Não são necessários muitos elementos para traçarmos diagnósticos de transtornos mentais a terceiros. Basta fugir à régua de um suposto normal que eles despontam até com uma confortável naturalidade: se a mulher escapa ao repertório da mãe amorosa, só pode ser narcisista; se um homem é abusivo, corrupto e cruel, claramente se trata de psicopatia; a pessoa mentirosa da internet? Mitomaníaca, é claro.
Aponte um diagnóstico, desresponsabilize uma pessoa
O que surgiu como uma presumida democratização do conhecimento da saúde mental, sobretudo propagada pela internet e redes sociais, com seus curtíssimos vídeos listando uma penca de sintomas para determinado estado psicológico, tem se mostrado cada vez mais distante de realmente promover boas reflexões sobre o tema. A verdade, inclusive, é mais dura e problemática do que imaginamos: aponte um diagnóstico, desresponsabilize uma pessoa.
Esse fenômeno que transforma questões próprias da nossa humanidade ou de origem social e política em patologias psiquiátricas tem até mesmo um nome e vem sendo há décadas estudado pela ciência: a patologização da vida. Quando aspectos cotidianos ou dos conflitos humanos são patologizados, não apenas indivíduos se tornam isentos em assumir responsabilidades pelas suas ações, mas o coletivo – ou seja, a sociedade, o Estado e todo seu aparato institucional – é também desimplicado. Violências deixam de ser nomeadas dando lugar a uma extensa lista de psicopatologias.
A desresponsabilização acontece à medida que nossa leitura daquilo que entendemos como errado ou “anormal” é medicalizada, isso é, comportamentos passam a ser vistos como sintomas a serem tratados e corrigidos. Com as coisas sendo reduzidas a um mero aspecto biológico, nos distanciamos das causas estruturais ou pessoais que nos levam a agir de determinadas formas. Afinal, a lógica é: no momento que a situação se transforma num problema de origem mental, a pessoa está sob domínio daquela condição, perdendo sua autonomia, certo?
Nem tudo se trata de um transtorno
Por exemplo: às vezes, por trás de mães entendidas como más, existe toda uma romantização e compulsoriedade da maternidade para mulheres que não desejavam assumir esse papel; uma masculinidade que se mostra violenta, abusiva e machista é fruto da cultura patriarcal e misógina; pessoas que mentem repetidamente podem ter benefícios por meio dessa atitude e seguem repetindo por aí vai. Em outros termos, nem tudo se trata de um transtorno.
Não que não exista uma dimensão psicológica em nossas condutas, o problema é como temos sido ensinados a compreender sua complexidade em termos médicos, perdendo de vista a dimensão histórica e cultural do comportamento, e como se tudo tivesse – e pudesse – que ser resolvido no consultório de um psicólogo ou psiquiatra.
Nossa linguagem cada vez mais recheada por uma gramática psiquiátrica indica como, ao criarmos nós mesmos nossos laudos para outras pessoas, subtraímos a possibilidade delas próprias se implicarem com as consequências de suas ações. Num nível macro, ainda, instituições sociais deixam de se envolver e criar mecanismos de combate aos preconceitos raciais e de orientação sexual, à violência de gênero e contra grupos vulneráveis.
É importante, sim, entendermos que alguns estados de sofrimento psíquico ou padrões comportamentais causam prejuízos – sejam em nossas vidas ou nas de terceiros. Porém, toda essa nossa facilidade em distribuir psicopatologias não indica que estamos, de fato, ajudando alguém. Colocar toda essa causalidade nos transtornos mentais é minimizar a raiz de inúmeras mazelas, promover desresponsabilizações e banalizar diagnósticos. Não podemos nos esquecer que, enquanto humanos, estamos sujeitos ao erro, ao sofrimento e à diversidade de subjetividades. Melhor pode ser a compreensão de que nem toda dimensão da vida humana cabe num rótulo psiquiátrico.