O que é microtraição? - Mina
 
Seus Relacionamentos / Reportagem

Microtraições ou macro controle?

Uma problematização sobre o novo termo queridinho da internet e uma nova visão sobre o bom e velho "quem procura acha"

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Seu namorado retoma conversas no inbox com aquela ex do tempo da faculdade e não conta pra você que estão se falando: microtraição, sim ou não? Conversar por mensagens com um amigo ou amiga sobre um tema íntimo (não sexual) que você não conversa com seu parceiro ou parceira: microtraição, sim ou não? Compartilhar frequentemente reels, memes e links com o cara bonitão ou a mulher gata do trabalho: microtraição, sim ou não? 

Microtraição é um termo que ganhou força nos últimos tempos para (tentar) dar contorno à angústia gerada por comportamentos digitais que são pequenas quebras de confiança. Conforme definição da publicação americana Psychology Today: são “pequenos atos de traição percebidos em um relacionamento, mas que não ultrapassam o limite para um caso propriamente físico”. Atenção à palavra “percebidos”. Sim, por que como não houve o que chamamos de traição de fato, quem determina se houve traição é a própria pessoa que se sentiu traída e os milhões de inquisidores da internet. 

O universo digital está amplificando todas as nossas neuroses de controle e obsessões

Trending topics de Tik Tok, Instagram e podcasts geram listas com comportamentos que se encaixam aqui. Alguns deles: 

  • Enviar mensagens para alguém e não contar pro parceiro
  • Deletar mensagens ou conversas
  • Reclamar sobre seu parceiro para outras pessoas
  • Manter contato com ex-namorados ou ex-ficantes
  • Mentir sobre seu status de relacionamento online ou offline
  • Ser sensível, fofa, atenciosa com outra pessoa
  • Tentar impressionar alguém que não é seu parceiro
  • Stalkear alguém que você acha atraente

Perceba que nesse grande balaio de gato misturamos quebras de confiança com comportamentos que simplesmente têm a ver com a privacidade da outra pessoa e também com o desejo dela (que, sinto dizer, não é unicamente direcionado ao companheiro ou companheira mas, nem por isso, será realizado ). Daí fica a pergunta: estamos falando de microtraições de um ou de macro-controle do outro, que se sente traído por qualquer movimento libidinal do parceiro que não seja em sua direção ou não esteja sob seu controle?

A discussão sobre microtraição, problematizada aqui como macro controle, ganha relevância em tempos onde quase tudo pode ser rastreado – desde um simples curtir nos stories até o histórico do Uber, passando pela a localização em tempo real. 

Os conservadores dirão que o digital apenas potencializou as formas de traição, dizendo que hoje em dia o flerte está mais acessível. Mas será que não é o oposto: que o digital está amplificando de forma mais corrosiva todas as nossas neuroses de controle e obsessões? Em tempos onde nos deparamos com cada vez mais casos públicos (e privados) de traições é difícil desarmar o modo “à espera de um desastre”. Iza, Preta Gil, Shakira, sua prima e seu vizinho. Parece uma epidemia, mas será que estamos sendo mais traídos ou apenas mais pegos nas traições? Fato é que existe uma descrença relacional, uma espécie de estresse pós traumático que atinge a todos. E, já que ninguém quer ser feito de bobo, melhor procurar indícios antes que alguma coisa aconteça.

Não, não era amor. Era controle

Hiperdefensivos e auto-centrados, corremos o risco de violar a privacidade do outro e interpretar recortes de realidade como se fossem indícios de alguma coisa, apenas porque… queremos ter razão. Deixa eu contar uma coisa pra vocês: isso se chama “viés de confirmação”, muito provavelmente misturado com uma dose do que Freud cunhou de ciúme projetivo. Aquele ciúme que acontece quando você é a pessoa que tem a maior queda por uma terceira pessoa, sublima o frio na barriga como pode e, ao mesmo tempo, não se controla toda vez que seu namorado fica meia hora a mais no happy hour do trabalho. Seu ciúme fala mais da projeção do seu desejo interditado do que da queda que você acha que ele tem com pelas colegas. Daí entra aquela coisa, ao invés de você entender que todo mundo tem desejos… melhor ir atrás de indícios de microtraições.

“Quem procura acha”. A frase bem chavão do tempo das nossas avós cabe aqui, mas não porque esteja todo mundo traindo, mas sim porque na loucura por termos razão e controle, interpretarmos o que quisermos e como quisermos. É como se o procurar é que gerasse o problema, para, ufa, provarmos nosso ponto. E assim, destruímos relações que poderiam ser ótimas apenas não saber fazer manejo de pequenos flertes ocasionais e conversas sobre psicanálise na DM. 

Preciso contar pra vocês, quanto mais estudo sobre relacionamento, mais tenho a certeza de que o macro controle tem sido mais danoso do que as supostas microtraições, principalmente quando a gente normaliza isso como prova de amor. Uma pesquisa de 2023 da empresa de segurança Malwarebytes afirma que  53% das pessoas da geração Z e dos millennials que namoram sofreram pressão para compartilhar logins, senhas ou locais onde estão com seus parceiros. 

Advogados especializados em casos de violência digital apontam que os casos que mais crescem em seus escritórios são de casais adolescentes que começam a vida amorosa trocando senhas como quem troca juras de amor. Infelizmente, a privacidade entregue junto com o coração tem sido cada vez mais usada em casos de chantagem, manipulação, cyberbullying, humilhação pública e pornô de vingança. Não, não era amor. Era controle. 

Sintoma ou entretenimento?

Vídeos ensinando recursos de investigação e invasão de privacidade crescem exponencialmente na internet. Kai Gonzalez foi uma dessas anônimas que se tornou celebridade ao mostrar como criou um tira-teima para a suposta traição do namorado: dirigiu até a casa dele e estacionou do lado de fora de madrugada. Como ele já havia emparelhado o celular com o bluetooth do carro dela antes, ela conectou os sistemas e conseguiu acessar as mensagens de texto na tela do painel. Ali, encontrou alguns “bom dia” e “boa noite” com outras mulheres. Kai terminou o relacionamento e transformou a saga num vídeo visto 8 milhões de vezes. Isso diz mais sobre o ex-namorado de Kai ou sobre nossa obsessão?! 

Aqui mesmo no Brasil já existem instagrams bombando com perfis de detetives online, tutoriais de hackear emails, clonar celulares e criar perfis falsos para xavecar o parceiro e testar sua fidelidade. Não sei vocês, mas pra mim isso soa como a versão 2024 do programa do João Kleber. Por que, meu Deus? Percebam, quanto mais vilanizamos o outro e nos transformamos em celebridades digitais paladinas da fidelidade, menos questionamos nossa fixação por controle e invasão de privacidade.

Ser fiel não X abrir mão da sua privacidade 

Sei que é difícil – e polêmico – entender que estar em um relacionamento não significa que parar de ser atravessada pela presença de outras pessoas que não sejam seu parceiro principal. Você vai ter vontade de flertar, eventualmente vai sim trocar olhares, mensagens… e pode ser que fique só nisso. É preciso se perguntar: será mesmo que os likes do seu companheiro ou companheira em fotos de outras pessoas são tão nocivos a seu namoro ou casamento? 

Há os que acreditam que o caminho é combinar o jogo e determinar o que é e o que não é considerado traição. Aqui, me lembro automaticamente de uma esquete do Porta dos Fundos onde as regras para uma relação aberta se tornam uma enciclopédia de milhões de páginas para conter tantas situações específicas e tanta angústia do casal. Será que precisamos mesmo perguntar tudo, saber tudo, combinar tudo? Será que isso é possível? Eu diria: sustente o não dito e confie na lealdade. 

A psicanálise nos convida a entender que o desejo é sempre desejo dividido: amar e não amar, querer e não querer. E, além de dividido, o desejo também pressupõe a falta. Ou seja, por mais que você e seu companheiro se amem, vai faltar algo. Isso é humanidade e não crise na relação. Poder suportar as nossas faltas e o desejo do outro sem se tornar um detetive, pra mim é um grande ato de amor… por nós mesmas.

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