O sucesso individual é desproporcionalmente valorizado na nossa sociedade, minguando a força do coletivo no nosso dia a dia. Já reparou? Esse desequilíbrio entre o “eu” e o “nós” tem como sintomas dificuldades de comunicação, competição a todo momento, desigualdade social, depressão, violências, emergência climática, entre outros. Mas não precisa ser assim. Se olharmos para as comunidades indígenas, onde grande parte das atividades é compartilhada, podemos aprender alguns valores para uma melhor convivência comunitária.
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“A coletividade, trazida de geração em geração, é de grande importância para os indígenas. Não estamos acostumados a viver sozinhos”, conta o educador indígena Raimundo Kambeba, da comunidade Três Unidos, de Manaus (AM). A socióloga indígena Avelin Buniacá Kambiwá, da aldeia Baixa da Alexandra, no alto sertão de Pernambuco, que atualmente mora em Belo Horizonte (MG), completa: “A crescente do capitalismo faz com que a noção de exploração tenha aumentado nas comunidades, o que é um desafio grande, mas temos muito a ensinar sobre compartilhar. Ainda mantemos o sentimento de bem viver”. Abaixo, os especialistas refletem sobre como construir um futuro mais coletivo.
1. Valorizar a identidade cultural
Ter consciência sobre a sua cultura e valorizá-la ajuda a criar um sentimento de pertencimento. “Sabemos viver em comunidade porque sabemos que somos indígenas”, resume Raimundo Kambeba. Eles encaram os diferentes saberes como complementares: juntos fortalecem a identidade de todo o povo. Parteira, caçador, liderança, professor, ancião, criança… Todos são igualmente valorizados e ouvidos. Para o educador, os não-indígenas, ao negligenciar a sua origem, se perdem e trilham um caminho competitivo, no qual tentam ser melhor do que os outros.
2. Ajudar o próximo
Avelin Kambiwá explica que o corpo indígena é coletivo: quando dói em um, os demais também sentem. Um de seus princípios éticos é o de que ajudar o próximo é ajudar a si mesmo. Esse conceito afasta qualquer tipo de indiferença, estimulando a ação pela empatia. “Nós nos entendemos enquanto parentes. Essa relação de parentela dizima toda a apatia, porque eu não posso ver um familiar passando necessidade e não fazer nada”, completa. Aqui vai um exemplo prático: para que a comunidade Três Unidos não perdesse ninguém para o coronavírus, durante o período de isolamento social da pandemia, os que estavam bem preparavam remédios e comida aos enfermos, conta Raimundo.
“A mentalidade indígena é mais flexível por viver de forma coletiva”
3. Estimular a confiança
“Os povos indígenas confiam um no outro. Pensamos assim: o que está aqui é nosso, a terra, o peixe…”, explica o educador. A noção de que tudo na comunidade é de todos inspira a responsabilidade coletiva pelos pertences na aldeia. “Se alguém perde alguma coisa, pode voltar que vai estar lá ou guardado com o tuxaua [liderança]. Aprendemos isso desde criança.” Diferente da sociedade não-indígena, o outro não é uma ameaça e, sim, um semelhante. “Quando um parente nos causa dano, isso é uma exceção. Nós ficamos surpresos, porque não esperamos nenhum dano dele. A regra é a confiança”, completa Avelin.
4. Viver sem muros
Uma grande expressão dessa confiança são as grandes casas coletivas ou casas menores sem separação por muros, reforçando o conceito de que tudo é de todos. Entre os Kambeba, essa cultura segue forte, explica Raimundo: “nosso quintal não tem grades. Cada um valoriza a área do outro, todo mundo cuida. Criações de animais e roçados são próximas umas das outras. Um usa a canoa do outro para pescar… Isso é viver de forma coletiva”. Outro exemplo desse envolvimento são os mutirões: reunidos, os membros da comunidade constroem casas, limpam áreas comuns e organizam festas.
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5. Ser um bom vizinho
As comunidades indígenas são a prova de que é possível ter – e ser – um bom vizinho. É difícil alguém ouvir música alta em um nível que incomode ou brigas tarde da noite nos territórios. Há mais bom senso e respeito ao semelhante, justificado pela proximidade entre as pessoas e o compartilhamento de atividades. “Não vou ouvir música alta depois das 21h, porque o parente vai trabalhar cedo amanhã e eu também”, exemplifica Raimundo. “Quando fazemos uma festa, ninguém vai ser perturbado porque todos vão participar”, arremata, acrescentando que o fim da celebração costuma ser decidido – e respeitado – por todos.
“Levar as decisões ao público é uma forma de evitar que haja qualquer tipo de má intenção”
6. Se comunicar de forma pacífica
Os indígenas usam tons de fala mais tranquilos e moderados, evitando uma comunicação baseada no autoritarismo. “Não gritamos uns com os outros. Nem com as crianças”, diz Avelin. “Falamos com força, com impostação, com segurança… Dialogar com firmeza, brigar pelos nossos direitos, sim, mas sem entrar numa condição mental de desespero”, completa. Raimundo acrescenta que, desde cedo, eles aprendem a conversar sem usar expressões fortes, ouvindo e entendendo a opinião dos demais. “A nossa mentalidade é mais flexível por viver de forma coletiva. Não precisa brigar ou discutir para chegar à melhor opinião. Um ensina o outro, sem discórdia, incentivando a melhorar.”
7. Compartilhar cuidados em redes
Não apenas a família e a escola são as responsáveis pela educação dos indígenas. “É preciso de toda uma aldeia para educar uma criança. Esse é um ditado popular que aplicamos na prática”, cita Avelin. A rede de apoio às mães é grande: tios, tias, avôs, avós, primos, primas… Todo mundo ajuda a criar os pequenos, responsabilizando-se por eles. A educação compartilhada permite ainda que os pequenos brinquem livremente pelo território, conquistando autonomia e confiança desde cedo, algo que, lá na frente, só tem a agregar. “É uma educação coletiva e libertadora. A criança aprende nadando no rio, tratando peixe, lavando uma vasilha…”, elenca Raimundo.
“Sermos um corpo coletivo não quer dizer que a nossa personalidade está dissolvida”
8. Tomar decisões coletivas
Entre os indígenas, as questões são discutidas em assembleias e conselhos que buscam dar voz a todos. O papel do tuxaua ou do cacique não é o de tomar as decisões e impor que os demais as cumpram. A liderança maior da aldeia tem como missão escutar e mediar os diferentes posicionamentos para que todos possam decidir da melhor forma. “Ele indica alternativas para que ninguém deixe de ser contemplado pelo seu modo de ser. E a decisão final sempre passa pela aprovação da comunidade”, explica Raimundo. Para Avelin, esses espaços coletivos de decisão ensinam sobre uma democracia que é muito mais sofisticada do que a democracia não-indígena. “Levar as conversas e as decisões ao público é uma forma de evitar que haja qualquer tipo de má intenção”, diz.
9. Praticar a cidadania
Nada de ativismo de sofá por aqui. Nas assembleias, eles estudam seus direitos e traçam estratégias de luta, inclusive para o movimento indígena nacional. “Nas assembléias gerais, grandes eventos com parentes de outras regiões e povos, partilhando saberes ancestrais, nos sentindo ainda mais fortalecidos espiritualmente e fisicamente para lutar”, menciona Raimundo. Avelin acrescenta que essa formação cidadã os prepara para enfrentar o mundo fora das aldeias. “Empoderados dessa voz, dessa democracia real, a possibilidade de sermos silenciados em uma assembleia não-indígena é muito menor.”
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10. Se conhecer para conviver
Se a identidade individual se dilui em meio a toda essa coletividade? Que nada! “O fato de sermos um corpo coletivo não quer dizer que a nossa personalidade está dissolvida”, garante Avelin. “O indígena não é um ser genérico, cada um tem sua individualidade, inclusive nossos nomes têm muito a ver com as diferentes personalidades, a força que cada um traz para o mundo”. A diferença é que, entre eles, a unicidade de cada pessoa não está acima do bem coletivo, mas, sim, a seu serviço. O autoconhecimento profundo e o respeito às diferenças para a boa convivência em comunidade, destaca a socióloga.