Fafá de Belém fala sobre sexualidade, família e preconceito - Mina
 
Suas Emoções / Entrevista

Fafá de Belém: “Detesto dormir de conchinha, gosto mesmo de viver sozinha”

O legado que mais orgulha a cantora paraense é a liberdade. Aos 67 anos, ela vive sua sexualidade sem tabus após superar traumas de abuso, revela que já recusou “um dinheirão” para tingir os cabelos branco.

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Em março do ano passado, Fafá de Belém sofreu duas brutais crises de ansiedade no intervalo de uma semana. Era um burnout batendo na porta no pós-pandemia. E, pra ela, isso inclui um golpe que sofreu de seu administrador e lhe causou um rombo financeiro. “Isso me fez passar a tomar conta de coisas que nunca havia olhado na vida: banco, pagamentos, orçamentos”, revela. 

Como nunca gostou muito de remédio e sempre preferiu tratamentos alternativos, correu para Portugal pra se restabelecer. É lá que há 10 anos Fafá mora grande parte do ano e tem seu médico antroposófico de confiança. Foi lá também que em 2018 bateu de frente com o empresário, a filha e a cabeleireira para deixar os cabelos brancos. “Aqui na Europa vejo mulheres com mais de 70 tomando suas tacinhas de vinho com as amigas, de biquíni na praia, levando uma vida maravilhosa! No Brasil, ser velho é pecado, te transformam num depósito de netos.”

Avó de Laura, de 11, e Julia, de 7, Fafá é mãe da atriz Mariana Belém, fruto da união com o músico Raul Mascarenhas. A relação é a única de que se tem notícia da cantora, discretíssima quando o assunto são seus amores – ainda que falar sobre sexualidade não seja um tabu para ela. Inclusive, neste papo ela abre o jogo sobre o uso de vibradores – o primeiro que teve, ganhou da filha.

Hoje, Fafá prepara sua primeira turnê pós-pandemia. Quem lembra de sua live-show só com sucessos que foram temas de novela? Pois é com ela que Fafá vai voltar aos palcos. E o que não falta é opção: são 40 anos de carreira, 30 álbuns lançados e mais de 15 milhões de discos vendidos, num repertório romântico que mistura estilos que vão do sertanejo ao fado. 

Aqui, uma das principais intérpretes da MPB recorda episódios dolorosos de assédio, uma tentativa de estupro e fala sobre os prós e os contras de não pertencer a grupinhos musicais. 

A gargalhada alta e o sorriso constante são traços marcantes da sua personalidade. Como essa leveza te ajuda nos momentos difíceis?
Não consigo enxergar a vida sem luz. Sempre fui livre no pensamento e isso se deve ao fato de eu ter crescido em um mundo masculino, ao lado dos meus três irmãos mais velhos. No geral, os homens são criados com liberdade, enquanto as mulheres estão sempre com os dedos apontados pra elas. Tive um pai amoroso, uma pessoa fabulosa e à frente do seu tempo, que me incentivou a ser livre no pensar, no comportamento. Ele era advogado, falastrão como eu e não tinha vergonha de expressar suas emoções, chorava até em cena de filme. Já minha mãe era uma observadora fina de tudo, discreta, mas muito engraçada. Nunca senti diferença no tratamento dado a mim e aos meus irmãos, fui criada para ser livre e isso foi definitivo na minha formação. Mas desde criança sou muito ansiosa. Se algo está ruim, tomo a frente, arregaço as mangas e resolvo. Isso foi criando em mim um estado de alerta constante. Na pandemia, por exemplo, essa característica não foi nada boa. 

“Tem muito homem por aí que não sabe dar prazer. Tem que dar uma mãozinha para eles”

O que aconteceu?
Tive duas crises de ansiedade em março do ano passado. A primeira foi três dias depois que testei positivo para Covid e, a outra, uma semana depois. Estava em minha casa em São Paulo, sozinha, vendo televisão. Foi do nada: virei para o lado para pegar uma água e quando voltei à mesma posição, não conseguia respirar, sentia o coração palpitando, um enjoo… Tentava puxar o ar e não vinha, uma sensação de que algo muito grave estava para acontecer, pensamentos ruins vinham à tona, uma fragilidade absoluta… Fui me apoiando nas paredes para chegar à varanda e fiquei encharcada de suor. Comecei a rezar o “Credo”, porque nove orações dessa afastam até vodu! É uma oração de exorcismo. Quando senti o ar da varanda no rosto foi como se tivesse entrado em um chuveiro gelado e só aí estabilizei. Pensei em ligar para alguém, mas como fui melhorando, desisti. A segunda crise foi mais violenta. Já tinha negativado a Covid e estava em Belém. Aquelas sensações de dias antes voltaram com tudo e dessa vez a voz não saía, fiquei paralisada. Minha funcionária tinha acabado de sair de casa e eu só consegui digitar “volta” no celular. Ela ficou apavorada quando me encontrou pálida, sem falar… Ligou para minha filha, que imediatamente mandou um médico amigo nosso lá em casa. Ele me deu um remédio e falou: “você está com um início de burnout, na entrada de uma síndrome do pânico”.

Avó de Laura, de 11, e Julia, de 7, Fafá é mãe da atriz Mariana Belém | Arquivo Pessoal

Como você se cuidou depois disso?
Primeiro fui para Portugal, porque ali me reestabeleço. Há 25 anos, tenho meu médico lá, que trata da minha saúde com medicina antroposófica. Sempre me cuidei de um jeito não tradicional: não costumo tomar remédios, sou mais das ervas, dos chás e dos óleos da Amazônia. Até aspirina para mim é difícil de descer. Faço meditação, ioga de vez em quando, recebo reiki. Sei que peguei Covid bem depois do momento mais grave, já com a vacina e tudo, mas acho que acabou sendo um gatilho para essas crises, sabe? Eu tinha acumulado muita coisa ao longo do isolamento. Aquele tempo todo em casa, esperando uma solução… Eu, que dificilmente fico doente, de repente me vi ali, com mais de 60 anos, pertencendo ao grupo de risco. Tenho uma equipe que está comigo há mais de 40 anos e sou muito preocupada com todos que estão debaixo da minha asa. Como essa turma iria sobreviver sem os shows? Isso me consumiu. Para piorar, no final de 2019, fui gravemente roubada por um administrador. Isso me fez passar a tomar conta de coisas que nunca havia olhado na vida: banco, pagamentos, orçamentos…

Sem os shows e com esse rombo financeiro, como você conseguiu manter seu staff?
Tínhamos feito um Carnaval muito bom em Recife, o contratante havia nos pagado com antecedência e esse dinheiro deu para segurar um tempo. Sem os shows, passamos a focar nas lives, onde eu entrevistava amigos, cantava… Ganhei uma visibilidade grande e, com isso, começaram a surgir convites para fazer publicidade, coisa que até então era raro na minha carreira. Esse dinheiro foi uma sobrevida. Por exemplo, essa coisa do meu sorriso que você mencionou, me trouxe uma campanha de tratamento dentário. Fui chamada também para fazer campanha de lingerie, por causa dos meus decotões, que são uma marca registrada. Também recebi uma proposta boa de uma marca de tintura para pintar meu cabelo branco, mas não aceitei. Minha filha falou: “Mãe, mas é um dinheirão!”. Não fiz por princípio.

Cabelo branco é uma forma de resistência?
Meu cabelo é um cabelo ideológico! Comecei a deixar os fios brancos dois anos antes da pandemia. Observava as mulheres na Europa, com seus cabelos grisalhos e achava lindo. Porque lá existe um respeito maior com as mulheres maduras do que entre os brasileiros e os americanos. Vejo mulheres com mais de 70 tomando suas tacinhas de vinho com as amigas, de biquíni na praia ao lado dos maridos, dos namorados, ou sozinhas mesmo. Levando uma vida maravilhosa! No Brasil, ser velho é pecado, te transformam num depósito de netos. Veja bem, tenho duas netas que eu amo, mas sou mais que isso. Quando comecei a deixar o grisalho, todo mundo foi contra: meu empresário, minha cabeleireira, até minha filha. Falei: “gente, eu decido, tenho 60 anos e pintar o cabelo toda semana é um tormento”.

Você já havia vivido algo assim antes? De alguém “ser contra” algo na sua aparência?
No início da minha carreira, na primeira reunião com uma gravadora, saí de lá chorando porque o Guto Graça Mello, que era o diretor artístico da Som Livre, falou que eu precisava emagrecer 10 quilos. Não chorei porque fiquei triste, chorei de ódio. Na hora respondi: “Não sou uma vedete, sou uma cantora”, e saí batendo pé. Desde os meus 12 anos me entendi como uma criança gordinha, que nunca seria magra.

“Sofri uma tentativa de estupro coletivo, eu tinha 16 anos”

Como foi lidar com esse entendimento de ser uma mulher fora dos padrões em um momento tão delicado como o início da adolescência?
Sempre fui gordinha de seios grandes, ombros largos e quadril mais estreito. Tinha 10 anos e o meu sutiã já era o 44, parecia um coador gigante. Tudo mudou quando vi a Sophia Loren e a Ava Gardner, muito voluptuosas no cinema, usando aqueles espartilhos com o decotão à mostra. Aquilo me fez pensar: “Yes, I can!”. Minha mãe então passou a costurar minhas roupas muito espartilhadas, mas com um saião comprido que me dava liberdade para correr. Eu via as fotos dos modelos nas revistas e levava para ela costurar para mim. Foi assim que encontrei a minha sensualidade.

Durante essa descoberta da sua sensualidade, você viveu situações de assédio?
Não só nessa fase, mas foi nela que vivi a pior de todas. Sofri uma tentative de estupro coletivo, eu tinha 16 anos e os três eram meus amigos. Não sei até hoje como me desvencilhei, coisa de Deus… Estava voltando do cinema, quando encontrei esses rapazes, que, veja bem, frequentavam minha casa. Eles estavam em um quiosque, estava rolando uma música e aí me chamaram para ir ao apartamento de um deles. Começamos a beber um pouquinho e rapidamente comecei a ver tudo distorcido, o sofá virou um sorvete… Certamente colocaram algo na minha bebida. Eles foram se aproximando, um por atrás, os outros pelos lados… Foi num lampejo que percebi o que estava acontecendo e comecei a chutar, sempre fui muito brigona. Saí correndo pelas escadas do prédio, chorando. Cheguei em casa e, no banho, me esfreguei com tanta força… Sentia que era culpada por ter atraído aquela sujeira. Na época dividi só com uma amiga, não contei para mais ninguém.

Arquivo Pessoal

E quando você ficou famosa, voltou a passar por abusos?
Sim e algumas situações só entendi muito recentemente como assédio, porque na época era tudo tão normalizado… Certa vez, depois de um show meu no Canecão, um empresário poderoso do entretenimento, que já morreu, me ofereceu uma carona, porque morava perto da minha casa. Quando estávamos no carro, ele começou a desviar do caminho, sugeriu que déssemos “uma voltinha” e começou a passar a mão na minha coxa. Tirei meu sapato e ameacei: “dê meia volta ou vou enfiar meu salto na sua testa”. Ele ficou sem graça e disse que era “brincadeira”… Teve outra situação também, depois de um prêmio da Rádio Globo. Um iluminador da emissora, bem mais velho e por quem eu tinha carinho de avô, me assediou. Foi a mesma história: ofereceu carona e, no carro, começou a passar a mão. Mandei que ele parasse e desci no meio do caminho, na estrada. Eu devia ter no máximo uns 20 anos. Foi nojento, fiquei muito mal.

“Eu gosto mesmo de viver sozinha, detesto dormir de conchinha”

Teve medo de denunciar?
O que eu ouviria com certeza seria: “mas também, com esses decotes que ela usa…”.  Entendeu?  Eu era uma cantora jovem, recém-chegada do Pará… Era outro tempo.

Você é uma artista fora do eixo, que não faz parte das tribos mais poderosas da MPB, que são do Rio, de São Paulo, da Bahia. Já se sentiu excluída ou sofreu preconceito por isso?
Nunca pertenci ao grupo de fulano ou de ciclano, seja na música ou na política. Sempre me posicionei de maneira independente e acho que por isso nunca sou convidada para as coisas. Por exemplo, quantas campanhas existem pela Amazônia e pelos povos indígenas que são encampadas por escritórios de artistas? Nasci na Amazônia, pertenço à floresta e mesmo assim nunca me convidaram, sempre fui carta fora do baralho. Acho que é porque não vou com o bando. Uma vez fiquei sabendo que houve uma reunião na casa do Roberto Carlos para falar de algum movimento e ele, que é um querido amigo, sugeriu: “Mas por que não chamamos a Fafá?” e três artistas, desses medalhões, ficaram resistentes. Depois me contaram que um deles falou que “a Fafá é chapa branca”. Fiquei tão decepcionada. Chapa branca por quê? Nunca fiz parte de governo, nunca fiquei milionária. Nunca pedi licença para gravar isso aqui ou aquele outro: o que eu gosto, eu gravo e tenho uma popularidade imensa até quando estou fora da mídia. Quando era mais nova, ficava triste com esse bullying por ser do Norte, por ser uma mulher gordinha, que não é da turma. Entendi que na cabeça dessas pessoas, o Brasil acaba na Bahia, no máximo em Pernambuco. São pessoas que se dizem a favor da liberdade, mas querem controlar como você deve ser e se posicionar.

Você é muito discreta em relação à sua vida amorosa, mas sempre afirmou que nunca quis se casar. Mesmo com esses novos arranjos, como a não-monogamia, o casamento não parece algo palatável? Não. Eu gosto mesmo de viver sozinha, detesto dormir de conchinha. Adoro sair para almoçar sozinha, viajar sozinha. Quem sabe um dia eu arranje um parceiro maravilhoso, que não encha o meu saco e que eu possa estar com os meus amigos e ele não precise estar junto o tempo todo… Já namorei pessoas de outro estado, de outro país, o que, em tese, me daria essa liberdade de não ficar junto o tempo todo. Mas a relação sempre começava a ficar complicada quando vinha desconfiança, insinuações de traição. Porque eu trato todo mundo com carinho, tenho essa gargalhada… Mas não sou capaz de trair, não consigo estar com duas pessoas ao mesmo tempo. Nunca teria um relacionamento assim, de relação aberta, não consigo. 

Por quê?
Sou muito careta nesse sentido, sabe? O corpo é nosso templo, é a nossa casa. Cada um faz o que quiser da vida. Bateu o tesão? Vai pra cama! Mas nunca fui de dar mole, entendeu? Tesão é uma coisa para ser desfrutada, sem pressa, com intimidade. Mesmo que seja só um tesão.

E como é o tesão aos 67 anos?
É uma loucura como as pessoas são moralistas para tratar desse assunto, bicho… Teve aquela vez em que a Angélica sugeriu dar um vibrador de presente de Dia das Mães [em maio deste ano a apresentadora fez uma campanha com o Bliss Bullet] e eu comentei no post do Instagram que aquele era um presentaço. As pessoas ficaram escandalizadas, uma mulher escreveu que eu era uma vovózinha. Sim, sou uma vovózinha que é puro prazer e alegria! 

Conta como foi a aquisição do seu primeiro vibrador?
Foi minha filha me deu de Natal e eu adorei. Uma amiga tinha me contado que comprou um numa sex shop e eu fiquei curiosa. Mas tive medo de ir até lá e sair no jornal. Hoje não tem mais isso, a gente compra pela internet, recebe em casa, uma maravilha. Mas esse primeiro foi a Mariana que me deu de presente. Nós sempre fomos muito parceiras, sempre falamos de todos os assuntos. Então acho que é isso: na minha idade as mulheres têm que manter a sexualidade ativa. Por que envelheceu então não pode mais se apaixonar? Não pode mais transar? E tem muito homem por aí que não sabe dar prazer, né? Tem que dar uma mãozinha para eles, dizer: “vem cá, meu bem, deixa eu te explicar umas coisas…”. 

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