Aline Borges: "Entender que sou preta resgatou minha autoestima" - Mina
 
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Aline Borges: “Entender que sou preta resgatou minha autoestima”

Aos 47 anos, atriz de “Pantanal" conta como passou mais de 40 sem entender que é uma mulher negra e o como isso a impactou na vida profissional e no amor-próprio

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Quem acompanhou a trajetória – e os discursos importantíssimos a respeito de racismo e discriminação – da personagem Zuleica, de Pantanal, não imagina que a atriz Aline Borges, de 47 anos, passou a maior parte da vida sem entender que é uma mulher negra e o que isso significa. Isso aconteceu há apenas cinco anos, quando, aos 42, foi convidada para integrar uma peça com elenco todo de atores negros, e pensou: “Mas eu não sou tão preta assim”. 

“Entender minha identidade de mulher preta fez com que eu resgatasse minha autoestima”, diz. Aos poucos, aprendeu a amar o cabelo crespo e o nariz largo, que, aos 23 anos, quase operou para afinar: “Ia ficar tenebroso, ia me arrepender até hoje, mas naquela época me incomodava, porque não fui ensinada a gostar do meu nariz”.  À Mina, ela narra trechos desta trajetória de autoestima desde que se apropriou da negritude – o que deve à arte – e como adotou a luta antirracista como a principal pauta de sua vida e de seu trabalho.

Com os colegas na pena Contos Negreiros do Brasil, em 2017

“Eu não sou tão preta assim”

Em 2017, Aline foi escalada para integrar o elenco da peça Contos Negreiros do Brasil, dirigida por Fernando Philbert e inspirada no livro homônimo de Marcelino Freire. O grupo era composto apenas por atores negros e ela não entendeu muito o convite. “Pensei: ‘Por que estão me chamando? Eu não sou tão preta assim’. Hoje eu não tenho dúvidas de que sou uma mulher preta, mas na época eu escutava muito esse questionamento”, diz. E, reproduzindo o discurso, quase recusou o convite. Acabou aceitando, incentivada pelo marido, o também ator Alex Nader. “Ele, sim, sempre me leu como uma mulher preta”, revela. 

“Num país racista como o brasil, a pessoa que não é branca, é preta. Mas a gente tem o entendimento de que preto é só quem tem a pele retinta, e assim muita gente se perde no caminho, deixa de se entender como uma pessoa preta”, analisa. “Quando entrei no espetáculo e vi aquele elenco todo muito conectado com a luta antirracista e que me recebeu tão bem, fui estudar, entender os reflexos do racismo na sociedade, na nossa cabeça”. 

Uma das primeiras missões dos atores escalados era escrever um monólogo sobre a própria vida, trazendo algumas de suas próprias histórias com o racismo. Aline, ainda confusa, pensou: “Ferrou. O que vou escrever?”, se ela não era exatamente preta, não poderia ter sofrido racismo. Mas quando chegou pegou papel e caneta, as memórias vieram – flashes de histórias ao longo da infância e da adolescência. Sim, ela tinha sofrido com o racismo, mesmo que não tivesse verbalizado. 

Com os quatro irmãos. Beto, o gêmeo, de camisa azul.

“Deram tapas na cabeça do meu irmão, chamaram ele de macaco”

Aline e o irmão gêmeo, Beto, são os caçulas de cinco filhos. Os dois sempre foram muito próximos, mas a diferença no tom de pele dos dois – a dela mais clara, a dele mais escura – foi reforçada pela família ao longo de toda a vida. “Crescemos numa família sem nenhuma consciência racial, em que não se conversava sobre racismo nos almoços, nos jantares. Ao mesmo tempo, todo mundo fazia comentários racistas contra o meu irmão, em tom de brincadeira, e para mim passavam pano, diziam: ‘Ela não é preta, é mais clarinha’” – falas como essa foram reproduzidas na peça, no monólogo escrito por Aline.

Entre os episódios que mais marcaram a relação da atriz com o irmão – e com o racismo – está uma volta da escola para casa, em Parada de Lucas, zona norte do Rio de Janeiro, quando os dois tinham por volta de 9 anos e uns garotos mais velhos começaram a importuná-los durante o trajeto. “Deram tapas na cabeça do meu irmão, charam ele de negão, de macaco, e eu lembro de me encolher inteira, baixar a cabeça, para não ser notada, e pensar: ainda em que eu não sou preta, porque se não eu estaria apanhando também’”. 

 Orgulhosa do cabelo trançado, que já ganhou diversas cores e texturas

“Antes, eu não conseguia ver beleza em mim”

Aline conta que aos 23 anos chegou muito perto de operar o nariz, a ideia era cortar as laterais para deixá-lo mais fino. “Ia ficar temeroso, eu ia me arrepender horrores, mas naquela época isso me incomodava, porque eu não fui ensinada a amar meu nariz, como minha mãe não foi ensinada a amar o nariz dela e até hoje preferia que fosse fino”.

“É muito injusto o que o racismo faz. Até os 40 anos, eu não tinha consciência nenhuma. Não conseguia ver beleza em mim”, conta. Agora, a atriz está resgatando a autoestima tão maltratada ao longo da vida. Começou a “juntar as pecinhas” e entender, por exemplo, que, ao longo de sua trajetória como atriz, era convidada para representar justamente papéis dentro do estereótipo de subserviência. Com a compreensão, passou a recusá-los. “Os personagens que chegavam eram todos pra fazer a empregada, a manicure, a mulher que era estuprada, e eu ia aceitando, porque não entendia. Quando entendi, falei: ‘Opa, aqui não’, e passei a negar personagens que tentam me colocar nessa caixinha de novo”. 

E, hoje, Aline se fortalece quando se vê inspirando outras mulheres. “Quando eu ouço uma mana preta dizendo ‘você me inspira’, ‘eu me vejo em você’, ou que não se lia como preta até me assistir em Contos Negreiros do Brasil, isso me fortalece, me mantém de pé, porque me faz entender que este processo não é sobre mim, é sobre nós”

Aline entre a mãe e a filha Nina 

“Minha filha vai se empoderar e se apropriar da sua coroa”

Nina, a filha de Aline com Alex Nader, tem 9 anos. Fruto de um casamento interracial, ela é uma mistura: “tem a pele branca, traços negróides e o cabelo parecido com o meu”, descreve a mãe. Mas, mesmo recebendo desde muito cedo uma educação antirracista, permeada por muito diálogo sobre diversidade, Nina manifesta algumas questões relacionadas à autoestima, por conta do nariz e do cabelo, conta Aline. “Isso também é reflexo de uma sociedade racista, que elegeu o cabelo liso, como referência de beleza. Mas felizmente esse padrão está caindo por terra. E a gente conversa muito com ela, então tenho certeza que essa fase vai passar logo. Ela vai se empoderar e se apropriar da sua coroa”, diz.

 Orgulhosa de seu cabelo volumoso. Foto divulgação: Marcio Farias

“Quanto mais volume meu cabelo tiver, mais me acho linda”

menina negra, Aline não aprendeu a cuidar do cabelo crespo – que passou a maior parte da vida alisando – ou a gostar do nariz, mais largo. Por isso, conta, sempre teve uma autoestima frágil: “Construí minha identidade a duras penas: alisava o cabelo pra caramba, queimava a cabeça, porque a química machucava. O racismo é tão cruel que faz com que as pessoas queiram fugir da sua negritude”, diz. Aline conta que essa fuga só acabou depois dos 40, quando entendeu sua identidade racial. 

Pouco antes de estrelar em Contos Negreiros do Brasil, Aline tinha parado de alisar o cabelo, à exemplo de outras mulheres crespas e cacheadas que começavam a fazer a transição capilar. “Quando eu entendi que era uma mulher negra e que é uma violência se render a um sistema que faz a gente querer se esconder, se machucar, tomei a decisão política de nunca mais alisar. E quanto mais volume meu cabelo tiver, mais eu me acho linda. Isso é uma enorme conquista”.

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