Eu sempre me senti deslocada, incompreendida, inadequada, diferente, triste demais. Minha infância não foi das mais fáceis. Tudo o que os outros faziam parecia difícil para mim. Tinha poucos amigos e muita dificuldade de manter essas relações. Eu até tentava dormir na casa das minhas amigas ou primas. Lembro uma vez que chorei tanto durante a madrugada que minha tia precisou me levar de volta para casa – eu morava do outro lado da rua.
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Sempre chorei muito. Por tudo. Hoje, entendo que meu choro vem quando não consigo verbalizar algo ou quando não consigo processar o que está acontecendo – coisas boas e ruins. Quando aluguei meu primeiro apartamento, fiquei literalmente paralisada. Era para eu estar feliz, mas não conseguia e chorava por não entender o porquê daquela sensação tão confusa. É frustrante saber o que você “tem que” sentir, mas você não consegue. Então, vinham os questionamentos: “Por que não sou normal? O que eu tenho de errado?”.
A sensação de inadequação está sempre presente
Mas eu não estou sendo linear – na verdade, eu não sou linear, apesar de gostar de cronologia. Na escola, meu desenvolvimento era acima do esperado. Teve uma época em que quase pulei um ano, mas não rolou (hoje já é quase um consenso que isso pode prejudicar o desenvolvimento social da criança ou adolescente). Aos 15, eu me encontrava em uma situação bem mais crítica que fez com que minha família procurasse ajuda profissional.
Nasci na periferia de São Paulo, meu pai era porteiro e minha mãe trabalhava como operária em uma fábrica de cosméticos. Então, eles não tinham instrução e usaram as ferramentas que estavam ao alcance: íamos a benzedeiras, pais de santo; padres aplicaram duas vezes a unção dos enfermos em mim. Até que, aos 16, comecei a me consultar com psiquiatras já que aquela menina tímida, mas com um vocabulário “de adulto”, que articulava palavras rebuscadas, estava cada vez mais fóbica e deprimida.
Fora da ordem
Passei por diversos diagnósticos ao longo da minha vida: Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), bipolaridade, depressão maior. Eu fazia tratamento à base de medicação, mas nunca era suficiente. A terapia só fui aceitar fazer aos 26 anos. Perdi muito tempo, mas já são 11 de terapia – e nunca parei com os medicamentos. Hoje, sei que essa confusão de diagnósticos se dá pela capacidade feminina de camuflar ou, como dizem, mascarar as características do espectro autista.
Nunca soube modular a minha voz. Fora que nunca sei a deixa para começar a falar ou sair de algum lugar. Ao longo da minha vida fui taxada de grossa, chata e mal-educada.
Durante a pandemia, meu terapeuta ventilou que eu poderia fazer parte do espectro autista (TEA) pois minhas crises depressivas e de ansiedade haviam diminuído consideravelmente. Eu não estava sendo superestimulada. Eu não precisava ver pessoas, não precisava “performar”, me preocupar com roupas ou com a minha postura – “Amanda, senta que nem mocinha!“. Essa cobrança sempre existiu e ainda existe, mas agora com outras palavras. Tudo no meu trabalho era produzido online e os encontros sociais não existiam mais. Eu não precisava fingir interesse, não existia mais papo de elevador.
Finalmente faço parte de um grupo, mas não foi um alívio imediato para mim
Somos seres sociais, eu sei, e se relacionar é importante para o nosso desenvolvimento. Mas as “tarefas” que são necessárias para uma neurodivergente viver em um mundo neurotípico pode tornar tudo muito complicado. Ter essa consciência também é algo doloroso. A sensação de inadequação está sempre presente.
Recebi o diagnóstico em 2022 e ele me definiu muito bem. Agora, finalmente faço parte de um grupo. Mas, ao contrário da maioria das pessoas que passam por isso, não foi um alívio imediato para mim. Repassei grande parte da minha vida que não queria repassar.
Comecei a lembrar de situações dolorosas na infância, de como a escola havia sido terrível e traumática, das discussões dos meus pais e como eu percebia aquilo. Entendi que muitas vezes entendi errado. Pela dificuldade que sempre tive com figuras de linguagem e de perceber as inflexões na fala das pessoas, me dei conta de que muitas vezes discuti sozinha. Situações as quais eu considerava brigas; na verdade não eram brigas, pelo menos no início. Talvez eu as tenha começado. Hoje, me acolho mais e não fico retomando tais situações.
Sou comunicadora, muitos me admiram pela minha capacidade de falar sobre temas ainda tão delicados relacionados à saúde mental. Meu podcast, o Esquizofrenoias, é reconhecido por sua abordagem acolhedora e sem tabus. E o diagnóstico do TEA me levou a uma nova inquietude: como comunicar o assunto e usar a minha voz para que as pessoas, além da comunidade do autismo, pudessem se interessar pelo tema? Por que não mostrar a minha vulnerabilidade e a minha curiosidade com o assunto? E por que não mostrar esse alívio e identificação com um grupo. Sempre me senti à margem, diferente. Mas agora finalmente parece que eu tenho a minha galera.
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Surgiu então o Amanda no Espectro (vem cá assistir ao primeiro episódio), o primeiro spin-off do Esquizofrenoias em vídeo, que vai ao ar no meu canal no YouTube e no Spotify, às segundas-feiras. Durante os episódios, me reconheço nos entrevistados, me identifico, rio, choro… A colorista digital Marina Amaral também teve seu diagnóstico tardio e falou sobre regras sociais: “É como se todo mundo tivesse um manual para viver e conviver e a gente não tem acesso a este manual, ou ainda, para nós ele está todo errado”.
O apresentador Manoel Soares tem dois filhos no espectro autista não oralizados e no início das investigações, quando a neurologista levantou a possibilidade, ele negou. “Na pandemia seria a época dos meus filhos iniciarem a verbalização. Mas como isso não estava acontecendo, acreditava que era apenas uma consequência daquele momento. Por isso digo, façam a investigação precoce”, alertou.
Agora, finalmente posso ser eu. Espero que o projeto atinja mais pessoas como eu e seja o primeiro passo para a ampliarmos a discussão sobre neurodiversidade. A neurodiversidade engloba todas as diversidades, mas infelizmente não é debatida. Vamos começar?