A difícil tarefa de aceitar que o afeto também foi feito para nós, mulheres pretas - Mina
 
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A difícil tarefa de aceitar que o afeto também foi feito para nós, mulheres pretas

Neste Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, a jornalista Letícia Vidica conta sobre como a simples oferta de um táxi virou uma chavinha na sua cabeça sobre "precisar dar conta de tudo sozinha"

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Sim, agora vou de táxi! Mas vou te explicar por que isso é tão importante. Meses atrás, fui convidada a participar da gravação de um programa de entrevistas em uma emissora de TV. Como parte do convite, a produção do programa me ofereceu um carro para me levar até o local da gravação. 

Uma gentileza que faz parte do pacote. Até aí, tudo normal, se eu tivesse aceitado ser levada logo de cara, mas… “Não obrigada. Moro perto e posso ir de carro”.  Respondi assim, na lata, toda empoderada de mim mesma. 

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“Não, você tem que aceitar o táxi, Letícia. Você não precisa fazer tudo! É bom deixar as pessoas te conduzirem também e apenas aceitar ir de táxi. Você merece isso”. Foi o que eu ouvi do meu companheiro quando contei a ele. Teimosa e tinhosa que sou (admito), me silenciei na hora, coloquei meu ‘rabinho’ entre as pernas e fiquei pensativa: por que não aceitei o táxi?

Vamos lá. Como diz a pesquisadora Carla Akotirene, “ser sozinha é não ser escolhida para o amor!!! É ter de encher a sua própria quartinha”. Nós, mulheres negras, temos uma resistência e uma dificuldade em aceitar cuidado e, até mesmo, o amor. Mas isso tem uma explicação. Por muitos anos – e ao longo de toda a nossa história (desde os tempos da escravidão) – fomos ensinadas a cuidar de nós mesmas, sozinhas. Isso porque a afetividade sempre nos foi negada.

Historicamente, as mulheres pretas não deveriam cumprir o papel da ‘mulher ideal’ para casar, ter filhos e formar uma família. Nós já éramos colocadas no papel de quem cuida. Aquela que serve ao outro: a ama de leite, a cozinheira, o objeto sexual do ‘seu dono’, a parteira, a babá, a trabalhadora doméstica…

Quem cuida de quem cuida? 

Pesquisas apontam que as mulheres negras, hoje, dedicam uma média de 22 horas à chamada “economia do cuidado“. Quase um dia cuidando do outro, mas quem cuida de quem cuida?“

A única pessoa que nunca nos deixará, a quem nunca perderemos, somos nós mesmos”, bem pontuou a escritora bell hooks. Ao não aceitar o táxi logo de cara, meu lado ‘eu cuido de mim mesma’ falou mais alto. E não crítico que ele tenha se manifestado assim. Foram muitos anos de solidão, sem ter alguém para dividir e compartilhar. Daí, sim, precisei cuidar de mim.

Deixa que eu dou conta de tudo: faço as compras, descarrego o carrinho, guardo na geladeira, cozinho, lavo a louça, ganho meu dinheiro, pago as contas, me divirto, me proporciono as alegrias, tento curar as tristezas.. E assim vai esse rolê de tentar ser a mulher preta forte guerreira que dizem que somos por aí.

Venho de uma família onde a figura feminina sempre foi muito presente. Mulheres negras, fortes, grandes, gordas que cuidavam de todos e festejavam também. Lavadeiras, cozinheiras, benzedeiras, festeiras, bravas, controladoras do dinheiro da família… 

É assim que descrevem minhas tias, avós e bisavós (especialmente do meu lado materno) quando nos contam as histórias de família nos nossos encontros ou quando vejo as fotos preto e branco dessas mulheres. Mas, sempre me questiono, quem cuidava delas? Eram tudo isso mesmo ou apenas não tinham escolha?

Hoje, mais da metade dos lares brasileiros são chefiados por mulheres e metade desses lares são chefiados por mulheres pretas. Muitas delas (61%) ainda são mães solo. Mulheres que não têm outra escolha senão cuidarem de si e dos seus. Que não têm com quem dividir toda essa carga mental diária de cuidar. Apenas, dão seus corres afundadas nessa lógica louca da estrutura social brasileira de que, sem o cuidado, a vida não é possível.

“Nossa, e quando vai dar ruim?!”. É exatamente o que mulheres pretas se questionam quando o afeto se aproxima de alguma maneira. Isso porque – consciente ou inconscientemente – não nos foi concedido esse afeto de imediato. Mas ele sempre esteve lá e sempre deveria ter sido nosso. A questão é que estamos tendo que aprender agora que somos merecedoras dele e que ele é, sim, revolucionário.

Carla Akotirene diz que “estar sozinha é não receber visita na prisão, é ter que sabotar a vida intelectual para corresponder ao calor de um relacionamento, é apanhar hoje e receber flores amanhã.” É a tal da solidão da mulher negra – que ecoa como um fantasma na vida de algumas de nós mas que temos tentado espantar.

O que tem me deixado muito feliz é ver a sororidade que tem sido criada entre mulheres pretas

Muitas das mulheres pretas carregam trajetórias de relacionamentos abusivos, tóxicos ou de entregas surreais em troca de migalhas de afeto. Isso leva tempo pra curar, mas tem cura. Por isso, quando o afeto vem, o táxi é oferecido e coisa e tal, nem sempre a gente abre a porta ou escolhe entrar. 

A reação mais espontânea, caso você aceite ou entre no táxi, é pensar qual será a merda que vai dar na próxima esquina. Mas, graças a Deus, nem sempre ela vem. Simplesmente, o carro vai dobrar a esquina, seguir o seu caminho e te deixar no destino mostrando uma bela paisagem pelo caminho. É a tal da felicidade estar na jornada.

bell hooks em seu livro Tudo sobre o amor diz que, quando tiramos o amor da esfera da necessidade e o colocamos no campo da escolha, fica mais fácil lidar com a sociedade racista. Por que, sim, nos tirar o direito ao amor, ao afeto e nos oferecer apenas o campo da servidão faz parte de um pensamento racista que nos quer sempre cuidando e não nos quer inseridos na sociedade. Afinal, o afeto e o amor são potentes ferramentas de expansão também.

O que tem me deixado muito feliz é ver a sororidade que tem sido criada também entre mulheres pretas. Mulheres que têm escolhido cuidar uma das outras, se amarem, trocarem afetos, compartilharem suas dores e angústias. Uma rede de apoio fortalecedora na qual escolhemos estar porque sabemos que, sim, merecemos amor. 

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E não importa de onde ele venha. A gente cuida, sim, mas cuida da gente, uma das outras. E temos nos permitido mais ser cuidadas e amadas. Escolhendo estar ao lado de companheiros e companheiras que nos dão amor e que nos chamam a atenção para que a gente aceite o táxi…

… Ah e sobre o táxi?

Deixei minha resistência de lado, retornei o contato com a produtora do programa – em pleno domingo – dizendo que aceitaria o táxi, sim. Ela, prontamente, viabilizou isso pra mim e me dei apenas ao trabalho de me deixar e me sentir bem linda e preparada para estar naquele programa. 

Apenas entrei no táxi e me deixei ser conduzida. Não tive que me preocupar com o tanque de gasolina, se a roupa ia amassar enquanto dirigia, se ia ter trânsito, onde estacionaria… Apenas fui e alguém teve de pensar tudo isso por mim. Sem essa demanda e carga mental, cheguei inteira e no momento presente para fazer o que tinha que fazer.

De lá pra cá, tenho tentado ser menos resistente e tenho incentivado outras mulheres pretas que façam o mesmo. Aceitem afeto. Acreditem que merecem isso e que o amor foi feito para nós. Sim, aceitem o táxi. Por que, agora, eu aceito o táxi!

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