No Brasil, ter liberdade religiosa não tem sido uma tarefa fácil. Apesar do artigo 5º da Constituição Federal prever o “livre exercício dos cultos religiosos no país e que deve ser garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”, a teoria tem sido bem diferente da prática para algumas religiões: as de matriz africana, como candomblé e umbanda.
Elas são as que mais sofrem ataques, perseguições e preconceitos, de acordo com o II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe da UNESCO. Em 2020, foram 86 casos no país. Já em 2021, esse número subiu para 244, um aumento de 270%. Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos, só em 2022 foram 1.200 ataques a terreiros – um aumento de 45% em relação a 2020. A Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro) divulgou um relatório onde ouviu lideranças de 255 comunidades tradicionais de terreiros, nas quais 78% dos entrevistados relataram que membros de suas comunidades já sofreram algum tipo de violência, física ou verbal, por racismo religioso.
“Esse é um assunto importante porque tem estudos que revelam que a intolerância religiosa corrói a democracia ”, explica o babalorixá Sidnei Nogueira de Xangô, autor do livro Intolerância Religiosa (editora Jandaíra, 2020) e líder da Casa de Xangô. “O fundamentalismo religioso é algo perigoso porque serve para a manutenção do poder de alguns. Foi assim que surgiram os países onde a liberdade de crença é cerceada. Metade da população do mundo vive neles”, alerta o autor, que já vendeu 27 mil exemplares de seu livro.
Eles vão perseguir tudo que estiver vinculado ao continente africano, ‘empretecido’
“O motivo principal da perseguição é o racismo estrutural. Assim como perseguem existências negras, eles vão perseguir tudo que estiver vinculado ao continente africano, ‘escurecido’, ‘empretecido’. O candomblé é um lugar de resistência que foge do padrão hegemônico de religião eurorreferenciada, conservadora”, avalia babalorixá Sidnei Nogueira de Xangô. “Em essência, não somos LGBTfobicos, não somos racistas, não somos etaristas… É a única religião onde as mulheres são sacerdotisas com liberdade de ser. Não somos patriarcais. Tudo isso, de alguma maneira, ofende os padrões religiosos eurorreferenciados, o que nos torna subversivos para eles”.
Seu terreiro de candomblé (Comunidade da Compreensão e da Restauração Ilê Ase Sàngó) localizado em Suzano (Grande São Paulo) foi alvo de ataques na época da construção do local. “Por duas vezes, tivemos fileiras de blocos derrubadas a marreta e tentaram impedir a construção. Tivemos que colocar uma pessoa para morar lá e proteger a obra. Hoje, temos uma boa convivência harmônica com o bairro mas, no começo, sofremos esse episódio de racismo religioso”, conta.
Ataques recorrentes
Infelizmente, os ataques não costumam ser um caso isolado na vida de quem é adepto das religiões de matriz africana. “Já sofri diversas agressões verbais, uma inclusive no último 31 de dezembro. Um homem parou, disse que respeitava mas não concordava e que a gente deveria fazer aquilo. Isso é muito comum de acontecer“, conta mãe Ya Soraia, praticante do candomblé há 19 anos e líder do terreiro Ile Aṣẹ Omọ Edẹ. A sede do centro religioso também foi alvo de ataques em julho do ano passado. “Dois carros de filhos de santo que estavam no dia dos trabalhos foram riscados. Um ataque bem grosseiro, chutaram o portão e ficaram tacando pedra dentro da Ilê”, relata.
Praticante da umbanda há 40 anos, Mãe Sandra de Xangô Ogum Odè também já teve seu terreiro como alvo de ataques. “Jogaram garrafas em nossa porta. Conversei com o responsável dessa ação, que se desculpou e nunca mais aconteceu. Estamos há 35 anos no mesmo local”, conta a líder do Terreiro de Umbanda, Caboclo Pena Branca, Caboclo Tupi, sr. Ogum Rompe Mato e Mãe Maria da Cuia, no bairro do Limão, zona norte da capital paulista.
O aumento de casos de intolerância religiosa no país fizeram com que o Ministério Público Federal lançasse uma campanha sobre o tema, em agosto do ano passado, em parceria com diversos órgãos públicos: “Intolerância religiosa é crime e uma violência contra toda a sociedade”. A Polícia Militar do Rio de Janeiro também inseriu um campo de denúncias pelo 190 que identificam a ocorrência de intolerância religiosa. Desde então, estado fluminense tem registrado muitos casos de ataques a terreiros de umbanda e candomblé nos últimos anos. Antes da mudança, os casos eram registrados como brigas de vizinhos ou mera injúria.
“Existe muita ignorância. O preconceito e a perseguição vêm desde a escravidão. Nossos ancestrais eram proibidos de professar sua fé, onde a religião dominante era o catolicismo imposta pelos senhores feudais que tem reflexos até o dia de hoje. Como julgamentos errôneos de que o praticamos seja do mal, de que cultivamos o diabo”, explica Mãe Sandra de Xangô Ogum Odè.
“A umbanda prega paz, amor e caridade”
Para a mãe Ya Soraia, a única coisa que vai fazer as pessoas terem respeito às religiões de matriz africana é o conhecimento, mas muita gente desconhece as filosofia delas. “Existe o estereótipo de que tudo que é trazido por preto é ruim. As religiões de matriz africana começaram a ser cultuadas nas senzalas, era algo dos escravizados e, desde aquela época, era algo visto como marginalizado. Tanto que esses cultos são feitos dentro de casas, terreiros, quintais, quilombos. Era uma coisa que precisava ser feita escondida para que os brancos não vissem. O preconceito continuou nessa progressão. Isso não acabou. A gente não faz um culto hoje de porta aberta por conta disso, porque as pessoas se sentem no direito de ofender”, explica.
Educar é preciso
“A umbanda prega paz, amor e caridade”, destaca a mãe Sandra. “O candomblé prega que não caminhemos sobre a terra árida, que tornemos a terra fértil, respeitemos a natureza. O principal elemento da nossa religião é a vida – em harmonia, com saúde, em família e em comunidade (Ebé). Cultuamos Ayo também, que é a riqueza e a prosperidade”, explica o babalorixá Sidnei Nogueira de Xangô, que exalta o respeito às crianças e aos idosos na religião. “Tem um provérbio que diz que ‘cabelo branco é coroa’. Somos defensores também da sanidade mental, uma vez que temos um ritual ao Ori, que é a nossa cabeça. Para nós, a cabeça também é uma divindade e requer autocuidado, culto e adoração”, completa o Babalorixá.
“Trabalhamos a espiritualidade através da egbe (comunidade), trocando energias, vivências, educação e utilizando como força vital dos Orixás, que são os elementos da natureza que nos dão direcionamento e sustentação para deixarmos ir o que precisa sair e entrar o que é necessário ficar”, destaca a candomblecista mãe Ya Soraia. Para ela, a educação é a base de tudo e somente ela poderá mudar essa situação de intolerância.
Há 20 anos, o Brasil implementou uma lei (10.639/2003) que estabelece o ensino da história afro-brasileira nas escolas. Uma tentativa de incluir uma educação antirracista, diminuindo o preconceito e propagando mais conhecimento sobre a cultura africana no Brasil, o que inclui as religiões afro. Porém, duas décadas depois, a lei ainda não funciona como deveria de fato e ainda existe muita resistência e ataques a quem tenta implementar. Mais de 70% das redes de ensino municipais no país ainda não seguem a lei, de acordo com um levantamento do Geledés e do Instituto Alana.
Para a Mãe Sandra de Xangô Ogum Odè, que pratica a umbanda há quatro décadas, vivemos situações como essas quando o respeito de cada um não é nato. “Nossa Constituição nos dá o direito de seguir a religião. Mas é preciso que tenhamos leis claras e severas que nos representem e tenham efeito, que sejam eficazes para que no futuro possamos professar nossa fé, livres e sem medo”.
Numa tentativa de reduzir os casos, a lei para quem pratica intolerância religiosa também ficou mais severa. Em janeiro do ano passado, o presidente Lula equiparou o crime de injúria racial ao crime de racismo, que também protege a liberdade religiosa. A lei, agora, prevê pena de 2 a 5 anos para quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas. A pena pode ser aumentada a metade se o crime for cometido por duas ou mais pessoas, além de pagamento de multa. Antes, a lei previa pena de 1 a 3 anos de reclusão. Para quem deseja denunciar o crime de intolerância religiosa, só utilizar o Disque 100 da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos ou o 190, telefone de atendimento da Polícia Militar. O Ministério Público Federal também atua no combate a esse crime nos estados e tem atendimento aos cidadãos em todos os estados do Brasil.
“Abram suas mentes, se permitam conhecer e sentir a força dos orixás”
Leis, punições mais severas, respeito e, principalmente, mais conhecimento sobre as religiões africanas é o que querem aqueles que só desejam cultuar seus orixás e entidades livres e sem medo. E fica aqui um apelo da Mãe Sandra de Xangô Ogum Odè: “Abram suas mentes, se permitam conhecer e sentir a força dos orixás, a energia que emanam para que possamos passar tudo que Oxalá nos reserva. Para verem e sentirem o quanto a natureza nos ensina através do orixás”, diz.
“Nós, os umbandistas, somos pequenos aprendizes desta grande religião que a todos une, que não segrega, não humilha e acolhe a todos que a procuram não importando cor, raça ou gênero.” Mãe Ya Soraia faz coro: “Antes de estereotipar ou julgar, você deve conhecer. Tudo que é desconhecido, que é de preto, as pessoas tem mania de desprezar, desvalorizar. A ignorância é o problema.”
“Venha conhecer o terreiro, leia sobre a nossa cultura, entenda a História do Brasil. Permita que nós falemos por nós”, convida o babalorixá Sidnei Nogueira de Xangô. “Fazemos inclusive um trabalho psicossocial porque é para o terreiro que vem a mãe desesperada porque seu filho está começando a usar drogas ou é preso, a mulher que está sofrendo violência doméstica. Aqui, os negros e negras vem colocar sua coroa sobre o terreiro, resgatar sua orixalidade, sua ancestralidade. O candomblé é um território de resistência. Ele é vida, reexistência e um território ancestral negro africano no Brasil”, finaliza.