Minha primeira boneca preta - Mina
 
Suas Emoções / Reportagem

Não é só uma boneca

A escritora Triscila Oliveira conta como a compra da primeira boneca preta mexeu com ela e pode mexer com muita gente

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Eu comprei minha primeira boneca negra aos 37 anos. E não por falta de grana exatamente, porque antes disso eu já tinha feito outras tantas coisas, conquistas maiores, escrevi um livro, viajei, troquei de celular. Antes de ter a primeira boneca que se parece comigo ajudei várias pessoas, e assim, sempre empurrei para depois esse pequeno desejo.

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E caramba, por que a gente está sempre fazendo isso? Fiquei me perguntando. Aliás, por que a gente está sempre deixando para depois pequenos (ou seriam imensos?) atos de carinho e acolhimento com nós mesmas? As respostas são muitas.

Mas antes, vamos aos fatos: eu nunca tive uma boneca negra porque elas eram raras naquela época e totalmente inacessíveis para a minha realidade. Eu era a criança que tinha que se contentar com as bonecas descartadas pela filha da patroa. E, quebradas ou não, elas eram todas brancas. Assim como as apresentadoras de televisão e suas assistentes, a protagonista da novela, a modelo famosa e a própria patroa bem sucedida. 

Fico imaginando o impacto que uma boneca que se parecia comigo poderia ter feito na minha autoestima

Depois, veio uma questão comum às meninas, principalmente as de classe mais baixa, que é a imposição de uma adultização precoce, que atropela essa fase tão importante e que nos forma para sempre. E a partir daí várias outras demandas começam a sufocar nossos sonhos, vontades e desejos. Engavetamos aquele pensamento, adiamos e até trocamos nossos sonhos por outros. 

Mudar de ideia e opinião faz parte do amadurecimento e atender os desejos de quem fomos para acolher nossa criança interior faz um bem danado. Mesmo que seja com um brinquedo dos comerciais, viajando para o famoso parque de diversões ou comprando o iogurte que nunca pudemos ter na geladeira.

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Mas a boneca em si, vai além de apenas possuir. Demorei muito para entender o quão profundo era esse desejo por representatividade que eu via como referência de beleza e sucesso. Fico imaginando o impacto que brincar com uma boneca que se parecia comigo poderia ter feito na minha autoestima e na minha autoconfiança enquanto eu crescia lá nos anos 80 e 90.

Talvez a questão não seja ter levado esses 37 anos para comprar uma boneca preta, mas, sim, ter levado todo esse tempo para revisitar uma fase que foi muito difícil da minha vida. Talvez tenha demorado pra conseguir olhar com mais afeto e daí, sim, me presentear com a cura. E não foi simples, obviamente não foi só uma compra, eu trabalhei muito para sarar as feridas.

Os tempos são outros, e graças a deus, e a muita luta de movimentos sociais e ativistas, meninas negras poderão crescer se vendo, tendo referência e muito mais possibilidades do que a minha geração teve, e quem sabe, no futuro, elas não precisem mais viajar no tempo para abraçar e acolher suas versões mais novas. 

Eu preciso acreditar nisso.

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