a novas relações são mais comuns. Insegurança, baixa autoestima e culpa também estão entre as marcas de relações violentas.
Como reconhecer o abuso
“Os sinais começam de uma forma muito mais sútil, como ciúme excessivo, invasão de privacidade, chantagem para se afastar de pessoas, ofensas”, explica Franciele, lembrando que controle e posse são princípios do machismo. “É sempre uma questão de invalidação e focada em que os outros estão errados e eu estou tentando te proteger.” É preciso estar atenta a esses movimentos de manipulação, incluindo piadas ofensivas e culpabilização, para identificar se existe abuso na relação, diz a especialista. “A pessoa tenta te fazer acreditar em coisas que não são verdade sobre você mesma.”
Porém, diferente das relações heterossexuais, nos relacionamentos lésbicos, o abuso não costuma avançar para a violência física. “O número de feminicídios em relações entre mulheres é quase nulo comparado ao feminicídio nas relações heterossexuais”, compara.
Dando a volta por cima
Um dos passos para se recuperar das marcas psicológicas do abuso é, claro, a psicoterapia. É nesse espaço que as vítimas conseguem desmistificar o aprisionamento ao qual foram submetidas através de um olhar mais carinhoso sobre si mesmas e a retomada da autoconfiança, explica Franciele. Na terapia, mulheres que cometeram abusos também podem revisitar traumas que as teriam levado a esse lugar e descobrir caminhos para mudar essa história, segundo Janaína.
Outra saída é a rede de apoio. Muitas mulheres queer, discriminadas por sua orientação sexual, acabam afastadas da família e dos vizinhos, o que as tornam ainda mais vulneráveis ao abuso doméstico. Uma alternativa são as amizades, grupos feministas e lésbicos. Esses coletivos, aliás, são uma excelente fonte de informação para reconhecer um relacionamento abusivo e descobrir maneiras de como sair dele. Páginas sobre abuso nas redes sociais também podem ser lugares seguros para isso.
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Para além do estigma
Para Janaína, as lésbicas são um grupo já muito estereotipado e estigmatizado. Especialmente as caminhoneiras ou butch são vistas como violentas por sua ligação ao comportamento masculino. “O que acontece é que as lésbicas são uma população muito oprimida, com várias questões psicológicas e famílias disfuncionais devido à discriminação que elas sofrem”, diz.
A psicóloga defende, então, uma leitura cuidadosa e específica sobre o abuso nas relações lésbicas, diferenciando-o do que ocorre nas heterossexuais. “A violência masculina é estrutural, é uma política sexual sistemática que aniquila mulheres a cada minuto e que inclui abusos na infância. Tudo isso participa de uma estrutura de poder dos homens”, teoriza. Já a lésbica que perpetua abuso ganha poder dentro da relação, mas não na sociedade, como acontece com homens agressores.
“Lésbicas que cometem a atitude agressiva podem passar por um processo de recuperação dessas condutas. É uma questão de educação política para que deixem de reproduzir essas relações”, aposta. “Estamos na era do cancelamento. É como se as pessoas não pudessem falhar e se reinventar, mas não precisa ser assim.” Segundo ela, a exceção são mulheres que apresentam um quadro antissocial, por exemplo. “Sem capacidade de culpa, é mais difícil reparar a destruição que elas causam.”
“Os homens se acham proprietários das mulheres. No caso das lésbicas, muitas vezes elas perderam tudo, estão sem família, então, a leitura sobre a possessividade é outra”, acrescenta, sobre as especificidades das relações homoafetivas entre mulheres. Não se trata de diminuir ou de justificar o abuso, pondera a psicanalista, mas de entender o fenômeno não por uma chave de teoria feminista heterocentrada, mas, sim, a partir de teorias lésbicas que entendam as especificades das relações entre mulheres. Para Janaína, essas teorias não são tão acessíveis devido à invisibilidade das lésbicas e às dificuldades encontradas por elas para firmarem suas pesquisas em espaços acadêmicos hostis ao pensamento de mulheres e lésbicas.
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade da entrevistada