Alice Carvalho fala sobre Cangaço novo, negritude e bissexualidade - Mina
 
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Alice Carvalho: “Dinorah me deu coragem de colocar a fúria para fora”

A jovem atriz fala de sua trajetória desde a infância e conta como vivenciar Dinorah Vaqueiro em "Cangaço Novo" mexeu com seus traumas

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A terra batida, o ar árido, o clima de cidadezinha do interior e o cavalo arreado cortando o silêncio. Montá-lo era a chance de criar uma nova realidade e foi exatamente o que a atriz Alice Carvalho fez. “Na época, estava com tanta fome de atuar que fui com tudo para os testes de Cangaço Novo. Era como se um cavalo selado estivesse passando na minha frente correndo apenas aquela vez. Eu tinha que montar nele antes de desembestar”, diz.

Alice é de Parnamirim, região metropolitana de Natal, Rio Grande do Norte. É escritora, dramaturga, roteirista, diretora e artista visual. Hiperativa, cresceu em meio aos primos, criados como irmãos, fazendo molecagem. Filha de mãe solo, ela conta que seus avós são seus pilares. “Meu avô foi o cara que mais me incentivou, que carregou no carro o cenário dos espetáculos, enquanto minha avó dava todo suporte para a minha mãe. Eles são o meu alicerce” , diz. 

Antes de incorporar Dinorah na nova série da Amazon, Alice co-produziu e protagonizou a série Septo, e a peça Inkubus e participou da série Segunda Chamada, na Globo. Seu talento também foi para as livrarias, com os livros Do Amor, e a A Princesa Empoderou. Em uma entrevista delicada e longa, a artista conta através de 5 fotos, sua história de vida, fala da bissexualidade e do abuso que sofreu na infância e a aproximou da personagem Dinorah.

Aos 5 anos, com o primo que considera irmão

Roupas largas e futebol da rua

Com acesso restrito a espetáculos e cinemas, o que restava para aquela criança considerada hiperativa era brincar com os primos na rua e inventar o que queria ser. “Dizia que queria ser bióloga marinha, jogadora de futebol e atriz de novela, até que as outras opções foram sendo riscadas da lista e quando vi já estava sendo atriz”, relembra.

Alice sempre teve liberdade pra fazer o que quisesse e se vestir da forma que achasse mais confortável. “Sempre gostei de usar bermuda de surfistas e roupas  largas, porque eu gostava de brincar, de jogar bola”, diz. Foi aos 10 anos que entrou no teatro. “Segundo meu professor, eu chegava toda suada, brincando e criando histórias”.

Aos 17 anos, poucos antes de parar de alisar o cabelo e voltar a tomar sol

A garota que fugia do sol

As novelas marcaram a infância de Alice e um dos grandes sucessos das 19h na TV Globo foi um marco. “Cobras e Lagartos foi foda, tinha o Foguinho interpretado por Lázaro Ramos e a Taís Araújo, eu amava.” Já entrando na adolescência, as brincadeiras ganharam outros contornos. “Algo tinha mudado, e como a pressão da heteronormatividade, percebi que existia uma divisão: meninas de um lado e meninos do outro. Só que eu não me encaixava”, diz. 

Nessa nova conjuntura, Alice tentou se encaixar num padrão – que estava longe do que ela era. Menina negra de pele clara e cabelos cacheados, pediu à avó cabeleireira para alisar seu cabelo. “A partir do momento que comecei a alisar meu cabelo existiu uma passabilidade pra mim. Também não gostava de pegar o sol, queria me encaixar e ser algo que não era eu. Deixar de ser preterida”, diz. 

Alice não possui muitas fotos dos 12 aos 16 anos.

Bissexualidade e respeito

O entendimento de si veio quando Alice percebeu que a turma do teatro tinha muito mais a ver com ela. “Não fazia mais sentido andar com a galera da escola”. A atriz conta que foi a última a beijar na boca e a namorar, mas foi a primeira a assumir a sua bissexualidade. “Não fui arrancada do armário, foi tudo muito tranquilo. Lembro de ter dado o primeiro beijo numa mulher aos 16 anos”, conta. 

De família progressista, todos a acolheram de maneira amorosa e respeitosa. “Meu avô foi incrível e meu irmão foi a primeira pessoa que soube, porque também fui a primeira pessoa para quem ele se assumiu”, revela. A artista conta que com a avó rolou um certo estranhamento, mas não durou muito. “Ela sempre foi minha parceira, a gente assistia às novelas juntas, e hoje, não tem nem sombra desse estranhamento”.  

O período foi de desabrochar também como atriz de teatro, em que estava concentrada montando seu primeiro espetáculo com um coletivo. “O processo de me tornar atriz foi acontecendo de forma natural, quase como respirar.”

Aos 20 anos, no começo da transição capilar

Cabeça raspada e feminilidade 

Aos 20 anos, Alice estava imersa em um pouco de tudo. Fazia trabalhos como dj e também era uma faz tudo em um teatro em que o primo/irmão era bilheteiro. Neste período, vivenciou a transição capilar.  “Tinha parado de passar química aos 17 anos, mas aos 20 raspei a cabeça por causa de uma personagem que tinha câncer. Passei a receber olhares e comentários violentos”. 

A fase com os cabelos curtinhos mostrou outros pontos sobre feminilidade, segurança e imposições sociais. “Com cabelo raspado, lembro de entrar numa insegurança absurda e de me sentir feia. Ouvia que tinha que me maquiar mais, usar brincos.” Alice conta que ficava paralisada diante dessas violências e confessa que só aprendeu a se posicionar com firmeza nesses momentos de ataque anos depois, justamente com a personagem Dinorah Vaqueiro. 

Aos 24 anos, durante as filmagens de Cangaço Novo

Letramento racial e parcerias 

Antes de Dinorah chegar na vida de Alice, ela se aproximou de pessoas negras e não brancas e buscou conhecimento para seu letramento racial. “Fui me educar ao passo que a rua pedia que eu me educasse, e conhecer mulheres negras pensadoras me ajudou muito nesse processo” diz. 

Com seu monólogo Inkubus, que tratava da violência contra a mulher, Alice fez apresentações em todo país. Com a chegada da pandemia em 2020, ela imaginou que o seu destino seria ser roteirista para projetos de publicidade, e foi por isso que agarrou a oportunidade de Cangaço Novo com força. “Na época, estava com tanta fome de atuar que fui com tudo para os testes. Era como se um cavalo selado estivesse passando na minha frente correndo apenas aquela vez. Eu tinha que montar nele antes de desembestar”.

Aos 27 ANOS, quando a série Cangaço novo foi lançada

Abuso e a função da fúria

No estudo para vivenciar a personagem, a atriz teve que lidar com um trauma do passado. “Na sala de preparação de elenco, tive que buscar intersecções com a personagem e meu ponto de partida veio de um trauma. Eu também fui abusada na infância”, conta a atriz logo se desculpando pelo spoiler pra quem ainda não assistiu.

A atriz conta como foi repensar esse processo. “Foi foda, o que essa pessoa fez comigo, não tem perdão. Percebi que antes, eu tinha um desejo de superar o que aconteceu passando por cima do sentimento de revolta, sabe? Isso foi um equívoco e para a minha sorte apareceu essa personagem e a Fátima Toledo, preparadora de elenco, que me deu coragem de não achar feito colocar a fúria para fora”, conta. Alice prefere não detalhar o abuso que sofreu, mas conta que já era trabalhado em terapia e outros de seus trabalhos, mas sempre sem raiva. “Entender que isso era um pouco o patriarcado agindo dentro de mim foi importante”. 

Sobre o reconhecimento que veio com a série ela se diz surpresa: “Eu sabia do talento de todos que estavam ali comigo, mas tem sido surpreendente. Principalmente porque eu estava muito insegura com Dinorah, achando ela dilatada demais, exagerada demais. Então esse reconhecimento foi um presente pro meu coração.” 

Hoje, Alice está trabalhando sua nova personagem, Otília, para uma nova novela do Globoplay com estreia prevista para 2024. “Chama Guerreiros do Sol, é de época e faço uma sanfoneira que, de alguma forma, conhece o universo das sufragistas. Estou muito feliz com esse novo projeto.” 

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