Tatiana Vasconcellos escreve sobre impacto das fake news no jornalismo - Mina
 
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Tatiana Vasconcellos: “Desinformação mata. Escolher acreditar em uma ilusão não resolve os problemas do país”

Nossa colunista escreve sobre a impactante missão de cobrir a tragédia do Rio Grande do Sul meio a tantas fake news e mentiras que circulam pelas redes

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Um choque de emoções. A pessoa física estava muito contente, imersa naquela imensidão de significados chamada Madonna em Copacabana, e, no dia seguinte, a pessoa jurídica noticiava dezenas de mortos pelas enchentes no RS. Como compreender e noticiar um país que vive dois eventos extremos de naturezas diferentes no mesmo fim de semana? 

Lidar diariamente com o noticiário em meio a uma tragédia desta dimensão é sempre desgastante emocionalmente. Me lembro de tantas outras coberturas difíceis em 24 anos nesta indústria vital. Um deslizamento em um fim de ano na Ilha Grande, no Rio, em que chorei no ar com a declaração de um senhor cuja filha estava desaparecida sob os escombros. Reveillon. Um desastre que mata uma jovem. Um pai chorando. E eu dando essa notícia. É sempre custoso equalizar várias, diferentes e intensas emoções. 

Divulgar e estimular a ação solidária de milhões de pessoas espalhadas por esse país para quem perdeu tudo no sul, e também a negligência dos representantes dessas mesmas pessoas para tentar evitar que elas perdessem tudo. As imagens distópicas de cidades inteiras com água até o teto são desoladoras. Os animais desamparados, os idosos ilhados. As cenas de resgates e de reencontros de pessoas que não têm mais nada, mas estão vivas. As notícias de mulheres e crianças estupradas nos abrigos acabaram comigo, me provocaram sensações que mal sou capaz de nomear. Vontade de gritar e enfileirar palavras de baixo calão.

“Estamos impactados emocionalmente, mas realizados em exercer nosso ofício”

Chamo um amigo muito querido que vive em Porto Alegre, peço notícias, troco palavras de afeto, ofereço ajuda. Um repórter da CBN noticia o alagamento de um centro cultural que faz parte da história dele. É de pertencimento que se trata, afinal. Ele conta da sensação paradoxal de estar devastado, mas satisfeito de estar ali trabalhando para informar o que vê, ouve e sente. É assim mesmo. Ao mesmo tempo em que estamos impactados emocionalmente, estamos realizados em exercer nosso ofício. 

Se é Fake, não é news

São diversas as abordagens possíveis de um evento como esse. Os canalhas fabricantes de narrativas sabem bem disso e se aproveitam dessa tragédia para arregimentar pessoas e aumentar seus números. Laçam as pessoas pelo estômago, oferecendo a elas um cardápio conhecido: massagem para as suas emoções numa banheira coletiva de desconexão com a realidade. Informações falsas. Distorcidas. Inventadas. Manipuladas. Os engenheiros do caos oferecem o conforto quentinho da ilusão para quem está cansado da realidade complexa que o noticiário mostra todos os dias. E quem não está? 

Tenho me lembrado de uma publicação que fiz há uns 10 anos no finado Facebook e que gerou uma boa discussão no meu círculo jornalístico na ocasião: “em pouquíssimo tempo nossa principal função será desmentir boatos”. Jamais imaginei que regrediríamos tão rápido nas redes sociais da confraternização amorosa musical para as fake news cheias de ódio. Mas nem todos estavam interessados na discussão, claro. Na época, ouvia de um colega de trabalho para não me preocupar nem dar atenção, que aquilo era “coisa da internet”. 

Cá estamos nós, dez anos depois e cinco casas da comunicação para trás, tendo de desmentir inverdades perigosas num contexto de confusão informacional, em meio a uma tragédia política e ambiental inédita, com mais de uma centena de mortos e meio milhão de pessoas fora de suas casas num estado que ficou paralisado. É inacreditável que tenhamos chegado a esse ponto, enquanto as grandes plataformas de redes sociais seguem atuando de maneira desregulada e irresponsável, para não dizer criminosa, com desinformação sendo propagada em velocidade vertiginosa, afetando diretamente o desenrolar da História. Informação é poder. E com grandes poderes vem grandes responsabilidades. Acontece que o pessoal bilionário dono das plataformas ama o poder e ignora a parte da responsabilidade.

“A importância do jornalismo profissional aumenta na medida em que a atividade vai sendo precarizada”

“Um recente estudo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) demonstrou que uma falsa informação tem, em média, 70% a mais de probabilidade de ser compartilhada na internet, pois ela é, geralmente, mais original que uma notícia verdadeira. Segundo os pesquisadores, nas redes sociais a verdade consome seis vezes mais tempo que uma fake news para atingir 1.500 pessoas. Temos, enfim, a confirmação científica da frase de Mark Twain segundo a qual “uma mentira pode fazer a volta ao mundo no mesmo tempo em que a verdade calça seus sapatos”!”, trecho do livro Os Engenheiros do Caos.  

Nesse ambiente, a importância do jornalismo profissional aumenta na medida em que a atividade vai sendo precarizada. É uma luta inglória, mas jogar a toalha não é uma opção. Sigo fechada com a informação bem apurada, com a observação, o relato e a análise dos fatos, com debates baseados em dados de realidade e com a convicção de que o país precisa de uma lei que regulamente o funcionamento das plataformas de comunicação. E logo! Entre períodos de desconexão, descanso e exercício físico para dar conta da batalha, vamos continuar ouvindo histórias das pessoas, flagrando cenas, cobrando autoridades, acompanhando o trabalho dos governos, a atuação de parlamentares, propondo discussões e apontando caminhos, fazendo e incentivando a cooperação. Isso tudo é função do jornalismo. Colaborar, ajudar, oferecer, se doar como pode em cenários de catástrofe é o correto a se fazer, atitude mínima de humanidade de quem não tem uma pedra no lugar do coração.

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Desinformação mata. Busque fontes confiáveis – infelizmente quase nunca é confiável a mensagem repassada no whatsapp pelo nosso amigo ou familiar, apesar de a gente amar muito a pessoa que enviou. Não repasse. Jornalismo é outra coisa. Consuma notícias de veículos comprometidos com a ética editorial e a responsabilidade na comunicação. 

Acreditar numa verdade inventada infelizmente não muda o nosso entorno, apesar de aplacar uma sensação desconfortável. Escolher acreditar em uma ilusão não melhora a nossa condição, não resolve os problemas do país e nem as necessidades das famílias gaúchas que sobreviveram e vão ter de recomeçar do zero. Vamos respirar fundo, encher o peito de ar, amor e coragem para encarar a vida real. Informação salva vidas.

Indicação para ler: 

Os Engenheiros do CaosComo as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições, Giuliano Da Empoli, Editora Vestígio.

A Máquina do Ódio – Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital, Patrícia Campos Mello, Editora Cia das Letras.

A máquina do caos: Como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo, Max Fischer, Editora Todavia

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