Benedita Casé: "Tirei um peso das costas ao revelar publicamente a minha surdez" - Mina
 
Suas Emoções / Entrevista

Benedita Casé: “Tirei um peso das costas ao revelar publicamente a minha surdez”

Sair do armário e revelar para o mundo sua surdez foi libertador e também produtivo: Benedita fala sobre os fantasmas dos quais se livrou, tudo que aprendeu e dá um spoiler do que vem por por aí nessa nova fase

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Nem as quatro paredes do consultório de terapia que Benedita Casé frequenta há cerca de duas décadas sabiam dos seus traumas mais marcantes. Diagnosticada aos três anos de idade com surdez profunda num ouvido e severa em outro (os dois níveis mais graves de perda auditiva), a diretora e roteirista passou a vida “trancada no armário”, atuando para si e para os outros – incluindo o terapeuta – como se não tivesse uma deficiência tão importante. “Eu não queria ser diferente de ninguém, só queria seguir a vida”, conta. 

Falar pouco sobre a surdez foi a maneira que encontrou de não chamar a atenção: “Sempre fui muito discreta, ao contrário da minha mãe e do resto da família, que é cheia de artistas”, diz a diretora, filha da atriz e apresentadora Regina Casé, com quem trabalhou no programa Esquenta. Não foi difícil fazer a deficiência passar quase despercebida porque Benedita tem uma impressionante habilidade oral, além de fazer leitura labial. 

Uma conversa com ela exige pouquíssimo ou nenhum esforço do interlocutor. Mas foi penoso negar a própria condição por tantos anos: “Paguei um preço alto”, revela. Hoje, aos 34, recém saída do armário, vive um momento de libertação. A coragem surgiu quando percebeu o tamanho das suas realizações até aqui, a despeito de todo o capacitismo enfrentado ao longo dos anos: “Olhei para trás e vi que tinha conseguido realizar muitas coisas legais e até inimagináveis no momento do diagnóstico”, diz. “Era a hora de contar isso”. 

“Passei a vida inteira me escondendo. Achava que revelar minha surdez ia me atrapalhar”

A guinada pessoal rendeu frutos na vida profissional: este ano, estreou o videocast PCD Pod, em que entrevista pessoas com deficiência, ao lado do cineasta e jornalista Pedro Henrique França – a segunda temporada ainda depende de patrocínios. Na conversa a seguir, Benedita analisa sua própria tomada de consciência em relação à surdez e fala sobre os desafios diários de se enfrentar o capacitismo, além de planos para o futuro.

O PCD Pod é seu primeiro projeto que envolve falar sobre a sua deficiência. Por que só agora, aos 34 anos, resolveu falar publicamente sobre o tema?
Porque eu simplesmente não conseguia. Fiquei muito tempo dentro desse armário. Acho que muita coisa aconteceu até o momento atual para que eu conseguisse falar publicamente. É algo recente na minha vida. Na verdade, comecei a falar sobre minha surdez para todo mundo há cerca de três anos. Claro que quem convive comigo sabia, mas, mesmo com quem eu não tinha problema em falar, não me sentia à vontade. Passei a vida inteira me escondendo.

O que te levou a ficar tantos anos trancada nesse armário?
Queria ter uma vida mais fácil e achava que revelar minha surdez ia me atrapalhar. Além disso, muitas situações que a gente passa por causa da deficiência vão fazendo a gente ficar com medo do que o outro vai achar. Até devo dizer que a minha mãe sempre me incentivou a falar, mas não é tão simples assim. 

Como foi a descoberta da surdez?
Tive o diagnóstico de três para quatro anos. Minha mãe me levou ao médico por causa de uma dificuldade na fala. Demorei para falar — quer dizer, até falava, mas meio embolado, com vários problemas de dicção. No consultório, o médico deu um susto na minha mãe: “Olha, eu nem sei como é que ela fala alguma coisa, porque ela não ouve nada”. Foi aquele baque. Então, tive o diagnóstico de surdez profunda no ouvido direito e surdez severa no esquerdo. Meus pais me levaram em outros médicos e escutaram absurdos. Eles ditavam como é que eu ia ser, o que ia acontecer comigo, porque colocam tudo em caixinhas: “Ah, vai acontecer isso e aquilo com ela, ela vai ser assim, assado”. Mas eu já tinha tido um desenvolvimento de fala um pouco fora da curva, por exemplo. Aí comecei a saga dos aparelhos, nos dois ouvidos, e passei a identificar alguns sons que não escutava antes. 

Quanto você consegue ouvir de aparelho hoje em dia?
Difícil falar em porcentagem porque é uma questão de frequências. Tenho mais de 75% de perda só de um lado. Os agudos eu não ouço nada, os médios também escuto pouquíssimos, mas se tiver um som grave mesmo que baixo, sou capaz de ouvir. Já um som agudo, de um apito, por exemplo, pode estar num volume alto que não escuto. O aparelho amplifica essas frequências que eu não ouço naturalmente. E tem outras coisas como, por exemplo, a compreensão da fala de uma conversa, que tem vários sons diferentes junto. Para mim, como eu tenho várias falhas diferentes, uso muito a leitura labial. E muita coisa não consigo ouvir mesmo com aparelho. Mas sem ele a comunicação fica inviável.

“O capacitismo tem muitas camadas. Ele se camufla de boa intenção”

Como foi atravessar os anos de colégio usando um aparelho no ouvido? Sofreu bullying?
Bom, uma vez eu fui eleita a mais feia da turma e hoje eu acho que era porque eu usava aparelho nos ouvidos, está totalmente atrelado a isso, a uma ideia do que é um corpo bonito padrão, né? Mas eu simplesmente não falava sobre minha surdez… Queria ser igual a todo mundo, então não comentava nada. Não queria que ninguém percebesse minha deficiência, nem meus amigos. Foi um processo difícil. Não levantava a mão quando tinha dúvida, não queria sentar na primeira fileira, no lugar marcado para mim, mas quando sentava no lugar normal, não conseguia acompanhar a aula. Minha mãe dizia: “Conta para o professor que você usa aparelho, explica que você faz leitura labial”, mas eu tinha medo da ideia de vitimismo, não queria ser “a coitadinha”, a que todo mundo ia comentar, sabe? Sempre fui muito discreta, diferente da minha mãe e do resto da família, que é cheia de artistas. Tinha um pouco de preguiça também de explicar tudo nas situações do cotidiano. Só que isso me atrapalhou muito porque eu fazia mais esforço do que precisava. Hoje em dia eu estou bem resolvida com isso, mas levei anos para chegar até aqui. 

Quando e como veio a virada de chave que finalmente te fez abrir o armário? Quando eu li uma matéria numa revista cujo título era “Surdos que ouvem”, com a Paula Pfeifer, que virou minha amiga depois. Falei: “Opa, eu estou nesse grupo”. Porque a comunidade surda é gigantesca e a surdez tem uma diversidade enorme. Existem várias nuances: tem surdo oralizado, sinalizado, bilíngue, tem surdo usa aparelho auditivo, que usa implante… E como eu tenho a oralização, ninguém imagina que eu tenho uma perda auditiva. Não tenho uma uma deficiência aparente. Então, quando li a matéria, me identifiquei e quis falar com ela. E eu me dei conta de que nunca tinha tido uma conversa com alguma pessoa com deficiência. Ela perguntou se eu não queria contar minha história e eu falei “de jeito nenhum”. Mas acabei fazendo. Gravei um vídeo para um programa dela no Facebook. Porque olhei para trás e vi que tinha conseguido realizar muitas coisas legais e até inimagináveis no momento do diagnóstico, quando ditaram como seria minha vida. A gente escutou muitos nãos. Acho que tive muita sorte dos meus pais terem duvidado de tudo isso, “vamos tentar, se não der, tudo bem, mas vamos tentar”. Então tomei coragem e falei, contei como eu consegui trabalhar normalmente, que me relacionei com pessoas, tive um filho. Era o momento de contar isso. Cheguei em casa e lembro de ver minha mãe super emocionada, chorando, ”o que que aconteceu com você?”. Ela passou a vida inteira me dizendo para falar.

E como a sua vida ficou depois disso?
Olha, eu só tinha convivido até então com pessoas sem deficiências, por causa desses motivos que contei, ou seja, passei a vida numa bolha ao contrário. Eu nunca aprendi libras, por exemplo, mas estou aprendendo agora, me toquei de que preciso. A Paula abriu um caminho e eu fui buscar outras pessoas que vivem como eu. Aí tudo mudou, porque tem essa coisa do espelho: “Caramba, eu também passo por isso”. As coisas ficaram naturalizadas para mim, falar sobre o assunto ficou fácil. E a gente não imagina a força que as redes têm. Quando contei pela primeira vez, recebi milhares de mensagens, fiquei impressionada. Mães dizendo “estou passando isso com meu filho”, “nossa, então pode ser que ele não precise de escola especial”. Depois o Pedro Bial me convidou para ir no programa dele, aí explodiu. Foi um choque inclusive para quem me conhecia, porque muita gente disse “poxa, somos amigos há tantos anos e eu não sabia disso tudo, poderia ter agido diferente”. Tirei um peso das costas. Agora as pessoas sabem como se comportar comigo. 

Você acha que, desde que saiu deste armário, o preconceito em relação à sua deficiência diminuiu?
Não sei dizer… O capacitismo tem muitas camadas. Ele se camufla de boa intenção. Muita gente nos coloca como “anjos”, “heróis”, mas, na verdade, está nos desumanizando totalmente. Há, por exemplo, quem sugira que eu tire o aparelho em determinadas situações, como escutei várias vezes na vida. Lembro quando a mãe de uma amiga minha, quando a gente estava se arrumando para ir a um show, disse: “Vai sem aparelho, você fica mais bonita”. Eu era adolescente e claro que tirei porque achava que ela estava certa, realmente ficaria mais bonita para alguém. Só quando comecei a ter outro entendimento das coisas é que percebi como aquilo era ruim, até violento mesmo. Mas eu obedecia naturalmente. Fui procurar fotos minhas de criança e em todas estou com o cabelo para frente para esconder o aparelho. As pessoas falavam “tira o cabelo de trás da orelha”, gente da minha família dizia isso, amigos diziam. E as pessoas que berravam ou faziam mímica? No colégio tinha uma menina que só falava assim comigo. Eu ficava constrangida, com raiva, mas não sabia o que fazer. Quando olho para trás, eu penso que teria feito muita coisa completamente diferente.

Alguma situação de capacitismo te marcou profundamente?
Escolas terem me rejeitado, por exemplo… Eu queria muito estudar numa escola e passei na prova. Quando a gente chegou lá, a coordenadora disse: “A Benedita é uma graça, mas a gente não está preparado para recebê-la”. Escutei muito que eu sou “um amor, mas…”. E as pessoas não aceitam a minha relação com a música. Eu escuto bem os sons graves e o aparelho me ajuda muito. Mas, por exemplo, uma vez postei uma foto no carnaval de Salvador e os comentários eram tipo “para que você vai em show?”. As pessoas têm dificuldade de entender que a gente pode estar naquele espaço. 

“Conforme meu filho foi crescendo, senti que já entendia como funcionava a minha deficiência”

Você faz terapia para lidar melhor com essas situações? Chegou a ter depressão?
Não, nunca tive depressão. Tive o privilégio de fazer terapia a vida toda, que me ajudou em várias questões. Mas a minha relação com a surdez nunca foi um assunto. Talvez eu levasse algumas coisas que tinham acontecido na escola, mas bem poucas. Teve um momento que minha mãe comprou um aparelho verde para mim, numa tentativa de deixar claro que eu usava. Aí, andando na rua, alguém gritou que eu estava com um abacate na orelha. Aquilo mexeu muito comigo e lembro de levar para a terapia. Mas, em geral, não conversava sobre a minha deficiência.

E quais os desafios de criar o Brás sendo uma mãe surda?
Sempre quis ser mãe, mas tinha muitas preocupações, principalmente em relação ao choro, já que não ouço agudo nenhum. Ficava pensando: “Como vou saber que ele está chorando?”, “como vou conseguir me comunicar com ele?”, “será que vou ser sempre dependente do João?”. Eram ideias que me assustavam. Mas, quando ele nasceu, descobri outras tecnologias, tipo babá eletrônica que pisca, vibra. E conforme ele foi crescendo, fui notando várias coisas que ele já fazia naturalmente, senti que ele já entendia como funcionava a minha deficiência. Pensei comigo mesma: “Tudo certo, não tenho que ficar nessa neurose”. O Brás começou a me avisar, por exemplo, quando a campainha tocava. Muito intuitivamente, ele percebia que eu não escutava, já desde pequeno. E passou a imitar o jeito que as pessoas fazem para se comunicar comigo, tipo colocar a voz mais grave para eu ouvir.

Quando você viaja aparecem mais dificuldades? Quais? 
Muitas! Já começa no aeroporto e no avião, porque é muito difícil de entender o comissário, a aeromoça, quando eles falam e dão comunicados. Fico angustiada porque tenho medo de voar de avião e, quando dão informações importantes, eu não sei o que se passa. Outro dia, por exemplo, o avião em que eu estava arremeteu e eu queria muito saber o motivo. Ficamos um tempo sobrevoando, mas eu não conseguia entender o porquê. Falta acessibilidade nos voos e é uma coisa simples de se fazer. Seria só colocar legendas automáticas. Ando sempre com os aplicativos de transcrição em tempo real, mas quando o avião não tem internet fico bem perdida e angustiada mesmo.

Quais as dificuldades de se comunicar em outra língua? A leitura labial é mais difícil?
Sei inglês intermediário e sempre tive muita dificuldade em aprender. Entrava em pânico quando era criança e adolescente nas aulas em inglês. Mas depois fui entender que tem explicação para isso. A leitura labial em outra língua é muito mais difícil porque não é um movimento que eu já estou acostumada. Mas continuo aprendendo inglês, procuro fazer aulas sempre que consigo. E é engraçado que muitas pessoas com surdez em níveis diferentes dizem que isso é comum. A gente sempre conversa sobre o assunto, “puxa, inglês é difícil, né?” E ficam felizes quando conseguem falar inglês fluente. Eu vou chegar lá!

Como foi encontrar tantas pessoas com deficiência fazendo o podcast – sobretudo depois de ter passado anos disfarçando e sem falar sobre a sua? Pode contar algo que aprendeu com um ou mais entrevistados?
Nossa, fazer o PCD Pod foi maravilhoso porque estou neste processo de falar cada vez mais e perder os medos que tive até hoje por conta da sociedade capacitista. Trocar com tanta gente incrível, que tem outras deficiências, e ouvir sobre experiências completamente diferentes da minha – e ao mesmo tempo com tantas coisas em comum – foi muito, muito bom. Fiquei mais à vontade para falar sobre as minhas questões e também aprendi demais. Fui ficando cada vez mais relaxada. Esse lugar de escuta é maravilhoso. Bom, eu poderia fazer uma lista de coisas que aprendi com tantos entrevistados… Foi incrível trocar com a Laís Souza e a Lelê Martins, por exemplo. Ambas têm deficiências físicas e vêm de realidades diferentes. A Laís pode fazer o tratamento fora do Brasil, experimentar novas tecnologias, e a Lelê traz o contexto de como é ser mulher preta de uma favela carioca e fazer tratamento no SUS. Foi uma troca muito rica que me marcou. Abordamos temas como o humor capacitista, com o Gigante Leo, que falou também sobre os desafios de ser um pai com nanismo, porque as pessoas não acreditam que ele seja capaz de ser pai… Enfim, aprendi tanto que poderia ficar aqui até amanhã. 

Depois do podcast, quais são seus projetos profissionais futuros?
Neste momento estou dirigindo, junto com o João, meu marido, um programa para o GNT, chamado Pai é Pai. É sobre pais pretos, apresentado pelo ator Rafael Zulu e sua filha adolescente, a Luísa. Nosso objetivo é combater a imagem estereotipada à qual estamos acostumados de que o pai preto é agressivo, é frio, que não tem afeto. E existem outras manifestações de afeto, de pais de uma outra geração. A ideia do programa surgiu a partir da paternidade do João. A gente vê no dia a dia como ele serve de exemplo para outros pais, porque as pessoas sempre comentam: “Caramba, como a relação de vocês é legal” e dizem “fico pensando como posso fazer com meu filho, minha filha”. O Zulu é um amigo querido e a gente sempre assistiu de camarote a relação dele com a filha — eles têm uma troca super legal, com um canal aberto para ela falar com o pai sobre tudo, sem tabu. Então resolvemos trazer essas questões para a mesa com leveza, num papo descontraído, e mostrar pais pretos que deram certo, novos caminhos, possibilidades, diálogos e afetos. Serão conversas lindas com pais conhecidos e não conhecidos, em seis episódios. Já comecei a gravar alguns depoimentos, mas ainda não temos data de estreia.

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