Fé e festa: duas tecnologias brasileiras de bem-estar - Mina
 
Seu Corpo / Reportagem

Fé e festa: duas tecnologias brasileiras de bem-estar

Por aqui, qualquer lugar onde toque um tambor é templo. Sagrado e profano se unem nas nossas maiores festas populares e essa conexão de corpo, mente e crença pode realmente nos levar além

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Você tem estado em contato com aquilo que é sagrado pra você? Tem conseguido parar alguns segundos para agradecer Deus, Exu, o universo ou a força interior que te guia? A que você se agarra para passar pelas tempestades da vida? Tem lembrado de colocar alguns rituais na rotina? Eu, que sou pessoa de muita fé, confesso que andei desconectada. 

Falar de fé ultimamente é quase um tabu. Durante as eleições, muito se associou a fé brasileira a algum tipo de ignorância, como se crer nos deixasse vulneráveis e manipuláveis. Mas eu te digo: não dá pra viver sem fé no Brasil.  Num país em que o futuro de tantos só vai até a pergunta “será que vou ter o que comer amanhã?”, o que leva as pessoas a seguir em frente é acreditar que de alguma forma a vida vai melhorar. 

Nas danças européias o corpo aponta para o alto, em busca de um sagrado que está distante, no céu

Não estou falando daquela crença em um Deus que está acima de todos. Estou falando de uma fé que se manifesta da cabeça aos pés. A boca canta, os olhos choram, os abraços acontecem e está aberta a dimensão encantada da vida, o território onde tudo é possível. 

No Brasil, qualquer lugar onde toque um tambor é templo. Sagrado e profano se unem nas nossas maiores festas populares. Os tambores das escolas de samba tocam ponto de orixá. No Círio de Nazaré, logo depois que a santa passa começa a Festa da Chiquita, comandada pelas travestis. Nas festas juninas celebramos São João, São Pedro e todos os deuses do forró e das boas comidas. 

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Luiz Antonio Simas, historiador estudioso dessas brasilidades, explica que para algumas das culturas que nos formaram não existe a divisão entre corpo e mente que a tradição de cultura ocidental impõe: para os yorubás, por exemplo somos constituídos de dois tipos de poder, o agbara (poder do corpo) e o axé (poder espiritual) e a vivacidade vem da integração entre os dois. É por isso que nos terreiros o axé se renova com batuque e comida farta. 

Nas aulas do Maravilhosas Corpo de Baile, aprendi que nas danças européias o corpo aponta para o alto, em busca de um sagrado que está distante, no céu. Nas danças de origem africana, o corpo se aterra, se torna uno com o chão, pois o sagrado está nessa junção de gente e natureza. De qualquer forma, no templo ou no pagode, dançamos para encontrar o divino.

Fé e festa produzem pertencimento, comunidade e encantamento

A igreja, o templo, o terreiro e a rua são locais de encontro e troca. Quando somamos a isso a dança e a música, ocorre uma retomada de corpos que permanecem a maior parte do tempo adormecidos, servindo de ferramenta produtiva. Existe um tipo muito específico de mágica que acontece quando cantamos a uma só voz. Inúmeros estudos científicos falam sobre como determinados tipos de música podem produzir estados alterados de consciência. Não é exagero dizer que fé e festa são tecnologias brasileiras de bem-estar. Produzem pertencimento, comunidade e encantamento.

Como eu disse lá no começo, apesar de crer em muita coisa, andava tendo dificuldade de acessar esse lugar sagrado dentro de mim. Foi na festa que me reencantei. Nos carnavais de rua voltei a acreditar e presenciar o sagrado que guia meus caminhos. No Círio de Nazaré, a maior festa de fé do Brasil, ao ver milhares de pessoas agradecendo as bençãos alcançadas, percebi que milagres acontecem todos os dias. Fiz das rodas de samba meu terreiro, percebi que estava mesmo era precisando sair um pouco da mente e experimentar a fé de corpo inteiro.

Vem aí a temporada de festas de fim de ano, e com elas a oportunidade de renovar a nossa fé. Que nos abraços do Natal em família possamos voltar a acreditar mais no que nos une do que naquilo que nos afastou. Que ao pular as 7 ondas na virada do ano, comer a romã ou estourar a champanhe, a gente se permita sonhar com um futuro próspero e abundante para todos. Logo em seguida vem o Dois de Fevereiro, então já boto fé que Iemanjá vai nos abraçar com suas águas e lavar tudo que ficou de ruim dos últimos anos. E depois o carnaval, ai, o carnaval, a mais sagrada das profanidades, para renovar nossa fé na alegria. 

Que 2023 seja de muita fé na festa! 

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