Manifesto pelo direito ao descanso se contrapõe à cultura do trabalho infinito - Mina
 
Seu Trabalho / Reportagem

Mulheres exaustas não fazem revolução: manifesto pelo direito ao descanso é criado no Brasil

Falar em descanso pode lembrar rede, sombra e água de coco, mas o que o relatório recém-criado traz é luta por igualdade, direitos e imposição de limites. Descansar é revolucionário!

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Hoje já existem muitos indícios de que dormir, descansar e manter o estresse sob controle é fundamental para levarmos uma vida saudável, tanto física como mentalmente. Mas para botar tudo o que a ciência descobriu em prática é preciso tempo – e é isso que está em falta. Foi pensando nas nossas necessidades e também numa maneira de liberar espaço na nossa agenda que Thais Fabris e Maira Blasi, duas pesquisadoras do universo do trabalho, criaram a Declaração pelos direitos dencansistas. A meta específica é melhorar o bem-estar feminino. “Percebi o quanto as pessoas estão exaustas, principalmente as mulheres, e que só medidas paliativas não resolvem, precisamos resolver a base do problema”, afirma Maíra,  fundadora da consultoria Subversiva.

Essa base a que ela se refere não é nada simples, porque envolve culturas criadas sobre princípios tortos, machismo e muita resistência do mundo capitalista. E daí a importância do manifesto, um projeto que abre a discussão em diversas frentes para que, um dia, a gente consiga descansar em paz. Semana de quatro dias e redução de jornada de trabalho são dois dos pontos mais óbvios, mas o relatório traz também outras necessidades para que o tão almejado tempo livre seja possível: aumento da licença paternidade, remuneração adequada para o trabalho do cuidado, fim da maternidade compulsória, paridade salarial e melhoria dos direitos das trabalhadoras domésticas estão na lista de reivindicações. 

“Hoje as mulheres vivem em uma jornada de trabalho infinita”

Claro que nada disso é simples, mas o importante aqui é a organização do pensamento que coloca o descanso como algo fundamental para o trabalho. Sai de cena o “trabalhe enquanto eles dormem” e a cultura do “viva para o seu trabalho”, entra na conversa uma profissional que se dedica ao trabalho dentre outras coisas  e, claro, tem tempo para hobbies e seu merecido descanso – justamente para que siga sendo uma excelente profissional. 

Entre os muitos dados impactantes que o relatório traz  estão alguns que mostram como as mulheres são as mais atingidas por essa falta de tempo que impossibilita o descanso. Segundo dados de 2022 da consultoria McKinsey, nós somos mais suscetíveis a sofrer com a síndrome de burnout nos ambientes de trabalho. Além disso, dedicamos 73% mais tempo que os homens às tarefas do cuidado. E para quem acha que evoluímos com o tempo, vale a informação: mães ocidentais dedicam o dobro de horas aos filhos em relação à década de 1960 – repare, quando menos mães trabalhavam fora de casa (UCI, 2018). “Não é exagero dizer que a tripla jornada feminina foi recentemente substituída pela percepção de que as mulheres vivem em uma jornada de trabalho infinita, em que as tarefas domésticas, o trabalho do cuidado e o trabalho remunerado são permeados pela carga mental de ter que gerir tudo isso, constituindo um trabalho que só cessa quando a mulher dorme”, afirma Thais, criadora da consultoria 65|10.

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Segundo a McKinsey, 42% das mulheres relataram ter sofrido burnout em 2021 – contra 32% dos homens. E 1 em cada 3 pensaram em trocar seu emprego por outro menos estressante. Um aumento relevante, já que antes da pandemia este número era 1 em cada 4. E aqui vale uma análise presente no relatório. “A exaustão das mulheres não é uma coincidência ou um acidente de percurso: é um projeto fundamental para a manutenção da atual ordem das coisas. Os corpos femininos são vistos como um recurso natural a ser explorado mas, assim como a natureza,

estamos no limite. Em seu livro Calibã e a Bruxa, Silvia Federici mostra como foi e é fundamental para a manutenção do sistema capitalista tirar das mulheres o controle sobre a reprodução e explorar seu trabalho nas tarefas do cuidado”. 

Pois se a gente achou que para conquistar tudo isso era preciso uma guerra, agora sabemos que é preciso também tempo livre e horas de descanso. Mas o cansaço atinge a geral: uma pesquisa da USP de 2021 mostrou que 65,5% da população brasileira relata problemas relacionados ao sono. Além disso, 4 em cada 10 brasileiros declaram não se sentir bem descansados (Gallup, 2021). Estamos, em média, 8% mais cansados do que a média global. 

Inspiração: The Nap Ministry

A Declaração pelos Direitos Descansistas criada pelas brasileiras foi inspirada em um projeto americano chamado The Nap Ministry (Ministério do Cochilo). Criado em 2016 por Triccia Hersey, uma escritora negra norte-americana e mãe solo, seu lema é pesquisar o poder libertador dos cochilos e tratar o descanso como uma forma de resistência. Mas assim como o movimento brasileiro, o “cochilo” é apenas a ponta do iceberg. 

Porque, por trás do nome simpático e da vontade de deitar numa rede bebendo água de coco, estão questões como a do trabalho não remunerado de meninas e mulheres em tarefas como cuidar de crianças e idosos, cozinhar, limpar, lavar (etc). A Declaração mostra que esses trabalhos representam uma contribuição de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano à economia global (Oxfam, 2020), o que dá mais de três vezes o valor da indústria de tecnologia do mundo. Ou seja, se as mulheres pararem, o mundo pára.

“Estamos longe de uma cultura do descanso mas precisamos normalizar essa conversa”

Para as pessoas negras no Brasil, podemos considerar que o direito ao descanso foi negado desde sempre, mas em especial depois da abolição da escravidão. Parece um contrassenso, e é: em 1890 (dois anos após a abolição) foi instituída a Lei de Vadiagem, que previa a condenação da pessoa que “deixar de exercitar profissão, ofício ou qualquer mister em que ganhe a vida”. A lei atingiu em cheio os negros recém libertos e sua cultura de dança e festa trazida dos países de origem. 

O Relatório traz uma fala do professor Luis Antonio Simas: “Existe um projeto de Brasil que opera na colonialidade cujo objetivo é aniquilar e domesticar os corpos. O corpo é visto como um arado, uma ferramenta de trabalho e, nesse sentido, qualquer manifestação que deslocasse a corporeidade para um território alheio a uma ética do trabalho era reprimida. Isso acaba sendo muito usado para reprimir manifestações das culturas de rua e das culturas afro-brasileiras, daquelas que fugiam a uma ética de trabalho centrada na disciplina do corpo do relógio. O direito, portanto, à vadiagem era absolutamente negado.” 

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Como deu pra perceber, a Declaração dos direitos descansistas entra com profundidade na cultura do trabalho e dos diversos tipos de exploração que vemos no Brasil. “O primeiro aspecto que a gente olha é o de política pública, que vai trazer mais conforto para as mulheres”, diz Thaís. Além disso, reunir o conteúdo garante que esse tema tenha mais vozes e mais visibilidade. “Estamos longe de uma cultura do descanso e o primeiro passo é a normalização dessa conversa”, comenta Maíra. 

Como um alento, a declaração informa que descanso é tendência e que o mundo vem olhando para isso com cada vez mais importância. Mas, como diz Tricia Hersey no The Nap Ministry, se formos esperar por férias numa ilha paradisíaca ou

algo do tipo, o descanso nunca acontecerá. “É preciso olhar para os direitos dencansistas como olhamos para os direitos trabalhistas”, afirma Maíra. E para não deixar nenhuma batalhadora na mão, o manifesto traz sugestões para descansar enquanto lutamos pelo direito ao descanso. E isso inclui coisas como dançar lentamente consigo mesma, não responder imediatamente a mensagens, fazer pausas regulares das mídias sociais, fazer um pequeno altar para sua casa, fechar os olhos por dez minutos, dentre outras coisas. Há também sugestões para as empresas lidarem com a questão e isso começa por mapear as tensões femininas. E aí, qual mundo você quer, o das mulheres exaustas ou o das que dançam, riem, dormem, gozam, fazem arte e escolhem como vão passar seu tempo? A resposta é unânime, mas para chegarmos lá é preciso que caminhemos todos juntos.

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