"Espiritualidade deveria ser espaço de acolhimento das vulnerabilidades sociais" - Mina
 
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“Espiritualidade deveria ser espaço de acolhimento das vulnerabilidades sociais”

Já se pegou fiscalizando a prece alheia? A jornalista e daimista Carolina Apple compartilha como tem sido seu processo para reconhecer seus privilégios e ter mais empatia com o outro na prática religiosa.

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Já julguei a caminhada de muitas pessoas na espiritualidade. Não entendia porque a pessoa fazia certas escolhas que, do alto da minha arrogância, considerava erradas. E não bastava ela dizer que estava se desenvolvendo, que as coisas estavam melhorando, eu não acreditava. 

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E foi dentro da irmandade do Santo Daime, da qual faço parte, que tive a chance de reconhecer o meu erro. Está muito conectado com meu lugar de privilégio e oportunidades como uma mulher branca de classe média que nunca passou certos tipos de sufoco ou precisou ativar o modo sobrevivência.

Como todos os espaços espiritualistas, lá tenho a chance de conviver com pessoas de todos os tipos, diferente do dia a dia social em que faço escolhas e crio clãs com aqueles com quem mais me identifico. Costumava reparar na vida de algumas irmãs da casa e considerava que as coisas para elas não andavam. Julgava as escolhas delas que, na minha opinião, estavam ajudando a tornar as coisas ainda mais difíceis. Uma delas, em especial, foi a mais marcante para mim. 

A prática da espiritualidade não pode se tornar mais uma ferramenta opressora

Passei a ver os pedidos de ajuda materiais e espirituais dessa irmã como algo óbvio diante das escolhas que ela fazia. Minha compaixão foi dando espaço a um ranço. Sentimento esse que eu legitimava por existir, mas sabia que não era nada nobre diante de uma pessoa que precisava de auxílio e muito menos estava conectado com os ensinamentos contidos naquela religião e espiritualidade que escolhi seguir.

A questão é que estava sendo perversa ao não considerar o ponto de partida social e a história daquelas pessoas antes de emitir uma opinião [que ninguém pediu]. Usei minha jornada como régua para medir a jornada da outra pessoa. Com o tempo, me abri para o tamanho da minha incoerência ao falar de amor e não o praticar através de um olhar sensível e generoso com a história do outro. 

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E não tem erro. Não precisa entrar num campo muito subjetivo. Basta olhar para a materialidade das coisas presentes na sociedade. Cor, classe social, estrutura familiar, orientação sexual e tantas outras frentes não abrem margem para dúvidas sobre os pontos de partida de cada um de nós. Mas, caso as incertezas ainda falem mais alto, basta observar, escutar e respeitar. 

A prática da espiritualidade não pode se tornar mais uma ferramenta opressora. Mas é como ela tem funcionado em muitos ambientes, que, a cada dia, estão mais embranquecidos, estimulando a criação de guetos espiritualistas, jogando no lixo o importante processo de inclusão e de exercício da convivência e da cidadania, com o agravante das apropriações e apagamentos. Ambientes espiritualistas também são ambientes sociais.

Quando falo de guetos espirituais, me refiro a grupos que tive a chance de participar e era nítida a diferença estrutural. Peregrino bastante por aí e, como na maioria dos espaços, as pessoas brancas estão sempre em maior quantidade e, por consequência, os pactos da branquitude acabam prevalecendo na dinâmica dos grupos.

É urgente praticar o acolhimento por meio do reconhecimento do ponto de partida da outra pessoa

Notei essa diferença quando passei a frequentar rituais dirigidos por pessoas pretas ou grupos conectados com outras culturas e religiões afro-brasileiras / afro-pindorâmica, como a Umbanda, a Congada e o Coco. A proporção de pessoas pretas era maior ou igual a de pessoas brancas, e não só como participantes, mas como estruturantes do ritual. Assim percebi que existem guetos dentro da mesma egrégora espiritual na qual se formam grupos majoritariamente brancos. São locais onde outros corpos, vivências e culturas ganham validação e culto.

É muito autoconhecimento e autocuidado. É muito “eu, eu, eu” e pouco nós. E ser esse “eu” pode ser confortável para algumas pessoas, e extremamente injusto e inacessível para outras. Portanto, a experiência espiritual de determinados grupos pode ser mais desafiadora diante da estrutura social racista, colonialista, classista e xenófoba que vivemos. Se faz urgente praticar o amor e o acolhimento por meio do reconhecimento do ponto de partida da outra pessoa.

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