Os problemas das inovações tecnológicas atuais - Mina
 
Seu Trabalho / Reportagem

Será que precisamos mesmo de tantas inovações tecnológicas?

Chat GPT, metaverso, morar em outro planeta... São bilhões investidos em tecnologias não-urgentes, o que tem se refletido em crise financeira. Para Maíra Blasi, se o foco estivesse nos problemas que realmente existem, seria melhor para todo mundo

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As demissões em massa (layoffs) que estão acontecendo em muitas empresas, principalmente as de tecnologia, estão gerando questionamentos e indignação por parte de trabalhadores, o que tem levantado inúmeras justificativas para esse fenômeno. A maior parte das empresas alega que o mundo está em crise e, por isso, os investimentos diminuíram, mas, neste texto, quero levantar outra hipótese para além da crise: será que a gente não está apostando dinheiro demais em tecnologias não-urgentes? 

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Chamo de tecnologias não-urgentes a famosa inovação pela inovação, produtos e serviços que criam necessidades que antes eram inexistentes e não propõe nenhum tipo de solução para problemas já conhecidos. Vários problemas educacionais, gente passando fome, limitação de comunicação por falta de fluência em um idioma (quando já existe tecnologia de tradução simultânea), Amazônia derretendo…. E tem gente preocupada em morar em outro planeta, criar um metaverso, vender NFT, sendo que aqui no hoje a gente mal se resolveu. Isso me deixa inquieta.

Pessoas passando fome e tem gente preocupada em morar em outro planeta

Fora isso tudo, li em uma rede social esses dias pessoas dizendo que a “parte ruim” desse processo é que a verba de pesquisa vai diminuir até as coisas estabilizarem. O que, para mim, só confirma como nosso conceito de inovação está distorcido. Não seria justamente num momento de recessão que a inovação se faria mais necessária e urgente? Não seria justamente agora que precisaríamos pensar em alternativas inovadoras para resolver nossos problemas?

A solução me parece explícita: mudar (ou, como adoram dizer no mundo corporativo: pivotar) o foco da inovação. Muito se fala de foco em pessoas, mas o que mais vejo é empresa que tem “foco no cliente” escrito na parede, mas, aparentemente, na hora de tomar decisões do dia a dia, a prioridade, na verdade, é a ordem da cabeça da diretoria. Colocar a inovação a serviço das pessoas significa, em primeiro lugar, ser mais responsável com o impacto ambiental da aceleração tecnológica. Cada modelo de IA que é implementado gera aproximadamente 284 toneladas de dióxido de carbono, então será que vale a pena mesmo demitir dezenas de pessoas para “apostar” em chat GPT? Qual é o verdadeiro valor de iniciativas que agravam as crises ambiental e financeira em troca de uma promessa vaga de futuro cibernético?

Algumas coisas tem a ver com simplesmente garantir a sobrevivência humana 

E é uma promessa vaga porque, na verdade, pouquíssima gente tem acesso aos benefícios dos avanços tecnológicos, eles continuam sendo muito caros e nem sempre estão disponíveis em todos os territórios porque dependem de infraestrutura. Enquanto isso, muita gente é prejudicada com a competição predatória – em 2019, Apple, Google, Microsoft e Tesla foram citadas em um processo de famílias do Congo cujas crianças morreram ou se feriram minando o cobalto que seria utilizado em seus produtos. A relação entre custo e benefício fica cada vez mais desproporcional e o planeta pode até sobreviver, como sobreviveu a outros eventos extremos, mas a humanidade não vai muito longe nesse ritmo. 

Tecnologias que precisam de investimento

Mas nem tudo está perdido, porque  existem, sim, propostas objetivas: modelos de Saneamento 4.0, como o que a Sabesp começou a implementar em 2021, podem contribuir para diminuir o abismo de desigualdade no qual vivemos, através da automação de processos para monitorar qualidade da água e promover um controle eficaz da disponibilidade e distribuição. Coletando e cruzando dados de consumo, a inteligência artificial aprende a correlação entre eventos da cadeia de tratamento de esgoto, por exemplo, e detecta irregularidades. Essa economia de tempo e recursos permite que o foco passe a ser ampliar a estrutura – levar água potável para mais da metade da população brasileira que ainda não tem acesso a esse direito tão básico. 

E tem mais: Em alguns países da África, sistemas de pagamentos móveis estão sendo utilizados para financiar kits de painéis solares com parcelas que custam menos do que as pessoas gastam semanalmente em querosene. Depois de quitado, garante eletricidade gratuita. A IFRC (rede humanitária global da qual a Cruz Vermelha faz parte) está estudando a utilização de sistemas biométricos em quiosques que funcionam com energia solar e podem ser utilizados por refugiados para recuperar documentos. 

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Por fim, as tecnologias para geração de hidrogênio verde podem descarbonizar a indústria pesada e ajudar a reverter a crise climática, produzindo calor suficiente para os maiores processos industriais sem emitir gases de efeito estufa. E essa é apenas uma das incontáveis soluções que podem ser usadas na resposta a crises humanitárias. Cadê os investimentos nelas? 

A inovação nunca foi tão necessária e quem tem mais recursos é que deveria estar mais preparado para reverter adversidades, ter mais facilidade para recalcular a rota e investir onde realmente estamos precisando como sociedade. Parece que o que falta, na verdade, é colocar foco em mudar a situação e priorizar esse tipo de iniciativa. Nem tudo deveria ser sobre bilhões de reais, algumas coisas tem a ver com simplesmente garantir a sobrevivência humana e isso já deveria ser considerado grande e importante o suficiente. 

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