Pare para pensar: não é só nos filmes pornôs que o sexo é performático, criando uma referência totalmente distante da realidade para quem consome. Em comédias românticas, o script de cenas sexuais parece seguir uma mesma fórmula. O casal – normalmente constituído por um homem e uma mulher (geralmente brancos, magros e heterossexuais) – troca meia dúzia de beijos, se despe depressa e logo partem para a penetração, embarcando em momentos de muito prazer.
Exemplos não faltam. Lembra das cenas de sexo de Diário de uma paixão? Ou de Amizade Colorida? Ou das imagens picantes de Sr. e Sra. Smith, em que o par Angelina Jolie e Brad Pitt encerravam discussões e brigas na cama? Quem, na vida real, já fica sedenta com tão pouco estímulo, minha gente?
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Essa performatização do sexo em Hollywood acontece porque a mídia constrói a sexualidade feminina seguindo a mesma lógica do pornô: baseada no prazer masculino, explica Clara Fagundes, pesquisadora especialista em futuros, cultura e mídia. Este modo de retratar as personagens femininas através de um olhar hiperssexualizado é tão comum em produções audiovisuais que ganhou até nome, é a estética “male gaze“.
Hollywood: cenário dos desejos masculinos
A palavra gaze, em inglês, refere-se ao ato de olhar algo ou alguém por um longo período. Male gaze, então, significa retratar o mundo através de uma perspectiva masculina. O termo apareceu pela primeira vez em 1975, no ensaio Prazer Visual e Cinema Narrativo, da crítica britânica Laura Mulvey, que defende que o olhar cinematográfico foi construído pela ótica do homem hétero-cisgênero.
“Parece que todas as mulheres de Hollywood gozam só com penetração”
Segundo a teoria, o male gaze se manifesta tanto do ponto de vista técnico (a câmera sempre coloca o corpo da mulher no centro do plano, como um objeto a ser observado) quanto criativo (a personagem feminina existe sempre como apoio ao personagem masculino). “Em quantos filmes de Hollywood você lembra de ter visto uma cena em que uma mulher entra no quadro e a câmera começa a filmar de baixo pra cima, foca no seio e só depois mostra o rosto da personagem? É a ideia de que o corpo está acima da personalidade da mulher e isso se reflete também nas cenas de sexo”, explica Clara.
A pesquisadora concorda que as cenas de sexo destoam do que acontece na vida real: “Primeiro que é super-rápido, né? A mulher já está ali, pronta e lubrificada, é uma pegação e pronto… O orgasmo vem. É uma projeção irreal quando levamos em conta que, na realidade, poucas mulheres gozam apenas com penetração”.
Prazer para quem?
Seguindo essa linha, a sexóloga e especialista em psicologia positiva Lua Menezes faz uma provocação: “Parece que todas as mulheres de Hollywood gozam só com penetração. Onde é que a gente vê estimulação clitoriana em filme de comédia romântica? Isso reforça a cultura do prazer falocêntrico, de que o pênis é a grande fonte de satisfação sexual”.
Para ela, essa representação performática do sexo é limitante e preguiçosa. “É preciso aumentar os repertórios de prazer. A gente fala tanto em diversidade, por que também não diversifica as formas de sentir prazer? Por que a paixão é sempre representada, no cinema, com um casal chegando em casa, quebrando tudo e fazendo sexo de pé, com um dos parceiros apoiados na parede? A paixão também pode ser representada através de uma massagem lenta, de carinho, beijos… De diversas formas”.
“O male gaze desumaniza as mulheres, mas o female gaze não desumaniza os homens”
Vale lembrar que muitas mulheres, por vergonha ou questões culturais, não veem pornô e têm como referência sexual filmes de romance, drama e comédia romântica. Não que o cinema seja o grande responsável pela visão distorcida do prazer feminino, mas reflete uma construção cultural de que a mulher está sempre à disposição do homem – inclusive na cama.
Sorte é que esse cenário pode ser revertido. Para Clara Fagundes, o primeiro passo em direção à mudança é ter mais autoras, diretoras e produtoras em Hollywood. “Vivemos por muito tempo sob o domínio do male gaze, agora é hora de valorizar o female gaze”, aposta a pesquisadora. “Quando a gente conta as nossas próprias histórias, conta com complexidade, com nuances. Sabemos o que dá prazer de verdade e o que é mais interessante pra gente. O male gaze desumaniza as mulheres, mas o female gaze não desumaniza os homens”, diz.
A caminho do bem
No fundo, Hollywood já se deu conta da necessidade dessa mudança. De acordo com um estudo feito pela Universidade Estadual de San Diego, das 100 maiores bilheterias de 2020 nos Estados Unidos, 18% dos filmes eram dirigidos por mulheres. Foi um número recorde do levantamento, que é feito há mais de 20 anos. Em 2018, a cota era apenas de 4% e, em 2019, de 12%.
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Porém, são os serviços de streaming que têm investido em produções que, de fato, representam o prazer e os desejos femininos. Em 2021, por exemplo, a série Sex Life, de Stacy Rukeyser, deu o que falar. A trama conta a história de uma mãe de dois filhos, com um casamento bem-sucedido, que não para de pensar no passado tórrido que viveu com o ex-namorado. Na filmagem, que conta com várias cenas de sexo oral, o foco é o prazer feminino.
Outros exemplos de como as telinhas podem, sim, estar à favor da sexualidade feminina são Fleabag (de Phoebe Waller-Bridge, na Amazon), A vida sexual das universitárias (de Mindy Kaling, na HBO), Valéria (de María López Castaño, na Netflix)… E por aí vai. Da próxima vez que for convidar alguém para “assistir à Netflix” na sua casa, a dica é: pesquise por filmes e séries produzidos, dirigidos ou escritos por mulheres. Assim, aumentam as chances de surgir deliciosas inspirações para apimentar de verdade a hora do sexo.