Symmy Larrat: "A população trans ainda não vivencia o sentimento de bem-estar, mas estamos aqui para lutar" - Mina
 
Nosso Mundo / Reportagem

Symmy Larrat: “A população trans ainda não vivencia o sentimento de bem-estar, mas estamos aqui para lutar”

Em celebração ao Dia Nacional da Visibilidade Trans, conversamos com a nova secretária da Promoção e Defesa das Pessoas LGBTQIA+ para entender os caminhos a serem trilhados para que a população transexual viva com mais qualidade e dignidade

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Nascida em Cametá, no Pará, Symmy Larrat é a primeira travesti a ocupar um cargo no segundo escalão de ministérios do Governo Federal. Prestes a completar 45 anos no mês de fevereiro, ela foi nomeada por Silvio Almeida para a inédita Secretaria da Promoção e Defesa das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos.

Predicados para ocupar o cargo não faltam. Symmy é cria dos movimentos sociais e tornou-se a primeira travesti a presidir a maior organização pelos direitos LBGTIs da América Latina, a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos). Além disso, foi coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República no governo de Dilma Rousseff e coordenou o programa “Transcidadania” na gestão Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo.

“É tão gigantesca a liberdade de ser quem se é que te dá forças para atravessar o processo de transição”

No novo cargo, ela quer ajudar a população trans a conquistar o bem-estar que sempre lhe foi negado, mas ressalta que é necessário ter cautela, pois o cenário não irá mudar do dia para a noite. “Não vamos resolver tudo em 4 anos, temos que saber o que a gente consegue construir em cada momento. As pessoas têm a ansiedade de achar que tem a secretaria hoje e amanhã a gente tem que existir em todos os lugares”, pondera.

Symmy também carrega na pele e na memória todas as dores de ser uma travesti no Brasil. Neste papo com a Mina, relata que vivenciou o afastamento da família enquanto escondia sua transgeneridade e que precisou encarar a prostituição para sobreviver. Hoje, entretanto, poder viver a liberdade de ser quem sempre foi e sua luta é justamente para que outras pessoas trans tenham a mesma oportunidade sem precisar passar pelas mesmas dificuldades que ela. 

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Como foi o processo de você se reconhecer como uma travesti?
Esse processo acontece diferente nas fases da vida da gente. Por exemplo, eu não tinha uma percepção sobre os papéis de gênero na minha infância. Mas sentia que eu tinha alguma coisa diferenciada. Lembro de ainda muito criança escutar o LP do Balão Mágico e trancar as portas e as janelas porque ficava paquerando o Mike na capa. Ninguém estava na minha mente, mas achava que nenhuma pessoa poderia ver a maneira como eu escutava a música e as coisas que eu sonhava. Já sabia que olhavam para mim e julgavam que a minha performance era diferente do que elas queriam, e que isso era uma questão que dificultava minhas relações. 

Na adolescência, lembro que achei uma Playboy da Roberta Close e ela ainda não tinha feito a cirurgia. Ela toda travesti, bonita e escondendo as coisinhas posou na revista. Tinha uma matéria com uma foto dela criança e a pergunta “é menino ou menina?”, que ela costumava escutar na escola. Quando li aquilo, falei “sou eu”. Eu ouvia a mesma coisa na infância e não tinha uma resposta nítida. Foi naquele momento que defini “é isso, eu sou isso aqui”. Mas a referência que tinha era das travestis das esquinas fazendo prostituição. Já a Roberta Close era artista, e eu pensava que aquilo não era para mim. 

Achava que se engatasse nessa iria terminar na esquina, passar fome e não queria isso. Então optei por esconder a minha transgeneridade e, aos 16 anos, me assumi para a minha família como um menino gay. Só que dominar sentimentos e desejos é difícil e eles vão se externalizando sem que você tenha controle disso. Passei anos fazendo performances de transformismo, aí na maioridade, quando já tinha me formado e estava trabalhando, entendi que eu não conseguia mais viver daquela forma. Eu estava mentindo para mim e para as outras pessoas. Então, aos 30 anos, comecei a fazer minha transição. 

O que passar pelo processo de transição trouxe para a sua vida?
Trouxe muita liberdade. Eu já tinha uma maturidade para saber tudo o que eu ia passar, ainda que não soubesse a profundidade. Mas é tão gigantesca a liberdade de ser quem se é que  você encontra forças para atravessar as dificuldades do processo de transição. O mundo, os aromas e os sentimentos vão ganhando uma outra conotação na sua vida. Você rompe com o patriarcado e entra em um processo de autoconhecimento e de conhecer o próprio corpo, porque vai tomando hormônios e descobrindo o que dá certo e o que não dá. 

Obviamente, tiveram coisas que passei que são muito difíceis. Vem o preconceito, os olhares. É incrível como, no primeiro dia que eu saí na rua depois que disse que era travesti e que o mundo tinha que saber disso, os olhares mudaram completamente, ficaram muito mais agressivos – e os tratamentos também. Senti com profundidade o preconceito em todos os aspectos da vida, uma crueldade que não conhecia antes. Só na família não foi assim. A transgeneridade me devolveu a família, porque me ajudou a me conectar com minha mãe e minha irmã. 

Nós, travestis, temos a capacidade de chegar e ocupar diversos espaços igual a qualquer outra pessoa

Quais situações você vivenciou nessa trajetória e gostaria de evitar que outras pessoas trans passem também?
Uma é a obrigação do afastamento da família. No meu caso, veio antes da transgeneridade porque escondi ela. Não quero que mais ninguém seja arrancado da sua família porque as pessoas não sabem lidar com a situação e acham que tem algo para ser curado. Outra coisa é a avaliação da capacidade. As pessoas nos julgam como incapazes e imorais. Fui parar em uma esquina para fazer prostituição porque todo o mundo me questionava só de olhar. Então não quero que ninguém mais seja obrigada a buscar caminhos como esse por falta de acesso a outros lugares. Nós, travestis, temos a capacidade de chegar e ocupar diversos espaços igual a qualquer outra pessoa, mas não conseguimos ser quem somos. Essas duas coisas são muito cruéis.

Você já traz uma longa experiência na luta por direitos nos movimentos sociais, e agora, como Secretária Nacional dos Direitos da População LGBTQIA+, terá ainda mais ferramentas para contribuir para a melhoria na qualidade de vida de outras pessoas trans. No momento, como enxerga a situação desse grupo no Brasil?
Neste momento de tanta polarização, as pessoas polarizam com as nossas vidas. Mesmo quem está no movimento progressista tem dificuldade de enxergar que é visibilizando e falando sobre nós que vamos acabar com o que a galera do ódio chama de ideologia de gênero. Quando a sociedade perceber que nós, travestis, não somos um bicho de sete cabeças, vamos esvaziar a arma que eles têm contra todos nós. Essa data do dia 29 de janeiro deveria ser de todo o campo da esquerda, dos progressistas e dos direitos humanos. Deveria ser a principal data de quem quer construir uma sociedade anti-patriarcal, anti-capitalista e anti-racista nesse país. 

Acho que a gente conseguiu, em um processo de auto-organização, construir avanços. Esse movimento de ódio é uma reação à nossa chegada nesse lugar, às nossas conquistas. Por exemplo, conto do meu passado de um lugar de muita solidão, porque eu olhava e não conseguia achar nenhuma referência naquele tempo. Olha hoje quantas referências nós temos, quantos lugares as pessoas trans conseguiram chegar. Temos o Processo Transexualizador no SUS [que garante atendimento integral de saúde a pessoas trans], a retificação de nome… Hoje, uma parte da galera mais nova não passa pelos problemas que vivi e consegue acessar diversos lugares como a educação. 

Não estou dizendo que vão nos receber em todos os lugares. Abrimos portas, mas não sentamos na mesa com todo mundo. Ainda estamos assistindo toda a cisgeneridade sentada lá, comendo do bem bom, e o que sobra fica para gente. Com certeza, ainda não estamos vivenciando esse sentimento de bem-estar que a gente almeja, mas já conseguiu mostrar que estamos aqui para lutar. Antes, as pessoas nos colocavam em um lugar e a gente ficava ali, escondida. Agora, já sabem que nós estamos disputando o lugar na mesa.

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Como a criação dessa secretaria que você acaba de assumir pode contribuir para essa mudança? Qual será o trabalho para ajudar nesses avanços? 
Primeiro de tudo: só faz sentido a gente ter uma secretaria nacional se tiver os mecanismos necessários para traduzir isso em políticas públicas. Nessa secretaria, chegamos ao segundo escalão em termos de estrutura governamental, estamos sentadas na mesa. Ainda somos uma no meio de milhares, mas sentamos aqui. Agora é preciso entender como faremos enquanto governo para que as pessoas trans conquistem espaços em outras áreas do governo federal e também como será nossa relação com estados e municípios. Não vamos resolver tudo em 4 anos, temos que saber o que a gente consegue construir em cada momento. As pessoas têm a ansiedade de achar que hoje temos a secretaria e amanhã iremos existir em todos os lugares. Não há a mesma maturidade que em outros movimentos sociais de saber qual o passo certo de cada vez. Mas eu, particularmente, acredito que, nesses primeiros 4 anos, precisamos construir os alicerces para levantar essa casa e criar mecanismos para que essas políticas necessárias existam. Primeiro, temos que retomar a participação social e isso já estamos fazendo. Depois, precisamos ter uma nova narrativa que oriente as políticas públicas para essa população.

Quais são as necessidades mais urgentes para a população trans hoje no Brasil e de que forma o Ministério dos Direitos Humanos pode atuar em conjunto com outros ministérios? Já há diálogo com outras pastas?
Quando a gente fala da população trans, estamos falando de tantas emergências que é muito difícil destacar apenas algumas. Mas uma é a questão da documentação. Acho que já avançamos muito na decisão do STF sobre retificação de nome e gênero, mas vimos o governo anterior retroceder no RG para nos prejudicar em algum aspecto, então precisamos sanar a questão da documentação e passar para a próxima etapa. Também é necessário ampliar o acesso ao cuidado especializado e atualizar o Processo Transexualizador, assim como criar as normativas para que a transfobia não continue impune. Precisamos das normativas para que isso aconteça e exista na prática. Acho que essas são as emergencialidades.  

Como a gente vai fazer isso? Dialogando com outros campos. Isso ainda não aconteceu porque está todo mundo chegando agora. Estamos vivendo uma ruptura muito grande de um governo para o outro que é até difícil explicar, mas o que posso garantir é que temos na estrutura da Esplanada uma facilidade para que esse diálogo aconteça. O que estamos fazendo no momento é traduzir nos caminhos da política pública o que precisamos de cada área, de forma esmiuçada. Estamos nos preparando para poder ter esse diálogo com qualidade em cada pasta. 

“Não quero olhar para as violências porque já sei que elas existem e não vão me ajudar neste momento”

Em 2019, o crime de transfobia foi enquadrado na tipificação da Lei do Racismo e no dia 11 de janeiro o presidente Lula sancionou a lei que equipara o crime de injúria racial ao crime de racismo. Qual é a importância disso? Acha que é o suficiente? 
Precisamos de uma lei específica! É muita solidariedade do movimento negro e da pauta racial nos abarcar, mas a gente precisa construir uma legislação especifica para nós, inclusive prevendo medidas protetivas como é na Lei Maria da Penha. O Legislativo está em uma disputa conservadora muito acirrada, então será que temos conjuntura para isso? Acredito que não. Então, a partir da decisão do STF, temos que construir no Executivo iniciativas que alicercem e preparem esse caminho. Construir esses caminhos na segurança pública e na justiça é muita coisa, e acho que temos condições de fazer.

No Legislativo, vamos ter pela primeira vez deputadas trans no Congresso, Érika Hilton e Duda Salabert. Qual a importância disso? 
Quando a gente era só uma bicha naquele Congresso, já causou em uma dimensão espetacular. Agora, chegando deputadas trans junto com mulheres lésbicas, que também é uma grande novidade, vai ser melhor. De todo modo, não vai ser fácil. Será necessário muita solidariedade e muita atenção nossa, mas tenho certeza que vamos chegar ainda mais potentes. Falando especificamente das duas companheiras, não são quaisquer companheiras. São duas pessoas que têm uma preparação e uma capacidade gigantesca de ocupar esse lugar. Está muito difícil e talvez esteja mais difícil do que antes, mas agora, pelo menos, não vamos caminhar tão solitariamente.

Secretária, para encerrar queria saber como lida com eventuais ataques transfóbicos que sofre e, diante deles, como faz para manter seu bem-estar físico e mental?
Confesso que fiquei dias sem olhar meu Instagram porque não queria vivenciar certas coisas. Tento me cercar de positividade e de como estou sendo recebida no ministério, de como a equipe está me acolhendo, de como nossa pauta está sendo tratada de uma maneira igual às outras e, inclusive, a solidariedade das outras pautas. Acho que tudo isso é mais do que já tivemos em nossas vidas e estou me alimentando das positividades. Tenho uma colega que me ajuda no Instagram e ela vai me dizendo o que está chegando, mas não quero olhar para as violências porque já sei que elas existem e não vão me ajudar neste momento.

Busco essa positividade nos movimentos sociais que são muito solidários comigo como a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), movimentos populares LGBTQIAP+, o MST, a CUT e outros movimentos de mulheres lésbicas. O Ministério dos Direitos Humanos é um ministério que tem no comando do Silvio Almeida sinalizando que quer construir esse lugar. Então, tenho me cercado dessas relações e, obviamente, da minha família que está me acompanhando bem de pertinho e torcendo muito. É muito gostoso você ver o orgulho de algumas pessoas que dizem que é “a nossa” que está chegando aqui. Vivenciei na minha infância o orgulho das minhas tias cisgêneras que eram médicas e agora toda essa galera olhando para mim e me referenciando, então prefiro me alimentar disso nesse primeiro momento. 

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