Você já se sentiu frustrada, insegura e exausta diante do contraste entre a própria realidade e o que preconizavam os manuais da boa parentalidade? Você não está sozinha. “O acesso excessivo aos conteúdos sobre ‘boas práticas’ na criação de filhos matou minha saúde mental. Tentava praticar o que via e sofria muito quando não conseguia, me sentia um monstro, uma carrasca”, confidencia Julia Almada, designer e mãe da Olivia, de cinco anos, e Rafael, de três. “A gente se compara: por que tenho que passar por isso? Por que meu bebê é assim? As redes sociais influenciam muito nisso, achamos que maternar bem se resume àquilo que é publicado”, desabafa a médica Fernanda Bittar, mãe do Antonio, de seis meses.
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Criar filhos sempre foi um desafio, seja no campo social, familiar, profissional ou conjugal. Não é raro que a exaustão física seja relatada por mães e pais em qualquer época. Mas ao longo dos anos, as adversidades da parentalidade foram se moldando aos novos contextos e dinâmicas culturais. Hoje, além do tradicional peso da criação, existe uma outra sobrecarga, a de informação. Que, sozinha, já é capaz de gerar insegurança e esgotamento. A busca pela criação ideal vira um peso extra na parentalidade. Até porque, a definição de “ideal” não é nada objetiva e o conflito nas orientações são um estresse a mais.
Basta uma pesquisa rápida nas principais livrarias para encontrar algumas dezenas de títulos que se apresentam como guias para uma parentalidade “saudável” ou “positiva”. Ou mesmo uma busca superficial nas redes sociais para receber uma enxurrada de instruções, regras e exemplos de como deve ser a amamentação, a alimentação, a resolução de conflitos, o manejo das telas e os estímulos oferecidos às crianças.
É preciso construir o próprio ideal de boa parentalidade
O desejo por uma criação perfeita, à base de manuais e influenciadores, quando desafiado pelas particularidades de cada criança e família, pode se transformar em uma verdadeira cultura do esgotamento e da culpa. Afinal, se não estamos fazendo o que recomendam as boas práticas, sobram os impactos da comparação, da culpa e do sentimento de infelicidade. Além é claro da dificuldade em construir o próprio ideal de boa parentalidade. Sim, porque ele pode variar de uma família para outra.
Impactos que podem ser sentidos na saúde mental, física e na qualidade de vida, tanto dos pais, como dos filhos. “Busca-se ter as habilidades e condições de um maternar mais saudável, por exemplo, mas se não há recursos para essa habilidade, se a mãe está esgotada demais para fazer ‘o que deveria’, isso vira culpa”, observa André Moreno, psicólogo e pesquisador em Psicologia Cognitiva e Neuropsicologia.
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“O esgotamento e a ansiedade vêm, também, da ideia de que preciso sempre estar vigilante para avaliar se estou fazendo ‘certo’ e tentar encontrar um consenso entre os 40 influenciadores que sigo e decidir como quero fazer”, completa o especialista, que usa o termo “burnout parental” para caracterizar esse cenário de sobrecarga e esgotamento prolongado.
Se não tratado, esse esgotamento pode se tornar crônico, de acordo com a enfermeira Mariana Torreglosa Ruiz, pesquisadora da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e que assina com André e outros especialistas uma revisão de escopo sobre o tema. “Tende a repercutir em distanciamento emocional dos filhos, distúrbios do sono, conflitos entre parceiros, abandono do trabalho e até ideação suicida”, alerta.
“Ser mulher é um fator de risco”
Para muitas mulheres, a insegurança e a exaustão emocional no exercício da maternidade são individuais, algo íntimo e particular, e não necessariamente influenciadas pela cultura onde estamos inseridas. É sabido que as maiores responsabilidades da criação dos filhos recaem sobre as mães, que também são mais vigiadas e cobradas pelo que os filhos se tornam.
Para se munir e se preparar para a missão maternidade, então, é comum que elas sejam as principais consumidoras do mar de conteúdo sobre o assunto. Ainda que não haja acúmulo de dados específicos sobre gênero e esgotamento materno na literatura científica, o que se sabe até agora é que “ser mulher é um fator de risco”, aponta Ana Letícia Senobio, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Aprender com a trajetória e contextos próprios é fundamental para uma parentalidade possível
“Mulheres costumam ser mais afetadas pela exaustão parental pois ao longo da organização da sociedade, elas sempre foram as principais responsáveis pelas crianças, e agora aliam a maternidade ao trabalho remunerado e outras atividades. A sobrecarga é maior, como se fossem jornadas triplas mesmo”, considera Senobio.
Por mais que os pais ainda possam sentir impactos da culpa, por exemplo, a designer Julia Almada conta que o marido é muito mais autoconfiante no exercício da paternidade. “Ele é mais seguro do pai que é, faz as coisas como ele sente ser o ideal e não para seguir o que dizem os manuais”.
A solução que encontrou, ela conta, foi parar de se comparar às mães influenciadoras e acolher a imperfeição. “É um processo contínuo de policiar a comparação e colocar na frente nossa humanidade. Não dá para aplicar todas as regras com a perfeição de uma máquina”.
Aprender com a trajetória, desafios e contextos próprios é fundamental para uma parentalidade possível. É aí que se encontra o bem-estar das mães, pais e, consequentemente, dos filhos.