Cantora Tiê fala do corpo e do abuso que sofreu - Mina
 
Seu Corpo / Arquivo Pessoal

Tiê: “Sou feliz dentro do padrão que criei pra mim”

A cantora e compositora fala de sua relação com o corpo atravessado pelo abandono do pai, um abuso, vitiligo, três filhas, dois abortos naturais, muitas composições e uma cirurgia para se livrar do culote

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Olhando para suas fotos do passado, Tiê lembrou das questões que tinha com corpo: achava a barriga saliente, se incomodava com as manchas de vitiligo, com nariz torto e o cabelo muito liso… Ela estreou na vida artística, como modelo, aos 13 anos e, quando completou 18 anos, juntou R$ 2.500 para se livrar do culote em uma cirurgia plástica. Hoje, com 43 anos, não se arrepende do procedimento estético, mas mudou muito sua relação com o corpo e com o que se convencionou a chamar de defeito.

Até com o vitiligo, que desenvolveu aos 11 anos, ela percebeu que estar desencanada era o melhor remédio: quanto menos ligava, menos aparente ficavam as manchas. A percepção veio aos 23 anos, quando abriu um brechó descolado em São Paulo (SP) e passou a acompanhar as manchas na luz negra do banheiro: “Percebi que as manchas aumentavam quanto mais estressada eu ficava”, conta. “Então, comecei a chamar a doença de ‘nem te ligo’, parei de ligar e as manchas diminuíram bastante.” 

Após o abandono do pai na infância e uma adolescência difícil depois de um abuso, ela conta que só conseguiu finalmente “se aceitar e se entender” aos 26 anos, justamente quando precisou lidar com a possibilidade de morte ao descobrir um tumor no pulmão. 

Hoje, observando as questões das duas filhas adolescentes, ela repara que os problemas são ainda mais complexos. “Elas têm um lado melhor, de conscientização, e a gente fala mais sobre isso, mas tem esse outro lado que é terrível”, diz se referindo à influência dos padrões irreais disseminados pelas redes sociais e Inteligência Artificial.

Grávida de seis meses do seu terceiro filho, a cantora e compositora assume que na gravidez a relação com o corpo se torna mais fácil, talvez pela “bomba de hormônios”, mas também porque a barriga vira o centro e as cobranças diminuem. Mas ela revela: “Fui muito mais magra até os 30 anos e faz tempo que já não sou tão magra. Mas posso dizer que vivo bem dentro desse novo padrão que criei pra mim”. 

Inclui-se nesse padrão, sair “largada” na rua, com cabelo preso e sem sutiã, apesar do pedido das filhas para que se vista “como as outras mães”, conta rindo. A seguir, cinco fases da vida da cantora através de fotos. 

Aos 10 anos, clicada pela mãe | Arquivo Pessoal

“Eu era muito ‘Maria vai com as outras'”

“Sem internet, as cobranças com o corpo eram menores. Tive uma infância ótima nesse sentido”, diz Tiê, criada pela mãe em São Paulo como filha única, até ganhar um irmão aos 9 anos de idade. “Tinha essa coisa de vir de uma família de artistas e de mãe solteira. Uma vez, uma amiga chamou minha mãe de ‘prafrentex’ e ela ficou puta da vida. Nos anos 90 não era tão comum ter uma mãe divorciada.” 

A artista lembra que passou em um teste para atuar em uma novela da Manchete e que, ao negociar folgas para a filha na escola, sua mãe ouviu que “artista não precisava estudar”. “Ela me transferiu na hora. Minha avó era atriz, deu o primeiro beijo na TV Tupi, mas também se formou em Direito, era super culta. Elas eram feministas, mesmo sem saber”.

Tiê lembra de se sentir insegura com a ausência do pai, que abandonou a família cedo. “Eu era muito ‘Maria vai com as outras’, vivia implorando por atenção, mas fui sobrevivendo…” As marcas da ausência também apareciam no corpo: antes da visita anual do pai, Tiê acabava internada com crise de bronquite. “Sempre respondi muito no corpo, tive essa coisa psicossomática, doenças autoimunes, que têm um viés emocional.”

Aos 13 anos Tiê já trabalhava e não conseguia passar muito tempo com as amigas, com as quais mantém contato até hoje | Arquivo Pessoal

“As pessoas perguntavam o que eu tinha no rosto, se pegava…”

Aos 11 anos, Tiê desenvolveu vitiligo, pequenas manchas brancas que começaram a surgir no corpo 15 dias após ela sofrer um abuso sexual – sobre o qual comenta, mas não gosta de dar detalhes. A ausência do pai também a levou a desenvolver um senso de responsabilidade precoce. A artista começou a trabalhar como modelo aos 12 anos e chegou a modelar no Japão. Mas, conforme o vitiligo se espalhou e atingiu seu rosto, ela se sentiu desconfortável de seguir na profissão, parou aos 15 anos. “Meus amigos me chamavam de hamster. As pessoas perguntavam o que eu tinha no rosto, se pegava…”, conta. 

Tiê cresceu rápido, era a última da fila do balé e a grandona da sala, o que criou uma falsa expectativa de que seria alta suficiente para ser modelo. Observando as mulheres da família, ela percebeu que não corresponderia a essa expectativa. Chegou aos 1,70 m, mesma altura de hoje, aos 14 anos. Outra pressão era em relação ao peso. Ela chegou a comer abacaxi durante uma semana para perder 4 kg e cumprir as medidas informadas a um trabalho meses antes. “Eu também achava meu nariz meio torto, queria que meu cabelo fosse enrolado. Coisas pequenas que me incomodavam.” 

Com 20 anos, Tiê canta em um estúdio em Nova York | Arquivo Pessoal

“Decidi que não tinha que agradar ninguém”

Tiê começou a cursar Relações Públicas aos 20 anos e teve a oportunidade de ir a Nova York produzir um festival de música brasileira. A experiência foi tão impactante que ela trancou a faculdade para passar um ano na cidade, onde estudou canto. “Eu já queria ser cantora, tinha o incentivo da minha família, mas era muito insegura, sentia que não tinha nada a dizer.”

Tudo mudou quando, aos 26 anos, já cantando profissionalmente e se apresentando com Toquinho no Chile, Tiê teve uma febre fulminante e descobriu um tumor infeccioso no pulmão. “Entendi que eu era tensa demais, muito encanada com os problemas do dia a dia”, diz. “Foi quando se abriu a Caixa de Pandora. Comecei a me aceitar. Decidi que eu tinha que tocar o foda-se, não tinha que agradar ninguém, apenas me agradar.”

“Fui realmente virar uma artista com as minhas próprias músicas depois dos 28”, conta a compositora, que finalmente deu vazão às suas canções, que ela considera simples, mas também sinceras e repletas de uma paz que ela mesma não teve em muitos momentos. “A música me salvou”, garante. 

Tiê, com 33 anos, posa para divulgação de disco em foto tirada pelo pai de suas duas filhas | Arquivo Pessoal

“Plena e muito bem resolvida”

Os 30 anos foram um momento de plenitude para Tiê. Além de ter consolidado sua carreira como cantora e compositora, ela teve suas duas filhas nesse período. “Foi tão tranquilo e louco ao mesmo tempo. Era um monte de filho, um monte de trabalho. Corre para lá, corre para cá, dá de mamar, leva as crianças junto…”, descreve ela.

A cantora e compositora chegou a fazer um de seus maiores shows, no Réveillon da Avenida Paulista, doze dias após parir a segunda filha. Tiê teve uma cesárea e ainda estava com a cinta pós parto quando subiu no palco. “Quando a gente tem muita coisa, não dá muito tempo para pensar, né?”, diz.

Nesse meio tempo, ela se separou e teve um período mais confuso, mas o dia a dia agitado com os shows e as crianças ocupavam seu tempo e a sua mente. “Mas com o corpo eu estava muito bem resolvida”.

Tiê, aos 43 anos, na terceira gravidez, após passar por dois abortos espontâneos | Arquivo Pessoal

 “A gente tem que fazer o melhor que pode e pronto”

Grávida de seis meses, Tiê sente mais cansaço em conciliar a vida artística com a maternidade aos 43 anos. “Adoro trabalhar, mas se eu puder escolher, canto um dia e durmo dois”, confessa. A pressão de fazer tudo bem feito, se manter plena e ainda expressar gratidão começa a incomodar. “A gente tem que fazer o melhor que pode e pronto”, afirma. 

A gravidez veio quatro meses depois dela sofrer dois abortos espontâneos. “Nunca achei que isso pudesse acontecer porque eu tenho duas filhas”, diz. A artista conta que passou pela experiência durante a pandemia, sozinha, já que a mãe e o namorado estavam com covid. “Eu estava no hospital cheio de mulher, criança nascendo, bexigas penduradas, e eu, lá, sangrando, fazendo curetagem. Foi um horror.”

Tiê diz ter sentido na pele o tabu que envolve o luto gestacional na sociedade. Ela se sentia culpada por ficar triste pela perda, já que tinha duas filhas e algumas de suas amigas nem ao menos tinham conseguido engravidar. “As pessoas falavam: ‘tudo bem, você já tem duas filhas’, ‘é só tentar de novo’. Mas, gente, não é carro na garagem, não! Eu só queria ouvir um ‘sinto muito’ porque é uma dor muito louca mesmo.”

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