Sabe aquela criança que levanta a mão rápido quando perguntam o que ela quer ser quando crescer? Era eu. Desde cedo, sabia sacar muito bem o que eu gostava ou não e quem queria me tornar. Podia até ficar dividida entre o sabor do sorvete ou a cor da camiseta que iria vestir, mas para questões complexas, sempre tive a resposta na ponta da língua. Conforme fui crescendo, descobri que queria ser jornalista e morar em São Paulo. E quando estava vivendo aquela época das festas de 15 anos, me entendi como bissexual – antes mesmo de saber que existia uma palavra para isso. Da mesma forma que alguns meninos despertavam o meu interesse, seja pelo jeito, gosto musical ou estilo, algumas meninas também começaram a despertar.
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Cada pessoa tem seu processo. No meu, não houve nenhuma dúvida, incerteza ou questão. Percebi rápido que me interessava por meninos e meninas. Quando descobri que a atração por dois gêneros ou mais era chamada de bissexualidade, só conclui: é assim que me sinto. Porém, não foi todo mundo da minha cidade, um município do interior a 460 quilômetros de São Paulo, que entendeu com tanta facilidade isso. A minha sorte era ser muito conectada. Pelo Twitter, sites e blogs, tinha acesso a outras realidades e informações, o que me ajudou a não me afetar pelas cabeças fechadas ao meu redor.
Não há indecisão e, muito menos, existimos para realizar algum fetiche
Mesmo ciente do que queria, tive dificuldade em ganhar confiança para me envolver com pessoas do mesmo sexo que eu. Quando comecei a me interessar por meninas, já tinha desenvoltura para lidar com caras, mas precisei fazer novamente esse caminho, só que agora para me sentir segura em relação às mulheres. A primeira transa, não ter vergonha de chegar em uma festa ou carnaval, aprender a não me sentir ridícula chamando para um date, e a trazer toda a minha espontaneidade e autoconfiança para essas relações. E consegui. Os anos se passaram e me mudei para São Paulo. Conheci pessoas, me apaixonei algumas vezes, viajei sozinha, comecei a trabalhar na redação que a minha versão de doze anos morreria de orgulho, vivi uma pandemia, mudei de apartamento e me apaixonei de novo. Agora, por uma garota – minha atual namorada.
Uma das maiores questões que sentimos desde o início é a fetichização do nosso relacionamento. É absurdo o número de caras que já chegaram na gente perguntando se “poderiam participar”. Esse tipo de postura é uma consequência direta da visão estereotipada que ainda existe sobre bissexuais, reforçada através de frases como “isso é só uma fase”, “é indecisão” ou “é falta de vergonha na cara”. Enquanto tenho energia, tento deixar estampado o quanto essas posturas são erradas e devolver o desconforto – afinal, eu não tenho que carregar esse peso.
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Isso só me faz pensar sobre o quanto é urgente termos mais representações saudáveis, e que não sejam sexualizadas, de pessoas bissexuais na televisão, no cinema e na internet. As poucas que temos, muitas vezes caem no mesmo lugar da Piper, de Orange The New Black, que hora era considerada hétero, ora lésbica – como se a possibilidade de ser bissexual nunca houvesse sido pensada. Nós, bissexuais, existimos. E repito: não há indecisão, não somos menos confiáveis e, muito menos, existimos para realizar algum fetiche.
Eu existo e não preciso caber onde você tenta me encaixar, eu crio o meu lugar
Viver a minha sexualidade de maneira saudável, sem me prender a expectativas alheias, me proporcionou histórias que incluem desde um reencontro no aeroporto com beijo digno de novela até um pedido de namoro durante um pôr do sol na praia em pleno Dia dos Namorados. Quando, derrubei o pensamento ultrapassado de que homem gosta muito mais de sexo e goza com mais facilidade uma mulher, me permiti explorar o que gostava ou não. Quando entendi que o meu orgasmo era tão importante quanto o do outro, nunca mais fingi. Quebrando ideias preconcebidas, entendi que sou eu quem constrói a minha maneira de me relacionar. Foi assim também que descobri que pode ser muito leve e gostoso estar dentro de uma relação. Para mim, me colocar como bissexual é lutar contra a invisibilização de narrativas, é um ato político. É como dizer: eu existo e não preciso caber onde você tenta me encaixar, eu crio o meu lugar.