Dona Jacira: "Eu sou uma fagulha de esperança" - Mina
 
Suas Emoções / Entrevista

Dona Jacira: “Eu sou uma fagulha de esperança”

Sobrevivente de traumas causados por perdas e violências, Dona Jacira é também ensinamento. Tema de um documentário lançado em maio e que amplifica o sentido de ancestralidade, aqui, ela fala sobre seu jardim de cura, amor, família e também sobre as dores da infância, alcoolismo e depressão

Foto divulgação: Lana Pinho
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A escrita de vocabulário vasto, forte e preciso dá pistas sobre quem é Dona Jacira. Sua literatura passeia nas memórias da menina negra que convivia com três gerações de mulheres na Zona Norte de São Paulo. Era no quintal de sua mãe, Maria Aparecida, que ela observava as plantas e as formigas, em um ritual que celebrava, em silêncio, a vida. O jardim falava com ela. Aos cinco anos, a pequena Jacira teve a infância interrompida quando foi arrancada do quintal de casa para viver em um convento. Sofreu violências e voltou para casa seis meses depois, sem falar e nem andar. Tratou-se e sobreviveu àqueles traumas e aos tantos que vieram mais tarde.

Descobriu que desenhar era uma forma de se expressar que causava menos incômodos que a escrita. Driblou o racismo, ainda num tempo em que nem sabia o que era isso. Quando tinha 13 anos, saiu de casa para viver com seu companheiro, o Miguel, que queria ser DJ. Com ele, conheceu James Brown e teve quatro filhos: Katia, Katiane, Evandro (Fióti) e Leandro (Emicida).

“As pessoas diziam: ‘o mundo é dos homens’. Mas eu achava que o mundo tinha que ser de todo mundo”

Por um período, mergulhou na depressão e no alcoolismo, junto com Miguel. Era para esquecer da vida que levavam. Foi doméstica quando queria ser escritora. Separou-se. Voltou a estudar. Encontrou um novo amor, com quem dividiu a vida por 20 anos. Desenvolveu uma doença renal crônica, que a obriga a fazer hemodiálise de segunda a sábado, há 24 anos. Transformou esse tempo em estudo. Foi quando ganhou consciência sobre as relações raciais e o mecanismo perverso que move o racismo. Percebeu que, mesmo sem nomear, enfrentou e defendeu seus filhos do ódio racial.

Refez seu jardim. Resgatou o hábito de escrever e publicou “Café” (editora LiteraRUA). Dona Jacira, 57 anos, tem uma numerosa produção literária, com poesias, crônicas, histórias infantis e contos. Nessas obras escoa sua sabedoria, que agora pode ser conferida também no documentário Dona Jacira – O Legado. Produzido por Fioti e lançado em maio, pela Globo Play, o filme traz a potência dessa avó de seis netos, que voltou a escutar as plantas e se nutre de esperança.  

Dona Jacira, no documentário Dona Jacira – O Legado, um dos seus filhos lhe descreve como uma pessoa inquieta. A senhora se reconhece assim?
Sou inquieta. Mas eu não era. Comecei a ficar inquieta quando passei a entender que tinha uma coisa que negava as coisas que eu fazia. Quando eu era muito criança, nem tudo era claro para mim. Eu ficava ali observando as pessoas no meu quintal, observando o movimento da natureza, os tatus, as formigas, as folhas das árvores caindo, e eu não sabia para quê isso servia.

Um dia, saí do meu quintal para ser levada a esse convento, que foi uma das piores coisas que aconteceram na minha vida. Só pra você ter uma ideia, eu lembro da minha mãe arrastando aquela mala grande. Na minha cabeça eu queria ir para a escola, mas na escola não precisa levar uma mala tão grande. No dia em que eu saí do meu quintal parecia que as plantas iam murchando enquanto eu ia passando, e aquilo era uma despedida. Eu só tinha 5 anos e ali ficou minha infância.

Dona Jacira teve uma longa jornada até se consolidar como artista (Foto: Lana Pinho/Divulgação)

Essa infância interrompida pela ida ao convento marcou a sua vida para sempre?
Quando voltei para casa, voltei sem andar, sem falar, precisei de muito tempo para me curar. Fui cuidada pela minha bisavó, pela dona Maria Preta [amiga da família] e pela minha mãe. Elas não conseguiam entender o que aconteceu comigo naqueles seis meses. Levei um ano para me recuperar. Fiquei um tempo em estado de choque no hospital, toda vez que eu saía do choque e via uma freira, eu entrava em choque novamente. Quando eu já estava bem das pernas, fui até o quintal e quis ter aquele contato com a terra, com os insetos e com as plantas. Mas notei ali que eles não me respondiam mais, que eu não tinha mais aquele contato.

“A diretora começou a me tirar da sala de aula e me colocar para lavar as latrinas”

O que aconteceu no convento?
Lembro de algumas coisas, mas o universo me blindou de muitas outras. Eu não sei. Então, é por causa disso que mais tarde as inquietações vieram. Quando eu estava melhor, e não tive a comunicação do meu quintal, percebi que tinha crescido, eu cresci em seis meses. Até ali, a ideia que eu tinha de mundo era uma, a partir daquele momento, passou a ser outra. A minha inquietação vem disso: passei a ser uma criança desacreditada. Afinal, onde já se viu uma criança que vai para o convento, um lugar de pessoas tão santificadas, e não se dá bem ali? Mas as pessoas faziam caridade lá e não olhavam nos olhos da gente.

Como surgiu a sua relação com a escrita?
Minha relação com a escrita tem uma coisa maravilhosa. Eu não sabia que eu já escrevia. Quando fui para a escola, a professora se surpreendia, ela ia falar uma coisa e eu já escrevia, ela ia falar outra coisa e eu já escrevia. Um dia ela se emocionou porque foi mostrar aquele negócio do feijão no algodão e eu descrevi o que ia acontecer. Foi nesse dia que ela me levou na diretoria e falou que eu deveria passar para o segundo ano porque eu sabia muito. Mas essa diretora olhava para a professora e passava o dedo da mão assim, sabe? [fazendo referência à cor da pele no dorso da mão]. Só estudando a diáspora 40 anos depois que eu fui saber que a dona Cecília estava dizendo:  “ela é negra”.

No dia seguinte, a diretora começou a me tirar da sala de aula e me colocar para lavar as latrinas. Eu chegava na escola e ela falava para a professora: “cadê a menininha?”. Eu levantava, ela me pegava pela mãozinha, me dava vassoura e me mandava lavar o banheiro. Eram dois banheiros. Para mim, era uma coisa comum que a gente fazia em casa. Não que eu gostasse, mas eu também não tinha como reclamar em casa.

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A percepção de que era um racismo veio bem depois?
Foi. Eu tive essa percepção quando comecei a estudar a diáspora. Em nenhum momento eu achei que aquela mulher estivesse colocando toda a maldade dela em cima de mim. Com o tempo, isso foi ficando mais claro. Passei para o segundo ano, passei para o terceiro ano e algumas professoras rasgavam o que eu escrevia. Algumas, inclusive, me acusavam de ter roubado aquele texto de alguém, porque eu escrevia  com começo, meio e fim. 

A senhora gostava de ler quando criança?
Eu não tive acesso a livros. Como a minha bisavó vinha muito em casa, ela me deixava ler a Bíblia dela. Li a Gênesis e o Êxodo todinhos. Mas ela não me deixou ler mais porque quando chegou naquela questão das pragas dos gafanhotos, eu falei que achava que não era uma praga de Deus, que era porque os passarinhos tinham comido os gafanhotos, né? E ela me tomou a Bíblia e disse: “você não vai ler mais não, não estou mandando você interpretar nada”. [risos].

Então essa aptidão pela escrita é inata?
Sim. Mas não foi fácil. Toda vez que eu escrevia, alguém criava um problema e me castigava. Eu acabava apanhando. Fui vendo que escrever não pode. Então eu fui deixando de escrever e passei a desenhar.

É aí que entra a arte na sua vida?
Sim. Como não sabiam interpretar, desenhar era mais suave para mim.

“Minha avó era branca, minha bisavó era loira. A gente sentia a diferença entre nós e uma prima branca”

Na sua história e na de muitas pessoas negras, o racismo aparece na infância, na escola, lugar e tempo que deveriam ser de proteção. É possível a gente ensinar as crianças a se protegerem do racismo ainda pequenas? 
Olha, eu acho difícil por causa das estruturas. Eu não entendia muito o que era estrutura, tive que entender o que é o racismo estrutural para entender que eu passei por tudo isso, porque eu achava que era uma educação comum. Ali, eu não achava que me colocar para lavar banheiro ou não me deixar escrever era racismo. Eu não tinha sequer como explicar.

A minha avó era branca, minha bisavó era loira. A gente sentia a diferença entre nós e uma prima branca. Essa estrutura também estava dentro de casa. Então, como eu poderia falar em casa que passava por essas questões na escola se eu também as sentia ali dentro? Quando meus filhos foram para a escola, eu tinha medo de como eles seriam recebidos. Então, cada vez que houve um ato de racismo contra eles, eu fui até lá. Acho que eu fui uma das mães que mais visitou as delegacias de ensino por causa disso, por conta de maus tratos.  

Eu também tinha que tomar cuidado com o retorno deles para casa porque, dentro da minha família, tem pessoas que dizem: “seja negro, mas não aja como negro. Ser negro não é bom”. Então, não é só a questão da violência na igreja ou a violência na escola, ou a violência da vizinhança. Existe a violência familiar também. Hoje em dia, dentro de casa, com as minhas netas, se acontece de alguma pessoa mais velha falar algo do cabelo delas, agora, com consciência, corto a pessoa na hora. Principalmente sobre cabelo. Cabelo não é para os outros tomarem conta, eu posso cortar, posso tingir, posso fazer o que eu quiser. O cabelo do outro é para ser respeitado. Muitas vezes, quando acontece isso, você passa a não ser mais convidado para as festas, né? “Vai estragar o almoço”, como as pessoas dizem. Não, não pode. Nem entre família.

Quando a senhora reage diante dos netos, é uma forma de ensinar, não é?
É. Eu não sei te dizer qual é a solução, pois a minha vontade é não sair de casa porque, se sair, a todo o momento você está sendo agulhado pelo racismo, pelo machismo, e tem hora que é cansativo se defender o tempo inteiro. Dentro da minha casa eu sentia muito essa rejeição. Eu queria morrer. Eu não sabia o que era não ser aceita, mas eu já sentia que eu não era aceita em lugar nenhum. Eu queria morrer, eu não queria ficar mais aqui. Quase não existiam pessoas com quem eu pudesse me comunicar.

“No mundo em que eu já não me sentia mais útil pra nada, quando tive a primeira filha, foi uma injeção de força”

Como foi a sua relação com Miguel, seu primeiro companheiro, aos 13 anos, pai dos seus filhos?
Toda relação a princípio é amorosa e depois passa por dificuldade. Conviver com outras pessoas não é fácil. O Miguel, pai dos meninos, tinha essa vontade de ser DJ, sem isso, ele foi ficando frustrado. Com o Miguel conheci vários artistas, como James Brown, Marvin Gaye e isso me deu esperança. Essas músicas não tocavam no rádio da casa da minha mãe. Foi uma grande chegada, uma grande descoberta que a vitrolinha do Miguel trouxe. Mas nós fomos morar em um lugar que não tinha eletricidade e não tinha como ouvir os discos, e ele foi caindo. Teve que trabalhar de outras coisas. Isso fez com que ele se tornasse alcoólatra, por conta do desânimo de não fazer os bailes. Eu assisti ele fazendo caixa acústica, comprava o madeirite na Santa Efigênia, comprava os alto falantes, mas depois eu também vi o grande desânimo que assolou nele, e eu não podia ajudar porque não entendia nada de música. Hoje, consigo entender o que aconteceu, e eu queria que ele se empregasse. Então, no tempo que ele ficava em algum emprego, ele ficava bem comigo mas ficava mal com ele. Só percebi isso quando eu também deixei de escrever, deixei de fazer tudo o que eu queria para ser empregada doméstica, que era uma coisa que eu odiava. Aí, veio junto o meu alcoolismo, para esquecer que a única coisa que eu conseguia fazer era prestar serviço na casa de alguém. Foi quando consegui entender o que levou o Miguel à ruína. O Miguel queria ser DJ e eu queria escrever.

Como a senhora lidou com seu alcoolismo?
Saí do alcoolismo quando resolvi voltar a estudar. Fiz enfermagem, fui trabalhar, conheci o Eduardo, que foi meu segundo marido. Ele era uma pessoa branca e toda família dele se afastou quando começamos a namorar. O próprio Eduardo se sentia culpado por ter encontrado uma mulher negra com quatro filhos negros para se unir. Foi muito difícil a vida dele. Nós vivemos 20 anos juntos e o ele foi ficando cada vez mais doente. Não conseguia estar totalmente na relação, já que toda a família o abandonou, menos uma irmã, casada com uma pessoa negra. Ao mesmo tempo, ele não conseguia se separar. Eu acredito que isso foi uma das maiores causas da patologia no fígado que ele teve. Ficou com câncer de fígado e acabou morrendo por causa disso.

Dona Jacira entre as duas filhas Katia e Katiane (Foto: Lana Pinho/Divulgação)

Falando um pouco sobre a maternidade das meninas: no filme, a senhora diz que o nascimento da primeira filha foi um momento muito importante de mudança de perspectiva. Por que?
Foi. No mundo em que eu já não me sentia mais útil para mais nada, quando eu tive a primeira filha, tive uma injeção de força em mim. Eu precisava ficar viva, porque ela passaria aquelas coisas que eu estava passando. Foi uma grande força e amor muito grande que nasceu em mim quando eu tive tanto a Kátia como a Katiane. Elas colocaram em mim essa força. Eu já havia entendido que alguma coisa tentava me puxar pra baixo e que era muito importante que eu recebesse essa ideia de ser mãe. Naquela época, eu ouvia a todo o tempo que mulheres sofrem, que não deveria nascer mais mulher, que era ruim. Eram anos muito violentos. Nós fomos sobreviventes.

A senhora ainda não tinha uma consciência feminista negra, né? Do machismo e do racismo sobrepostos.
Eu não era consciente, mas as pessoas diziam que “o mundo é assim, o mundo é dos homens” e eu achava que o mundo tem que ser de todo mundo.  Nessa época eu já havia abandonado a igreja e estava no movimento político. Mas mesmo dentro da política não havia discussão de violência, havia discussão por terra, por direitos e deveres, mas nunca sobre essa violência doméstica. Demorou muito para que a gente começasse a falar desses assuntos.

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A senhora fala do seu quintal como um lugar de cura, certo?
Sim, do escalda pé ao chazinho, ao meu xarope, a minha canja, eu só tenho certeza que é assim, é para dentro, ficar aqui e me recolher. No quintal da minha mãe tinha um abacateiro, uma mangueira, um cajueiro e uma goiabeira. Um dia a minha mãe cortou tudo, encheu de cimento e fez casas para alugar. Eu também vivi aquilo, achei que ter planta era ruim. Foi preciso muito tempo para me trazer de volta ao mundo do quintal. Só aconteceu quando fiquei doente e perdi a função renal e fui fazer um curso no Hospital das Clínicas sobre alimentação. Vi que precisava comer verdura, e me perguntei: como foi que a verdura sumiu mesmo da minha mesa? Comprei um pé de manjericão, porque adoro o cheiro, e aquilo foi me reconectando. Logo que eu comecei a fazer hemodiálise, quando fiquei renal crônica, a primeira coisa que eu tive foi tuberculose. Compreendi que todas essas coisas se corrigem com a alimentação. Fiz um curso e fui trabalhar a terra. Aí foi voltando aquela minha condição de quando tinha 5 anos e sabia reconhecer o que era um pé de feijão. Foi nesse tempo que reconheci o que aconteceu comigo lá atrás, quando voltei do convento e fui falar com meu jardim e ele não me respondia mais. Descobri que eu havia crescido e que isso foi muito rápido por causa da violência. Mas eu também descobri que a minha criança continua comigo. Então era preciso buscar a cura dessa criança, essa criança que vê esperança nas coisas por mais que as coisas estejam ruins. Eu tenho uma criança que me salva.  E não pertenço a essa falange de pessoas que guardam ódio, eu sou, sim, uma fagulha de esperança, e isso está na comida, está na forma de plantar, está no meu quintal.

A senhora faz hemodiálise de segunda a sábado, há 24 anos. Como leva essa necessidade? É muito duro?
Olha, é até duro, mas é a única possibilidade de continuar viva, de poder estudar. Eu ocupo esse tempo com estudo. Essa é a parte boa.

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