Livros sobre luto que me confortaram na morte da minha mãe - Mina
 
Suas Emoções / Reportagem

As coisas que aprendi nos livros desde que perdi minha mãe

“Me parece que agora escrevo sobre minha mãe para, na minha vez, trazê-la ao mundo”, escreve Annie Ernaux, em Una Mujer. E é nessa mesma tentativa que a jornalista Tatiana Vasconcellos escreve sobre o processo de luto que vem passando há 3 anos

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Eu desconfiava um pouco quando ouvia que o luto nunca acaba. Talvez, lá no fundo, o associasse a sofrimento, como um dia aprendi equivocadamente, e entendesse que o sofrimento uma hora passa, logo, o luto também passaria. Até perder minha mãe. “Para quem eu vou perguntar as coisas que eu não sei?”. A frase martelava incessantemente na minha cabeça quando ela morreu, aos 69 anos, 3 dias antes do Natal, há 3 anos. 

Na noite anterior, era uma segunda-feira, decidi jantar com ela de última hora, como se intuísse que precisava aproveitar todas as oportunidades de estar com ela. As Pequenas Chances que a vida nos dá – como no livro da Natalia Timerman, que, a partir de um encontro com o médico do pai dela, relembra momentos do tempo que antecedeu a morte dele (que partiu no meio do Carnaval, como o meu pai). 

O livro de Natalia me transportou para as possibilidades que aproveitei com a minha mãe. E para as que desperdicei também. Porque a gente nem pensa no tempo e age de forma estúpida. De repente, o tempo ficou suspenso em rotinas médicas atípicas por dois meses entre a descoberta de uma metástase e a embolia pulmonar que a matou. Tempo em que tudo era muito estranho e pouco claro, menos a agressividade do tumor. 

Quando o cotidiano e as perspectivas foram completamente alteradas e o assombro tinha que ser escamoteado. Lá fora, milhares de mortos por covid e um país desgovernado. Quanto tempo temos, mãe? Como tenho que me preparar? O que é pra fazer? “Para quem eu vou perguntar as coisas que eu não sei?”.

Minha mãe curtia viver. Ela passou por muita coisa difícil, incluindo sustentar, criar, formar três filhos e cuidar da minha avó, como grande parte das mulheres que são mães. Cumprida a missão, saiu pelo mundo fazendo todas as viagens que podia, trazendo um ímã de geladeira de cada nova cidade ou país que conhecia. Acompanhada ou sozinha. 

“Para quem vou perguntar as coisas que eu não sei?”

Decidiu que queria começar uma nova carreira. A primeira mulher universitária da família fez logo duas. Cursou a segunda faculdade aos 60 anos, Direito, e foi personagem de matéria de revista. Em semana de prova, colava pelo apartamento papeizinhos com conceitos importantes para memorizar. Foi presidente da comissão de formatura e arrasou no exame da OAB. Adorava quando ela me contava os casos que pegava na Defensoria Pública, davam conversas ótimas. 

Ela assistia aos jogos do Palmeiras no estádio e de vôlei na TV, e sempre me atualizava sobre. Era muito orgulhosa das minhas conquistas profissionais – acho que se sentia honrada. Me ligava pra saber se estava tudo bem toda vez que ligava o rádio e não me ouvia. Há uns anos vinha cumprindo todos os clichês da avó babona com louvor. E achava meu sofá baixo demais.

“Para quem vou perguntar as coisas que eu não sei?”. Convivi com uma angústia desorientadora até perceber algo tão aparentemente ordinário: eu sou a partir da minha mãe. Existo porque ela decidiu, a primeira filha, a filha mais velha, a existência dela é o meu parâmetro. Sem ela, sou quem no mundo? Não sou mais filha? Sou o que? Uma desorganização profunda, um novo período de angústia. Uma sensação aterradora de desamparo. 

“E para onde vou agora? Para qual futuro vou sem ela que é parte de mim, ela, de quem sou uma parte?”, escreve Noemi Jaffe em Lili, presente muito significativo de uma amiga. Tomei a frase como se fosse escrita pra mim. Ou por mim. É exatamente isso que eu sentia. Lili me fez reviver as lembranças que os objetos despertam, as histórias que eles contam. As toalhas, os talheres, as tralhas. 

De onde vem as memórias quando nos desfazemos dos cenários e dos figurinos?

Espalhei pedaços da minha mãe por aí. Amigos ficaram com livros, outros com peças de roupa, panelas, travessas, conjunto de copos, fotos, discos, plantas… Vestígios dela pelo mundo, como elementos amorosos de ligação. “…ainda fui mais algumas vezes à casa dela – que logo não será mais dela, e a antecipação disso me dói, porque significa que não vai mais existir um lugar para eu me lembrar dela, que toda a lembrança vai estar só dentro de mim, de nós e nos poucos objetos que levaremos dela”, diz Noemi. De onde vem as memórias quando nos desfazemos dos cenários e dos figurinos?

“Agora que ela não estava mais aqui, comecei a estudá-la como se fosse uma desconhecida, desencravando os pertences dela na tentativa de redescobri-la”, escreve Michelle Zauner em Aos Prantos no Mercado. Quem perde a mãe não escapa da tarefa de abrir armários, esvaziar gavetas e acessar contas e senhas. Como não se sentir violando a intimidade da mãe ao entrar em seu e-mail e em sua conta bancária? Ao se deparar com cartas escritas à mão? Devo ler as declarações de amor dela ao meu pai? As respostas dele? As queixas que ela fazia? 

O quanto saber dela me ajuda a entender sobre mim? Michelle Zauner (que também é vocalista da banda Japanese Breakfast, uma delicinha) percorre um caminho salpicado de ingredientes, texturas e sabores em busca de reafirmar sua relação com a mãe e sua identidade coreana. O preparo dos pratos que passam de avó para mãe para filha e o tanto de história e de memória que cada um deles carrega.

Quando penso na história da minha família, a farofa de ovo e a lasanha continuam sendo praticadas e degustadas por mim e meus irmãos. Mas me faltam pedaços e sobram lacunas. Não lembro exatamente do contexto da vinda dos pais da minha avó de Portugal para São Paulo, ou da vida que levava a família do meu avô na Paraíba. Ou do outro galho da árvore genealógica, dos meus avós paternos, do meu pai e, antes deles, quem éramos nós? De onde eu vim, o que me constitui, minha mãe sabia tudo. 

“Agora que ela não estava mais aqui, não havia mais ninguém para quem perguntar essas coisas. O conhecimento que não foi registrado morreu com ela. Só sobraram documentos e minhas lembranças, e agora cabia a mim entender a mim mesma auxiliada pelos sinais que ela deixou para trás”. Parei no “cabia a mim entender a mim mesma”. Só tem eu pra entender a mim. “Para quem eu vou ligar quando não souber o que é pra fazer?”.

A música é uma boa aliada. Para mim, a letra de Como nossos pais ganha novas camadas de compreensão quando se perde a mãe, para além do aspecto político. Por que, se não tem ninguém que veio antes de você, a referência é você. Estou no lugar que minha mãe ocupava. Essa pira deve ter a ver também com o passar do tempo. “Nossa, tô igualzinha a minha mãe, com condromalácia no joelho”. Ainda somos os mesmos? Vivemos como os nossos pais, com as articulações desgastadas, ainda que eles não estejam mais aqui para ver e nos abrigar no sentir.

Os livros me ampararam no recálculo da rota quando perdi a bússola

Annie Ernaux me ajudou a dar nome para afetos estranhos em tudo o que li dela. Não falharia bem agora, quando me aventurei por Una Mujer em espanhol e terminei em lágrimas incontroláveis: “Já não voltarei a ouvir sua voz. É ela, com suas palavras, suas mãos, seus gestos, sua maneira de rir e de caminhar, a que unia a mulher que sou com a menina que fui. Perdi o último vínculo com o mundo de que saí”. 

Os livros me ampararam no recálculo da rota quando perdi a bússola. Pegaram na minha mão para atravessar essa sinuosa estreia: continuar vivendo, agora sem mãe, aos 42 anos, no meio de uma pandemia cujas sequelas não conseguimos mensurar com exatidão até hoje. Me deram respostas profundas e serenas.

Quando não sei o que é pra fazer, corro para as pessoas que me querem bem, em quem confio, e que talvez saibam. Me conforta que elas estejam aqui, me entendo melhor na relação com elas. As coisas que eu não sei, às vezes, pergunto a essas pessoas. Às vezes, pergunto aos livros. 

Para ler

Lili, Noemi Jaffe, Companhia das Letras
As Pequenas Chances, Natalia Timerman, Todavia
Aos Prantos no Mercado, Michelle Zauner, Fósforo
Um prefácio para Olivia Guerra, Liana Ferraz, Ed. Harper Collins
Una Mujer, Annie Ernaux, Ed. Cabaret Voltaire (não publicado no BR)
Lutas e Metamorfoses de uma mulher, Edouard Louis, Todavia

Para ouvir 

Como Nossos Pais, Belchior
Jubilee, Japanese Breakfast

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