Rabina Delphine Horvilleur fala sobre luto, vida e empatia - Mina
 
Suas Emoções / Entrevista

Delphine Horvilleur: “Não sei se podemos aprender a morrer, mas podemos aprender a viver

Conversamos com a rabina e autora do bestseller "Viver com nossos mortos – Pequeno tratado de perda e conforto", que tem ajudado inclusive pessoas sem tradição religiosa a ritualizar a morte

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Uma rabina feminista que transforma o luto em inspiração. A francesa Delphine Horvilleur é um fenômeno editorial em seu país com o livro Viver com nossos mortos – Pequeno tratado de perda e conforto (Ed. Garamond), que vendeu mais de 250 mil exemplares, foi traduzido em mais de cinco idiomas. Seu texto encanta por tratar de um tema tabu com sabedoria, humor e afeto, a ponto de ser descrito pelo Le Monde como “um livro sobre a morte que se lê com um sorriso nos lábios”.

Confortar e refletir sobre a única certeza que temos na vida é uma tarefa que Delphine Horvilleur, uma das cinco rabinas da França, tomou para si. Ela celebra funerais de maneira linda, com palavras que caem como um bálsamo. O livro traz histórias de onze celebrações, com narrativas emocionantes que ela realiza a partir da apuração da vida de quem se foi. Reunir, recontar, lançar luz sobre essas trajetórias, dando a elas novo significado, à luz dos textos sagrados, é sua missão. 

Perto de completar 50 anos, casada e mãe, a rabina Delphine, que é feminista e de esquerda, estudou medicina em Israel (apesar de ser crítica ao governo atual), trabalhou como jornalista e apresentadora de um telejornal antes de decidir se mudar para Nova Iorque e se preparar para o rabinato – percurso semelhante ao do rabino brasileiro liberal Nilton Bonder (que assina a apresentação do livro e já bateu um papo com a Angélica aqui na Mina).

“Resiliência é aprender a conviver com o que foi quebrado”

Na pandemia, sua voz se multiplicou em reuniões online nas quais comentava textos judaicos relacionando-os ao presente. Pessoas do mundo inteiro e de variadas religiões passaram a segui-la. Em entrevista online a Mina, Delphine falou sobre feminismo, resiliência, empatia e esperança, com a mesma poesia que permeia seus textos e ajuda a nos relacionar com o grande mistério: a perspectiva da finitude. 

Seu livro tornou-se um bestseller na França, embora fale de um tema tabu. O sucesso das vendas a supreendeu?
Fiquei surpresa ao ver o impacto que o livro teve na sociedade francesa, antes de ser traduzido no exterior. Mas muito além dessa relação com o leitor, fiquei comovida ao ouvir de muitas pessoas que estiveram em funerais seculares, onde não havia padre nem rabino, que alguém pegou meu livro para ler um capítulo. Isso me leva a pensar que esse livro, de certa forma, numa sociedade ultra secular como a França, é quase anti-religioso. Ele vem de um pensamento judaico e, ainda assim, foi capaz de transcender a linguagem religiosa para tocar, em momentos críticos de ritualização, pessoas que não são apegadas a uma tradição religiosa. O que me leva a pensar que faltam ritos na nossa sociedade. Vimos isso, por exemplo, durante a crise da covid, muitas sociedades se perguntaram como poderiam ritualizar a perda de milhares e milhares de cidadãos. Países onde muitos de nós tiveram a sensação de que estávamos apenas falando de números e de estatísticas e que não sabíamos como contar a história dos falecidos, nem de uma forma individual, nem coletiva. E só o rito pode fazer isso.


A senhora fala da importância dos rituais e conta sobre alguns deles em relação ao luto. Por que e para quem o ritual fúnebre é importante?
Na verdade, acho que o ser humano não pode viver sem ritualizar e, às vezes, ritualiza sem nem pensar que se trata de um gesto religioso. Ele se esquece que qualquer rito é religioso. No sentido etimológico do termo, pretende nos religar. Porque somos seres em busca de conexões e de tudo o que conecta. O rito cria cultura em nossas vidas. Gosto de usar como metáfora as imagens de costura. Acredito que todos aspiramos àquilo que em nossas vidas remete ao cerzir, remendar, costurar-nos uns aos outros, mas também com o passado e com o futuro. O ritual serve para unir as gerações, unir os tempos da nossa história ou conectar as pessoas umas com as outras. Todo rito é uma questão de costura. Na tradição judaica, essa ideia da costura é quase onipresente. Também é interessante pensar que na história muitos judeus exerciam os ofícios de alfaiates e costureiros. Muitas vezes, por não terem escolha. Mas quando você pensa sobre isso, há algo simbólico. Os judeus sempre se interessaram pela questão daquilo que liga os tempos, as gerações e as pessoas. E eu vejo nos ritos de luto isso muito presente. No cemitério, se costuma rasgar algum tecido e, quando alguém morre, se costura uma mortalha. 

Pode falar um pouco sobre a definição dessa palavra “resiliência”, termo que tem sido muito usado no enfrentamento das dificuldades emocionais.
Sim, pelo menos na França é um termo que utilizamos sem parar nos últimos anos, que se tornou quase piegas. Aqui as pessoas estão obcecadas pela ideia de resiliência, ou seja, o que acontece depois de um choque ou de um trauma, um grande golpe na existência. Conseguir ser resiliente, na cabeça das pessoas, é a possibilidade de regressar à situação anterior ao choque. E acho que é um erro, porque o verdadeiro significado da resiliência não é agir como se o que nos aconteceu não tivesse acontecido, mas aprender a viver a vida com aquilo que não existe mais. Aprender a conviver com o que foi quebrado, sabendo que nunca mais seremos os mesmos, mas também que a mudança que ocorreu através da perda nos tornará paradoxalmente mais fortes. Para mim, tudo se resume à questão de como contar sobre as pessoas que se foram para que elas sobrevivam em nós. Não devemos apenas contar sobre a sua força, mas também contar sobre seus fracassos e fazer com que eles acompanhem os nossos.

Há pessoas que deixam registrados pedidos sobre como gostariam de ser enterradas, cremadas, etc. Existem limites para a realização dos últimos desejos dos mortos?
Esse tem sido um dilema moral para mim em muitas circunstâncias. As sociedades mais antigas consideram a morte um assunto coletivo e público e a tradição deve ter precedência sobre a vontade do indivíduo. Nas nossas sociedades, que enfatizam cada vez mais o individualismo, é o contrário: a honra devida ao falecido exige que aceitemos todos esses pedidos. Minha prática rabínica me fez navegar entre essas posições para chegar à conclusão de que o limite de acesso aos desejos do falecido é a sensibilidade de quem lhe sobrevive. Na morte, não pertencemos completamente a nós mesmos, pois temos uma responsabilidade para com aqueles que vão nos prantear, que terão de conviver com nossa ausência e, se as nossas escolhas agregam luto ao luto deles, sofrimento ao sofrimento deles, então não seremos nós quem teremos a última palavra. Eles são os vetores de sua memória e terão que carregá-la entre risos e lágrimas: em toda a lembrança alegre, mas também na dor. Portanto, essa nunca é uma conversa que se deve ter a sós com a pessoa que vai morrer. Os entes queridos devem fazer parte dela.  

“A gente conta a história de quem se foi pelo que delas permanece vivo em nossas vidas”

Muitas vezes, não encontramos as palavras certas para confortar uma pessoa de luto e dizemos bobagens. O que se deve dizer e não dizer?
As pessoas dizem coisas estúpidas quando se dirigem às famílias enlutadas porque obviamente se deparam com as suas próprias apreensões e seu próprio temor. É como se sua própria dor surgisse cada vez que a morte bate à porta de outra pessoa. Então você ouve ouve idiotices ou banalidades como: “Os melhores vão embora primeiro.” “Os caminhos do Senhor são impenetráveis.” Enfim, todas essas frases clichês, que nunca consolaram ninguém. E também há um fenômeno clássico no luto: muitas vezes aquele que vem confortar o enlutado é quem chora, e o enlutado é quem distribui os lenços. Ou seja, há uma inversão da dor e do consolo. O fato é que não sabemos falar sobre isso, portanto, a única coisa de que se pode falar é sobre a vida. A única coisa que podemos fazer quando a morte bate à porta é nos perguntar como podemos permitir que a vida tenha a última palavra, como vamos contar a história dessa pessoa? Não é pela sua ausência, mas pelas marcas que ela deixa no mundo e pelo que permanece vivo de sua vida em nossas vidas. Uma vez que aceitamos isso, podemos começar a procurar as palavras certas. 

Como a senhora encontra essas palavras?
Não existe uma fórmula mágica para falar com os enlutados, porque nenhum deles tem a mesma necessidade que os outros. Quando chego, primeiro espero que a pessoa me diga, consciente ou inconscientemente, o que precisa e, muitas vezes, é isso que acontece. O enlutado nos dá indicações como mensagens codificadas do que ele precisa. Percebo rapidamente que precisam que eu cale a boca ou que fale. Às vezes, precisam de um discurso muito espiritual e outras vezes, ao contrário, esperam que eu só fale de coisas pragmáticas sobre a vida a partir de então. O mais perturbador é que, mesmo sem perceber, muitas vezes são eles que nos dão as chaves do reconforto, que nunca são pré-mastigadas. Basta ativarmos nossas antenas humanas, a capacidade de ouvir os outros, que deveríamos aprender a desenvolver. Estou convencida de que nós todos somos capazes de nos refinar através do contato com o outro e com a sua dor. Mas isso exige abrir os ouvidos, os corações, sei lá. Algo que está em nós e que, talvez por proteção, aprendemos desde jovens a bloquear ou a obstruir. Na verdade, uma capacidade empática. Tenho uma obsessão por palavras. 

E o que tem a nos dizer sobre empatia?
Neste caso, o grande equívoco é pensar que empatia é a capacidade de se colocar no lugar dos outros, de sentir o que eles sentem. Na minha opinião, a verdadeira empatia é quando fazemos os outros entenderem que não sabemos o que eles sentem. Não é preciso fingir nem acreditar que podemos nos colocar no lugar do outro. Porque não estamos no lugar de alguém que perdeu um pai, um irmão, uma irmã, um filho, e recebe uma visita. Você pode acompanhá-lo, mas sem fazê-lo pensar que sabe exatamente o que sente. Porque isso não é verdade. A dor do outro não é a minha dor e o que ele vivencia não é o que eu vivencio. E embora eu tenha uma mãe, um irmão e meus filhos, não consigo imaginar nem por um segundo o que o outro está passando. Então, detesto essas frases horríveis no luto quando dizem que sabem exatamente como você se sente. Na verdade, essa é a pior coisa a dizer. 

O que pode aliviar a ideia da finitude?
A coisa mais extraordinária que pode nos acontecer é pensar que, com um pouco de sorte, a nossa morte não será uma tragédia. Porque nem todas são. Às vezes acompanho pessoas no final da vida, seja qual for a sua idade, com a sensação de que sua existência chegou a alguma forma de realização. Elas tiveram tempo para construir coisas das quais se orgulham. Estão rodeadas de pessoas que amaram e que as amaram e que carregam a sua memória. Claro, nem sempre é possível. Quando as pessoas falam sobre morrer jovens num acidente ou de uma doença terrível, é impossível não ver isso como uma tragédia. Gostaria que todos nós pudéssemos ter uma morte que não seja uma tragédia, quem sabe até um funeral onde as pessoas possam rir, contar piadas e zombar um pouco de nós. Seria um lindo presente para cada um de nós imaginar uma cerimônia onde nossos entes queridos sejam capazes de, como dizemos em francês, “nous chambrer”, tirar sarro de nós, ou seja, ter uma certa ironia, capacidade crítica e visão ampla, que façam com que a nossa morte, por mais triste que seja, não seja vivida como uma tragédia.

Depois de ter realizado tantas cerimônias fúnebres, como se sente em relação à sua própria finitude? Tem algum cuidado especial ou ideia para sua própria despedida?
Já me fizeram essa pergunta antes e ela sempre me faz sorrir porque adoraria poder responder que, graças à minha experiência de acompanhar a morte, não tenho mais medo algum, estou calma e confiante. Mas seria uma grande mentira. Talvez acompanhar a morte dos outros até me deixe um pouco mais angustiada. Vou dizer uma banalidade, mas você verá que é mais profunda do que parece: estou em contato constante com pessoas que iam muito bem até irem muito mal, que estavam muito vivas até morrerem. E, de fato, ao acompanharmos pessoas no fim da vida, compreendemos como ela é frágil e a que ponto somos vulneráveis. Até que uma pessoa seja informada de sua morte iminente, na maioria das vezes, ela pensava que era invencível e intocável. Talvez isso me dê uma consciência particular da nossa vulnerabilidade absoluta, do nosso desamparo diante do que obviamente acontecerá com todos nós. E não sei se podemos aprender a morrer. Acho que podemos tentar aprender a viver e isso não é nada ruim. 


Agradecimento: Claudia Poncioni (apoio na entrevista e tradução do francês)

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