A solidão das mulheres trans - Mina
 
Seus Relacionamentos / Reportagem

Como encontrar amor quando o corpo é privado de afeto?

Quase sempre preteridas e dificilmente preferidas, mulheres trans e travestis carregam um marcador social que é praticamente um atestado de solidão. A seguir, duas delas contam as suas histórias e mostram como tentam driblar isso.

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Ausência de companhia, rejeição nas relações afetivas, oportunidades negadas e dificuldades de ascensão social, infelizmente, fazem parte da solitária realidade de muitas mulheres trans e travestis. A sua volta, por exemplo, quantas pessoas trans fazem parte da sua rotina? 

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Apesar da falta de dados oficiais sobre essa população, um estudo da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp), aponta que 1,9% da população brasileira é composta por pessoas trans. Isso equivale a 3 milhões de indivíduos, quase a população inteira do nosso vizinho Uruguai. Um grupo grande, mas que sofre com a invisibilidade e a solidão.

Esse sentimento, aliás, não se manifesta apenas após a transição. Ele começa ainda infância ou adolescência. “As mulheres trans percebem ainda pequenas algo diferente nelas e tentam esconder da família. Então a primeira solidão é essa de não ter com quem partilhar a sensação de inadequação”, diz a psicóloga Shenia Karlsson, especialista em diversidade.

“Só lembram de me convidar quando é aniversário de um amigo gay”

Depois, se estende para a vida adulta. “É uma solidão em relação à família que não te aceita e você acaba ficando fora dos aniversários e do Natal. No âmbito profissional, porque não é todo mundo que vai te chamar para um happy hour e sempre vai te olhar torto”, compartilha Renata Ribeiro, uma mulher trans e negra de 36 anos. “Na maioria das vezes, sou esquecida. Só lembram quando é conveniente, tipo no aniversário de um amigo gay”.

A transfobia sofrida dentro da própria família deixa marcas profundas que afetam diretamente na autoestima desse grupo e acaba permeando as outras relações. A psicóloga diz que fica sempre o pensamento: “se fui rejeitada aqui, quem vai me amar?”. “A solidão se torna uma norma e as pessoas trans pensam que esse é seu destino”, comenta.

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Afeto para que corpos?

“Vamos, mas ninguém pode saber”, “Tem que ser no sigilo” e “Mas eu gosto de mulher de verdade” são apenas algumas das frases que mulheres trans e travestis costumam ouvir quando arriscam uma relação afetiva. Para Bárbara Aires, uma travesti com mais de 35 anos que não fala com o pai desde a transição, isso é reflexo de uma sociedade machista e genitalista que não reconhece os corpos de mulheres trans e travestis como corpos de mulheres. 

“Somos vistas socialmente como homens que pensam que são mulheres, ‘corpos viados’. Os homens que se relacionam com a gente, por exemplo, têm a sexualidade questionada e não são vistos como homens héteros pela família e pelos colegas de trabalho”, diz. Com isso, vem uma alta valorização da passabilidade, que é quando uma pessoa trans consegue “se passar por uma pessoa cisgênera”, resultando em uma grande pressão estética para tentar caber nesse lugar – e, quem sabe assim, ser amada.

“Tento buscar o amor em outros campos também, como nos estudos”

“Sou negra e trans, então sou um corpo legal para pegar na noite, mas não para assumir para a família”, desabafa Renata. “Meu ex se envolvia comigo, saia, carregava minha bolsa e comemorava o aniversário, mas só assumiu para a família uma travesti branca. A preta e gorda é legal e bacana, mas para a sociedade eles escolhem uma mais passável e que tenha mais traços femininos”.

Romântica, para evitar esse tipo de situação na sua busca por amor, Bárbara decidiu focar em relacionamentos transcentrados – e desde 2015 se relaciona quase que exclusivamente com outras pessoas trans. Pela identificação com as dificuldades enfrentadas, o sentimento de acolhimento faz com que esses relacionamentos tenham uma durabilidade maior.

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Ela conta que as próprias conversas e toda a dinâmica da “paquera” são diferentes. “Os homens trans iniciam o papo elogiando, falando da inteligência, dos olhos, cabelos e coisas assim, enquanto o homem cis já começa a conversa com um teor sexual, pedindo nudes e achando que um órgão sexual vai nos ganhar”, diz. 

Cultivar o amor-próprio é outro caminho importante na busca das mulheres trans e travestis por afeto, como conta Renata: “Tento ocupar a mente porque com ela vazia vou cair no buraco de que ninguém me ama, ninguém me aceita e estou sozinha. Me volto para o campo da educação e o contexto profissional para sair dessa margem. Eu sou foda, tenho um mestrado na USP e sou professora. Tento buscar o amor em outros campos também”, diz.

Impactos na saúde mental e bem-estar

A psicóloga Shenia destaca que pessoas trans que são aceitas pela família acabam sendo muito mais fortalecidas e seguras internamente, uma vez que esse é um importante lugar de nutrição de afeto. As que são rejeitadas, por sua vez, têm uma tendência maior a questões severas de saúde mental. 

Um dos caminhos para se sentirem acolhidas é encontrar semelhantes e outras pessoas de confiança que ajudem no processo de identificação e ofereçam uma rede de apoio segura. O outro, essencial para qualquer mulher trans, é a psicoterapia. “O processo de transição é extremamente difícil e complexo. Além das questões fisiológicas, envolve muitas questões emocionais. Um acompanhamento psicológico faz toda a diferença”, salienta Shenia.

Sem condições de buscar atendimento psicológico por questões financeiras? O Mapa do Acolhimento é uma das iniciativas que oferece atendimento psicológico e jurídico para mulheres trans vítimas de violência de gênero e em vulnerabilidade econômica. Também existem centros de acolhimento espalhados pelo Brasil que atuam em diversas áreas para promover a autoestima e a inserção da população LGBTQIA+. Aqui alguns: 

SÃO PAULO

Casa Florescer
Endereço: Rua Prates, 1101 – Bom Retiro
Centro de acolhida pioneiro no Brasil para mulheres transexuais e travestis em situação de vulnerabilidade.

Casa 1
Endereço: R. Adoniran Barbosa, 151 – Bela Vista
Centro de de cultura e acolhimento para a comunidade LGBTQIAPN+. 

Casa Chama
Endereço: Rua do Carmo, 54, Sala 303 – Sé
Ambiente de articulação com eventos culturais, de estudo e apoio jurídico. 

RIO DE JANEIRO

Casa Nem
Endereço: R. Dois de Dezembro, 9 – Flamengo
Centro de acolhimento para pessoas transexuais e transgêneros.

BELO HORIZONTE

TransVest 
Endereço: Edifício Arcângelo Maletta – R. da Bahia, 1148 – Centro
Educação, arte e esporte com o objetivo empoderar e incluir a população trans na sociedade. O projeto oferece aulas preparatórias para o vestibular. 

RECIFE

Instituto Transviver
Endereço: R. dos Médicis, 86 – Boa Vista
Centro de acolhimento para pessoas LGBTQIA+, mas com um olhar especial para as pessoas trans e com o esporte como prioridade. 

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