Duda Salabert: "Somos a última geração capaz de frear a crise climática" - Mina
 
Suas Emoções / Entrevista

Duda Salabert: “Somos a última geração capaz de frear a crise climática”

A primeira travesti eleita deputada federal por Minas Gerais fala sobre seu mandato climático e como seu enfrentamento à mineração a gabarita para ser ministra do meio ambiente no novo governo. Ela também conta sobre as perseguições e violências que sofre, como cultiva o autoamor e revela como foi o processo para tentar amamentar a filha.

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Sentada em frente a uma estante formada por caixotes de madeira empilhados e forrada de livros, a vereadora Duda Salabert (PDT-MG) não parece ter o 1,90 metros de altura que a levou ser cogitada à seleção de basquete mineira na adolescência. Na tela do notebook, onde foi realizada esta entrevista, destaca-se o colar de pedras coloridas, em contraponto à camiseta branca e blazer azul impecáveis, numa harmonia que combina com sua fala pausada e tom professoral.

Primeira travesti eleita deputada federal por Minas Gerais (com mais de 208 mil votos), e vice-presidente nacional do PDT, Duda, de 41 anos, prepara-se para levar seu “mandato climático” ao Congresso Nacional. Para ela, seu enfrentamento à mineração a coloca entre as opções ao cargo de ministra da área no governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva – a quem apoiou. 

“Precisamos de uma consciência ecocêntrica ao invés de antropocêntrica. Colocar  planeta, e não o homem, no centro do universo”

Nascida em Belo Horizonte, Duda passou a infância entre Contagem, na grande BH, e São Paulo, “numa vida cigana”, diz ela, que a família adotou em busca de oportunidades na crise econômica dos anos 1990. Filha de um torneiro mecânico e uma dona de casa, é neta de pipoqueiros, por parte de mãe. Do avô paterno, que era carteiro, a deputada herdou o interesse por literatura. “Meu avô tinha livros de Erich Fromm, Freud… Eu lia sociologia e psicanálise porque era o que havia em casa. Não entendia muito bem, mas lia, até passar a frequentar as bibliotecas públicas em Belo Horizonte, quando me apaixonei por textos marxistas e anarquistas”, diz ela.

Na adolescência, Duda deixou de ser a “estranha” do colégio quando encontrou sua turma no movimento punk e nos esportes. Foi nessa época também que descobriu o dom para o ensino, dando aulas de literatura e gramática – temas em que se tornou expert após ser reprovada em língua portuguesa, no sétimo ano. “A literatura e a gramática me salvaram. Consegui socializar e ter o mínimo de respeito graças ao meu conhecimento. Até hoje dou aulas”, diz a vereadora, que nas últimas duas décadas atuou nos principais cursinhos pré-vestibular e colégios da capital mineira.

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Casada há dez anos com a bióloga Raísa Novaes, com quem tem uma filha, Sol, de 3 anos, ela sabe que sua trajetória como mulher trans é “um ponto fora da curva” no cenário LGBTQIAP+ brasileiro, devido à transição tardia, que permitiu a ela estudar e ter empregos formais – “privilégios” perdidos assim que iniciou o processo de transição.

Nesta conversa, Duda fala sobre autoestima, veganismo, como se blinda dos ataques transfóbicos e destaca que ser travesti no Brasil é fazer uma caminhada do orgulho LGBT a cada vez que se vai à padaria. “Estamos expostas a inúmeras violências todos os dias.”    

Deputada, primeiramente, gostaria de saber se prefere que eu use mulher trans ou travesti para me referir a você nesta entrevista?
Entendo que travesti, transexual, transgênero são sinônimos, pois são corpos que não se reconhecem na identidade registrada e reivindicam outra. O que muda é o significado político: transexual vem da psiquiatria; transgênero, das ciências sociais; e travesti, da rua. Travesti carrega estigmas que fazem com que transgênero e mulher trans sejam palavras mais “higienizadas” do ponto de vista político. Para mim, tanto faz trans ou travesti, embora eu as use de forma diferente. Quando dava aulas no Bernoulli, um colégio de elite em Belo Horizonte – considerado o melhor do Brasil e onde trabalhei por 15 anos –, me apresentava como travesti. Quando estou entre minhas pares, sou uma mulher trans, pois tenho compromisso com seus interesses. Mas sei que tive privilégios que outras companheiras não tiveram.

Quais privilégios?
Bom, passei quase 30 anos reconhecida e lida como homem. Isso possibilitou que eu chegasse ao curso superior e entrasse no mercado formal de trabalho. Ao mesmo tempo, coloco aspas nesse “privilégio” porque ele é socioeconômico, e eu o reconheço. Mas do ponto de vista existencial, vivi 30 anos sem ser quem sou, né? Há cicatrizes emocionais nisso.

” Quando estou entre minhas pares, sou uma mulher trans, pois tenho compromisso com seus interesses” | Foto: Bruna Brandão

O que significou para você iniciar a transição tardiamente e quais as consequências disso?
Minha experiência não traduz a realidade de travestis, transexuais do Brasil. Uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais que mapeou travestis, transexuais de Belo Horizonte mostra que 6% dessa população foi expulsa de casa com menos de 13 anos, e 90% não concluiu o ensino médio. A brutalidade começa na família e se potencializa na escola. Para travestis e transexuais, não existe evasão, mas, sim, expulsão escolar. Nosso projeto educacional é mais uma ferramenta para privilegiar os já privilegiados, excluir os excluídos e acabar com qualquer diversidade. Essa hostilidade se traduz em olhares, que nos exotificam e sexualizam; em piadas, que nos ridicularizam; e na agressão física. Estima-se que 90% das travestis, transexuais brasileiras estão na prostituição – um trabalho quase compulsório –, pois são excluídas do mercado formal. Por ter iniciado a transição tardiamente, tive acesso a espaços que são negados à comunidade trans.

“Criaram um site que tinha fotos da minha filha, onde descreviam formas de me matar e estuprar”

O que ocorreu quando você iniciou a transição?
Esses privilégios todos caíram por terra. Eu cursei letras, um pouco de antropologia e estou me formando em gestão pública, ou seja, tenho três experiências acadêmicas. Além disso, dou aulas há mais de 20 anos nas melhores escolas de Minas Gerais e do país. Estou em meu apogeu profissional, mas não recebo nenhuma proposta de trabalho. Há quinze anos, eu tinha mais chances de conseguir um emprego do que hoje. Este é um exemplo caricatural, mas que traduz a realidade. Somos associados à zoofilia, à pedofilia, ao incesto. Somos vistas como má influência. Hoje, tenho certa estabilidade financeira e respeitabilidade social. Nossa luta é para sermos respeitadas pelo que somos, não por aquilo que conquistamos.

Na eleição deste ano, você sofreu ameaças, o que a motivou a usar um colete antibalas ao ir às urnas. Quais os efeitos dessa violência?
Encontrei a [ex-deputada] Manuela d’Ávila [PCdoB] em outubro, e ela disse que desconhecemos o medo que sentimos. Essa frase traduz muito bem essa realidade. Recebi cartas com símbolos nazistas. Criaram um site que tinha fotos da minha filha, onde descreviam formas de me matar e estuprar. Não chorei nem me apavorei. Teria de fazer análise para entender como estou somatizando essa violência, porque fiquei sem reação diante de tudo o que aconteceu.

Você fez ou faz terapia?
Não, nunca fiz. Talvez isso seja autosabotagem, pois acho que todo mundo deve fazer, mas tenho muito pé atrás com os psicólogos em relação à experiência trans. Falta na psicanálise uma formação política. Talvez se eu fizesse terapia com uma pessoa trans, teria mais tranquilidade. Não me sinto segura com psicólogos que querem saber “como foi sua infância”, como se a experiência trans fosse resultado de um trauma. A minha foi a de uma criança comum. Minha infância e adolescência não têm nenhuma implicação em minha transexualidade.

Como você mantém seu bem-estar físico e emocional?
Há uma frase atribuída a Che Guevara – mas que não é dele –, que é “há que se aguentar sem perder a ternura jamais”. Os ataques da vivência política vão nos calejando e nos endurecendo. Não que eu os naturalize ou normalize, mas começamos a criar um casco, sem perder a dimensão dos sonhos, da poesia, que é essa ternura, né? Para manter meu bem-estar psicológico, não acesso alguns perfis [nas redes sociais] e bloqueio todos que escrevem mensagens de ódio ou que me incomodam. Me chamam de antidemocrática, mas estou pensando na minha saúde mental. Na esfera social, evito lugares onde há muito preconceito porque, para as pessoas travestis, transexuais, ir até a padaria todos os dias é como a caminhada anual do orgulho LGBT, pois estamos expostas a inúmeras violências. Tenho uma vida caseira, com a família. Durante a pandemia, por exemplo, minha filha, Sol, de 3 anos, que ainda não vai à escola, precisava fazer alguma atividade e ficamos no dilema de comprar ou não uma cota do clube, um ambiente conservador, que eu não frequentaria. Por minha filha, acabamos nos associando. Mas vou pouco, porque sei que ali sou alvo de olhares e comentários.

Você e sua companheira, a bióloga Raísa Novaes, têm um relacionamento de quase dez anos. Como se conheceram?
A Raísa foi minha aluna. Eu estava no terceiro período da faculdade e dava aulas no maior pré-vestibular de Belo Horizonte, onde nos conhecemos. Na época, eu tinha 24 anos e ela, 18. Nos casamos após cinco anos de namoro e estamos juntas até hoje. Raísa foi importante para minha transição de gênero.

Qual foi o papel dela nesse processo?
A experiência trans me ensinou – e ensina às pessoas trans de modo geral – que nós não precisamos de alguém dizendo “eu te amo” pra gente se amar. Não preciso da aceitação do outro para eu me aceitar. Se eu dependesse do amor e da aceitação da sociedade, nunca faria minha transição. As identidades e as experiências trans são lidas pela ciência como uma patologia. Até 2018, travestis, transexuais eram consideradas pessoas com transtorno mental. Acho que o mais importante num relacionamento é ter autoamor. Quando você se aceita, se ama, você se cuida e isso contamina suas relações afetivas. A transição nada mais é do que dar vazão a sua subjetividade. Minha companheira me amava por eu ser quem sou. É lógico que a diferença corpórea pode implicar no relacionamento, mas o fundamental foi eu continuar sendo quem eu sou.

Muito bonita sua fala sobre autoestima. Como foi que você descobriu esse “autoamor”?
Demorei porque sempre estive alienada de mim mesma, numa tentativa de me inserir em vivências que, desde a adolescência, não traduziam quem eu era. Eu me sabotei durante muito tempo e o faço até hoje. Me fiscalizo no dia a dia. Quando entendo, passo a me olhar mais no espelho, a me preocupar com minha aparência, querer fazer atividade física. Esses elementos todos fazem parte do guarda-chuva chamado autoamor, autocuidado, né?

Como você e Raísa viveram a experiência da maternidade?
Minha filha, Sol, foi registrada com duas mães. Na época, fiz um processo de hormonização para amamentá-la, pois eu tinha esse desejo, mas não consegui seguir. A taxa de hormônios era muito alta e me fez mal psicológica e fisiologicamente, com consequências como enjoo, dor de cabeça etc. Quando deixei a hormonização, tive uma vivência boa e profunda. Até onde sei, fui a primeira mulher transexual do Brasil a ter licença-maternidade de 120 dias, concedida pelo INSS. Grupos conservadores criticaram, dizendo que são privilégios, mas isso é um direito da minha filha e da minha família. No Congresso Nacional, agora, vamos levantar um debate para rediscutir o período da licença. Foram quatro meses mergulhada nos cuidados de Sol e dando suporte à minha companheira, que estava amamentando. Acho que ter tido duas mães vivendo para ela durante quatro meses, intensamente, vai reverberar para sempre na vida da minha filha.

No Brasil, é recente o debate sobre as necessidades específicas para a saúde física e emocional de pessoas trans. Quais são as mais urgentes?
Considerando a situação do país, acho muito difícil discutir e avançar num debate sobre saúde para as pessoas trans. Quando tratamos do tema, é comum dizerem “mas no meu posto não tem médico” ou “espero dez horas na fila para conseguir um atendimento”. E isso é verdade. A crise econômica, o desmonte das políticas públicas e o ataque ao SUS dificultam o avanço do debate. Como pensar em saúde integral para a população trans num país que não tem médico no posto de saúde? Essa é uma demanda legítima, mas é difícil avançar nesse cenário. Ao invés de tratar as especificidades da saúde trans, nossa estratégia é fortalecer o SUS e, dentro dele, intensificar a ideia de que é importante ter uma política de saúde para a comunidade trans e LGBT. Como vereadora, neste ano, destinei R$300 mil reais ao ambulatório trans de Belo Horizonte, que trata das consequências do uso de silicone industrial – um problema que causa danos absurdos à saúde. Discutir o bem-estar da população trans é falar do nome social, ainda não aceito em muitos serviços públicos. É demandar a ampliação de ambulatórios trans. É exigir que as universidades sejam parceiras na produção científica e na pesquisa sobre nós, pois um homem trans, por exemplo, usa remédios no processo de hormonização cuja bula traz informações para homens cis – e vice-versa.

“Não cabe a mim, vegana, pedir a um indígena para ser também” | Foto: Bruna Brandão

“Aprendi no anarquismo que só há liberdade se ela for coletiva e penso o mesmo sobre o bem-estar”

Ser vegana para você é um posicionamento político?
Me tornei vegana em 2013, quando participei das manifestações, em junho, que reacenderam o meu interesse pelo anarquismo clássico e me levaram a repensar questões econômicas, climáticas e pessoais. Minha companheira [Raísa] já era vegana. Minha adesão ao veganismo ocorre, primeiro, por ser mais saudável. É raro encontrar uma pessoa vegana com problemas de colesterol, por exemplo. Mas também penso na saúde do planeta, pois entendo o veganismo como ferramenta para combater a crise climática. A pecuária é responsável por devastar a Amazônia, o cerrado e a caatinga. Não defendo um mundo 100% vegano, mas que tenhamos uma consciência ecocêntrica ao invés de antropocêntrica – colocar o planeta e não o ser humano como centro do universo. Os povos originários tem uma relação com o ambiente respeitosa. Não cabe a mim, vegana, pedir a um indígena para ser também. Luto para que essa cultura urbana, contaminada pelo capitalismo, pelo antropocentrismo, veja no veganismo uma ferramenta para mantermos a vida no planeta.

A pauta do clima é central em seu mandato como deputada federal?
Sim, o nosso é um mandato climático. Temos como alicerces a questão ambiental, a educacional e os direitos humanos. Em Minas Gerais, a gente tem atuado no enfrentamento à mineração, defendendo nossas serras e águas. Somos a última geração capaz de frear uma crise climática. Entendendo que não há justiça social sem justiça ambiental. Podem me chamar de radical, mas temos de combater essa relação predatória que o ser humano tem com o ambiente com um projeto de educação ambiental.

Você defende a deputada Marina Silva como ministra da pasta de ambiente e clima?
Ela seria um bom nome, assim como o [senador] Randolfe Rodrigues, [Rede], mas acho que eu também sou uma boa opção para o Ministério do Meio Ambiente.

Você e Erika Hilton são as primeiras mulheres trans a se elegerem deputadas federais, e com votação recorde em Minas e São Paulo. Como você sente a responsabilidade de inspirar jovens trans brasileiras que se espelham em vocês?
Associar a imagem de uma trans a algo positivo é uma vitória imensurável. Muitas famílias vão deixar de ter vergonha de seus filhos por serem pessoas trans. Alguns, vão enxergar um horizonte a partir de nossa conquista. Não digo isso no sentido liberal, de que se eu consegui, todos conseguem. Quero dizer que essa conquista nos ajuda a superar o estigma do imaginário popular. Toda política precisa de uma estética e toda estética é política. Por onde eu passo, pessoas me dizem “Duda, meu pai não me aceita, mas disse que votou em você”. Eu respondo: “seu pai te aceita sim. A dificuldade dele é aceitar seus próprios preconceitos. Seu pai não votou em mim, votou nele mesmo, pensando que a partir daquele dia, ele iria olhar tua sexualidade de outra forma”.  É lógico que tenho preocupações climáticas, ambientais e econômicas. Isso é da minha formação política. Mas é ainda mais importante para mim disputar essa nova consciência, que vê a pessoa trans como algo positivo para a sociedade. Carrego isso com alegria, não como um peso.

Antes de a gente se despedir, queria saber o que é bem-estar para você?
Aprendi no anarquismo que só há liberdade se ela for coletiva e penso o mesmo sobre o bem-estar: ele só existe se for coletivo. Não basta se aceitar, reconhecer suas falhas e suas virtudes. É preciso colocar a existência a serviço de outras pessoas. Em Grande Sertão, Veredas, Guimarães Rosa diz que o real não está no ponto de chegada nem no ponto de partida, mas na travessia. Acho que o bem-estar não está no ponto de chegada nem no ponto de saída. Ele é um processo de busca coletiva.

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