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Guru: modo de usar

Mesmo com inúmeros casos de abuso no meio espiritual e holístico, continuamos acreditando em pessoas que se apresentam como mestres, gurus e detentores do caminho certo. O que há por trás do poder de sedução desses falsos líderes? E como identificá-los?

Ilustração: Kelly Boeni
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10 minutos |

Zahira Mous sofreu abuso sexual de um dos líderes espirituais mais conhecidos no Brasil e fora dele: João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus. Sahaja Renata foi manipulada por dez anos por um mestre de yoga que, entre outras coisas, a coagiu a não amamentar o primeiro filho com a justificativa de que isso iria atrapalhar a prática. Paula Picarelli fez parte de uma seita comandada por duas mulheres que usavam o transe de ayahuasca para induzir o comportamento dos seguidores. Os traumas vividos por essas três mulheres e por tantas outras vítimas de líderes abusadores leva a questionar: por que, enquanto sociedade, gostamos tanto de gurus? Por que depositamos tanta confiança em figuras que dizem conhecer o caminho para a cura de todo sofrimento humano? Ao mesmo tempo, o que leva esses gurus a manipular, extorquir e humilhar seus seguidores?

Em primeiro lugar, não se trata de condenar as práticas religiosas ou holísticas como um todo, mas de debater sobre práticas sectárias que favorecem abusos. “O sectarismo traz essa ideia de fechamento para o mundo, de criação de uma espécie de universo paralelo, em que só aquela pessoa ou grupo possui acesso privilegiado à verdade”, pontua Christian Dunker, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). “A gente busca respostas simples para separar o que é certo do que é errado. A seita traz isso: quem tá dentro, tá certo, quem tá fora, tá errado”, exemplifica Paula Picarelli, atriz e autora do livro “Seita: O dia em que entrei para um culto religioso”, lançado em 2018. 

“Não é simples reconhecer que a gente está vivendo uma situação de abuso, é muito sutil”

O problema é que não é tão simples identificar grupos que se organizam como seitas por conta do tom pejorativo do termo e da influência do círculo social. “Ao longo de oito anos frequentei a seita ayahuasqueira que se apresentava como um grupo de estudos de expansão da consciência voltado para a criatividade, para artistas”, conta ela. “Na época, eu era muito insegura e, ao mesmo tempo, via pessoas que admirava dentro da seita. Pensava que estava no lugar certo, não recorria muito ao meu pensamento crítico”, relembra. A jornalista e terapeuta quântica Sahaja Renata também viveu uma experiência semelhante ao frequentar aulas de yoga de um mestre abusivo e hoje enxerga as nuances: “Não é simples reconhecer que a gente tá vivendo uma situação de abuso, é muito sutil, começa com a pressão psicológica, com o jogo de poder. Além disso, toda uma comunidade é construída, eu tinha vários amigos lá, frequentávamos eventos, retiros”, conta. 

Por que acreditamos em gurus? 

De acordo Pietro Benedito, doutor em sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) que realizou pesquisa sobre gênero e religião no Santo Daime, as concepções sobre sucesso e felicidade dentro da sociedade moderna geram um sentimento de exclusão, o que pode motivar a procura por um guru: “Existem algumas demandas sociais, como casar, ter emprego, família, maternidade, paternidade, que formam um conceito moderno de felicidade. É muito fácil que as pessoas se sintam mal por não terem famílias assim ou não construirem algo do tipo. Os grupos que se formam em torno de um guru oferecem respostas, e a pessoa pode pensar ‘finalmente encontrei um lugar em que posso ser eu, porque antes não cabia no mundo lá fora’”, explica.

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Os traumas vividos por mulheres e pessoas LGBT por conta do machismo, da misoginia e homofobia também aumentam a vulnerabilidade, segundo Pietro. “Trauma sexual e assédio são constantes na vida das mulheres e é comum que pessoas LGBT enfrentem a não aceitação e a violência. Estar num grupo comandado por um líder abusivo pode ser apenas uma experiência continuada de abuso”, diz ele. Em busca da cura para um trauma sexual, a dançarina holandesa Zahira Mous foi conhecer o famoso médium João de Deus, que realizava atendimentos espirituais em Goiás. “Era o último recurso que eu tinha e muita gente estava na mesma situação, em busca de cura, de lidar com traumas, doenças, lutos”, relembra ela, que foi a primeira pessoa a levar a denúncia de abuso sexual a público, em 2018. E, quando a pessoa que cruza a linha do bom senso e da ética é alguém considerado um mestre, fica muito mais difícil de perceber. “Na yoga, é comum pensar ‘se esse professor tão bondoso me tocou para ajustar minha postura, tenho que topar todos os ajustes dele, afinal, está me dando atenção’. O quanto a gente foi ensinada a agradar, até mesmo a fazer sexo sem querer?”, questiona Sahaja, que sofreu abusos psicológicos do homem que considerava seu mestre de yoga por dez anos.

As pessoas procuram gurus em busca de acolhimento e cura para angústias e traumas, mas líderes abusadores promovem justamente o contrário. Para Sahaja o mercado do autoconhecimento “é um terreno muito fértil para o desempoderamento do ser.” Alguns líderes podem “te desmotivar a ser quem você é”, diz ela. “O mestre era alguém que sabia muito mais de mim, do meu corpo, do que eu mesma. Eu excedia todos os meus limites, minhas vontades, me machuquei muito”, conta.

Por que gurus abusam do poder?

Do ponto de vista psicanalítico, Christian pontua que existem dois perfis predominantes de gurus que se aproveitam da posição de poder para controlar e humilhar seguidores. “Existem dois tipos de certeza: a primeira é a ‘delirante’, muito comum em experiências psicóticas, em que a pessoa se compreende como iluminada, alguém que recebeu uma mensagem divina, tem contato com outra dimensão. A segunda certeza é a que encontramos no ‘perverso’, que sabe sobre o seu gozo, sobre o que você quer e precisa. Em alguns casos, isso se conecta com a fantasia de quem vai ser seduzido por ele, como numa relação sadomasoquista”, explica o psicanalista. Embora não se trate de culpar as vítimas pelos abusos, Sahaja reconhece que o jogo de poder é sedutor: “Eu tento não me vitimizar, sei que em algum lugar eu gostava daquilo, de falar que tinha um mestre, um guru que me aconselhava pra tudo na minha vida. Mas nada se compara ao alívio de sair do grupo e não ter que dar satisfação sobre tudo que fazia para ele”, conta ela. 

“Acredito que elas eram pessoas narcisistas com algum traço de psicopatia e muito ligadas ao dinheiro e ao poder. Como a seita era apresentada como um grupo de estudo, não assumiam nenhuma responsabilidade quando alguém ficava mal ou tinha um surto psicótico, por exemplo”, conta Paula, sobre a experiência com as duas gurus da seita. “Sofri terror psicológico e era manipulada, inclusive, durante o ritual de ayahuasca. Conduziam o transe coletivo através das letras das músicas, davam ordens e a gente aprendia a obedecer, a não questionar. Isso vai condicionando o comportamento. A forma como me alimentava, os trabalhos como atriz, a relação com minha família. Tudo girava em torno do que elas falavam”, relembra. “A ayahuasca, em si, não facilita o abuso. É uma planta, uma medicina usada por diferentes povos. As pessoas e grupos que utilizam a bebida é que podem ser abusivos”, pontua Pietro.

Ouvir a intuição e manter o senso crítico são indispensáveis em qualquer relação terapêutica

Zahira conta que, ainda que João Teixeira de Faria tenha sido condenado a mais de 109 anos de prisão (o que vem cumprindo de forma domiciliar), sente medo de sofrer alguma represália, já que o médium não agia sozinho e que o fanatismo ligado a ele se mantém: “Algumas pessoas que trabalhavam na Casa Dom Inácio de Loyola [local onde eram realizados os atendimentos espirituais] diziam que ele precisava alimentar sua energia vital, o que era feito através do estupro. Eu confiei nas pessoas que estavam lá, isso dói”, relembra. “Para mim, justiça vai além da prisão. Quero que possamos viver livremente, sem medo de andar pela rua, porque quem denuncia não tem uma rede de proteção nem do governo e nem da sociedade. Estamos criando a própria rede de apoio, entre mulheres.”

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Diante de tantos casos de abuso que vieram à tona nos últimos anos, será que dá pra confiar em gurus, separar o joio do trigo? Para Sahaja, ouvir a intuição e manter o senso crítico são indispensáveis em qualquer relação terapêutica: “A gente sempre tem que se fazer perguntas: isso tá me deixando verdadeiramente feliz? O guru tá me dizendo o que eu devo ou não fazer ou tá me levando para um lugar em que possa estar segura sobre as minhas próprias escolhas? Eu me diminuo para falar com essa pessoa? Essa prática tá saudável pra mim?”, exemplifica. Além disso, grupos como o MovAya (Movimento Nacional de Combate ao Abuso no Meio Ayahuasqueiro) e Coame (Combate ao Abuso no Meio Espiritual) disponibilizam conteúdos informativos sobre como se prevenir e identificar abusos em grupos liderados por gurus. Se informar antes de mergulhar em qualquer prática ainda é sempre o melhor caminho. 

A seguir, uma lista de séries e documentários que aprofundam a discussão sobre a dinâmica dos gurus:

“Em nome de Deus

O documentário disponível no Globoplay traz uma investigação sobre mulheres que foram buscar tratamento espiritual e foram abusadas sexualmente por João Teixeira de Faria, médium conhecido como João de Deus.

Nosso pai”

Série documental do Uol Play denuncia assédio sexual em mosteiro liderado pelo ex-padre e psicanalista Ernani Maia dos Reis.

“Bikram: yogi, guru, predador”

Documentário disponível na Netflix conta a história de Bikram Choudhury, milionário inventor da hot yoga, que abusava de suas alunas.

“The vow”

Série documental lançada pela HBO revela as práticas da seita Nxivm, que atraía principalmente artistas em busca de destaque em Hollywood.

“Nove desconhecidos

Na série de ficção, nove pessoas com perfis bem diferentes se encontram em um retiro de bem-estar liderado por Masha (Nicole Kidman), uma figura misteriosa que promete a cura e utiliza métodos obscuros. Disponível no Amazon Prime Video.

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