Manuela Dias: "Ser roteirista tem a ver com paixão e a capacidade de suportar frustrações" - Mina
 
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Ser roteirista tem a ver com escrita, paixão e a capacidade de suportar frustrações

Nossa colunista responde a pergunta que mais escuta: “como você virou roteirista?”. E revela seu processo na construção de uma carreira que envolve inspiração na vida cotidiana e horas na frente do computador

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Muita gente me pergunta sobre como me tornei roteirista. Acredito que essa pergunta tem embutida a esperança de que exista um caminho a ser trilhado, mas posso garantir que não existe. Basta olhar para a biografia dos meus amigos de profissão e é possível constatar que os caminhos e pontos de partida são muito variados. Olhando para trás, sim, sou capaz de localizar começos, curvas, possíveis desvios. Adivinhar o passado é fácil, mas na vida vivida, é o passo que faz o caminho. Portanto, o máximo que posso fazer (e é o que vou tentar aqui) é contar sobre as sincronicidades e vontades que construíram meu caminho.

Meu conselho é sempre o mesmo: persiga sua paixão

Acho que quando procuramos a nossa profissão, “o que vamos ser” na vida adulta, o que estamos procurando mesmo é a nossa paixão. Por isso, meu conselho é sempre o mesmo: persiga sua paixão. Seja ela qual for: a escrita, a cozinha, cavalos do mar ou bordado nordestino do séc XVIII. Persiga essa paixão, estude-a, experimente essa paixão de todas as formas, e depois estude mais e mais, até que você se torne um especialista dessa paixão, até que não se passe um dia sem que você pense naquele assunto, como um apaixonado pensa em quem ama. E, então, quando isso acontecer, essa paixão provavelmente terá se transformado a sua profissão.   

Comecei pela Grécia

No meu caso, essa paixão, chama inicial que literalmente nos chama, foi a mitologia grega. Um dicionário ilustrado e uma enciclopédia recomendada pelo Ministério da Grécia. O fascínio foi instantâneo e eterno. Aquela mulher com cabelos de cobras, a outra nascida de uma concha trazida pelo mar. Um homem que suportava o peso do Globo terrestre e o outro que empurra uma pedra até o alto de um monte para que ela role monte abaixo, por toda eternidade. A mitologia me levou à tragédia. Prometeu Acorrentado, Édipo Rei, Antígona. Logo descobri que restam apenas 32 peças de teatro grego, sendo 27 tragédias e 5 comédias. Li todas. 

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A leitura das tragédias me arrastou para o estudo do grego arcaico. Então, descobri que a Guerra de Tróia – da Helena e do cavalo – realmente aconteceu, 1.200 a.C., e que houve esse trovador chamado Homero que compôs dois poemas… Mas isso já 400 anos depois, lá para 800 a.C. Depois, mais uns 300 anos e vieram os três tragediógrafos (Ésquilo, Sófocles e Eurípedes). Eu, já sem fôlego, e vem uma nova descoberta: como se não bastasse uma mesa terra, em um mesmo tempo, produzir tantos gênios, na Grécia ainda teve Sócrates, aquele que disse “só sei que nada sei”. Esse cara era, na prática, tipo um andarilho, meio mendigo, mas que tinha discípulos, alunos para os quais ele falava em uma praça em Atenas. Às vezes, Sócrates dormia na rua, às vezes voltava pra casa. Era filho de uma parteira e daí concebeu a ideia de que ele era um parteiro de ideias. Esse processo, de fazer nascer ideias, foi batizado de maiêutica, o cara deu aula pra Platão, que por sua vez deu aula para Aristóteles, que por sua vez deu aula para Alexandre, o Grande e… E foi por aí, nesse turbilhão entre Grécia, Bahia e Rio de Janeiro, incitada por professores de grego arcaico maravilhosos como Luís Felipe e Henrique Cairus, que eu me encontrei contadora de histórias.

O gatilho da paixão, como explicam os gregos, é uma flecha lançada por uma criança com asas. Essa flecha para o cozinheiro pode ser o pão de sua avó, ou para o médico aquele doutor que lhe curou de uma doença quando menino. No caso de um roteirista, contador de histórias no audiovisual, não precisa ser a mitologia grega, pode ser que você vire (ou se descubra) roteirista porque gosta de Kubrick ou Coppola e seu Poderoso Chefão. Seu gatilho pode ter sido O Anjo Embriagado de Kurosawa, um roteiro de Billy Wilder ou quem sabe Charlie Kaufman. Talvez a voz de sua tia lendo histórias de vegetais antes de dormir. Talvez a série Friends, talvez Anos RebeldesVale Tudo ou A Guerra dos Sexos (a primeira novela que eu vi).

Seu sucesso será maior quanto maior for sua capacidade de suportar frustrações

O fato é que depois que você sente a paixão arder, chega então o momento mais difícil: a hora do salto. Assim, como quando nos apaixonamos por alguém, existe aquele momento antes do primeiro beijo. Toda leitura semiótica ativada para decifrar o momento certo do salto. O problema é que o salto exige que nos aproximemos do abismo: é preciso se arriscar. E depois é preciso se dedicar a essa paixão, estudar, trabalhar, encontrar sua turma. Audiovisual não se faz sozinho, é um trabalho de equipe. É importante que você encontre seus pares e forme essas parcerias. Às vezes, para ajudar no projeto de um amigo, assumimos funções diferentes da nossa. Recomendo que você faça isso se quer ser roteirista, busque experiências no audiovisual, todas serão válidas.

Escrever é preciso

Contudo, se existe algo fundamental é a semente da necessidade. Você precisa escrever! Escrever tem que ser preciso. Para viver, pensar, sentir. Você precisa precisar escrever para organizar seus sentimentos, falar com Deus, pagar as contas. Eu por tudo isso, escrevo para viver mais intensa e profundamente a vida que eu já vivo. Escrever é minha forma principal de estar no mundo, de processar experiências, de pensar, sentir, de manifestar meu amor, de, enfim, tentar mudar o mundo e a mim mesma.

Quando Helena nasceu, escrevi Amor de Mãe. Tinha toda uma outra sinopse pronta, quando a ideia da novela me veio inteira, com nome e tudo. Amor de Mãe. Outro dia, meu mestre Orlando Senna, que agora tem 80 anos, me ligou e disse que tinha se machucado (para quem o conhece, calma, que ele está bem). Eu fiquei desesperada e a primeira coisa que pensei foi: vou levar meu laptop para lá e vamos, hoje mesmo, começar um roteiro! E foi o que fizemos. Antunes, mestre da minha amiga-irmã Arieta, morreu? Vamos escrever uma peça! Minha mãe quebrou o joelho e se recusa a fazer fisioterapia? Nasce mais uma peça: A Perna. Para mim, criar e viver estão intrinsecamente ligados e eu me sinto incapaz de dizer onde termina um e começa o outro.

Então, o que eu mais desejo a quem me pergunta como virar roteirista é: só faça isso se for essencialmente necessário.

Você escreverá todos os dias sem que ninguém te pague por isso? Então, você é um escritor. (E provavelmente, em algum momento alguém lhe pagará por isso, mas o cheque não é o ponto de partida e muito menos o de chegada.) Suas histórias encontram um melhor suporte no audiovisual? Então, você é um roteirista. Eu escrevi diversos roteiros, talvez 5 ou 6 que nunca saíram da gaveta. Uma coisa é certa, e válida, para qualquer profissão: seu sucesso será tanto maior, quanto maior for sua capacidade de suportar frustrações. Porque sempre são muitos “nãos” para cada “sim”.

Boas vindas

É válido acrescentar que a vida de um roteirista é feita de 10 horas diante de um computador, sozinho, premido por prazos e páginas em branco. Os personagens não falam sozinhos, é você quem terá que pensar cada uma daquelas falas. (Para isso é bom que se informe e tenha bastante o que dizer). Sem falar que você viverá sendo surpreendido pelas intempéries da realidade de filmagem e terá que se adaptar continuamente, logo, seja desapegado das ideias. 

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Aliás, se você tem problemas em ouvir críticas, ser roteirista não é profissão para você. Roteirista de TV é tipo técnico da seleção: todo mundo tem uma ideia de como você deveria conduzir a sua ideia. Você vai viver ouvindo crítica de atores, diretores, públicos, críticos. E quanto mais sucesso, mais críticas. Por isso, te aconselho a se hidratar, se alongar, buscar exercícios diários. Meditar é muito bom. Eu medito desde os 12 anos, Meditação Transcendental, mas qualquer uma que seja boa para você está ótimo! Procure acalmar seu ego, tudo vai doer menos. E apenas siga escrevendo e escrevendo, todos os dias. A boa notícia é que ser escritor pode curar feridas profundas e dar sentido a experiências desastrosas. E, como disse minha musa Simone de Beauvoir, quando perguntada por Sartre sobre o que mudava em sua vida o fato de ter se tornado escritora, ela respondeu: posso eternizar as pessoas.

Sou suspeita, mas é uma linda profissão, uma vida conectada com valores éticos e que exercita nossa empatia com os piores vilões. A possibilidade de ajudar a tecer essa imensa malha simbólica feita de todas as histórias contadas… Na TV do Brasil, especialmente, ter a honra de entrar nesse rio cujo fluxo é feito de gênios da dramaturgia, é sem dúvida um imenso privilégio e eu agradeço aos orixás pelas bênçãos no caminho. Se você quiser entrar nesse rio, te dou as boas-vindas! E te desejo toda sorte e muito fôlego!

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