Durante quatro anos a psicanalista e escritora Camila Voluptas sofreu abusos físicos do companheiro e, ao buscar ajuda e acolhimento na igreja, ouviu que “homem era assim”, mas que “Deus iria mudá-lo”. Não foi bem o que aconteceu. As agressões e outras atitudes opressoras do marido continuaram, as saúdes física e mental de Camila se deterioraram e ela desenvolveu TOC (transtorno obsessivo compulsivo).
Foram anos sendo anulada dentro da entidade evangélica que, então, ofereceu uma nova ajuda: iria montar uma espécie de tribunal, com pastores e outros homens, julgando se o divórcio era certo ou não. O veredito? “Me disseram que o que Deus uniu, o homem não separa – e a gente teria que ressignificar nossa relação”.
Sem forças para permanecer dentro do casamento, a psicanalista seguiu um caminho ainda mais difícil: decidiu deixar sua igreja e ir a uma delegacia para denunciar o marido.
Um outro caminho
Sair de uma igreja ou de ambientes religiosos pode ser extremamente complicado e traumatizante, mas é importante perceber quando determinado lugar não está mais nos preenchendo ou que alguns limites foram ultrapassados. “Líderes religiosos são pessoas humanas como quaisquer outras. Não os coloque em posição superior (nem inferior) a você. Todo ser humano deve ser tratado com respeito. A dignidade humana deve ser preservada e promovida, independentemente do sexo, raça, cor ou crença”, diz Mary Rute Gomes, pós-doutora em Psicologia da Religião pela Indiana University South Bend (EUA).
Igrejas e seus líderes precisam tratar a saúde mental sem que ela seja mais um tabu
Embora a religião seja uma fonte de consolo e orientação espiritual para muitos, é essencial reconhecer que a prática da fé não deve, em hipótese alguma, ser uma desculpa para a opressão das mulheres. “Além disso, as próprias igrejas e seus líderes precisam saber tratar a saúde mental sem que ela seja mais um tabu”, diz Mary.
Processos de “cura” e culpabilização
Infelizmente, algumas vertentes ainda perpetuam ideias e práticas que subjugam o público feminino, negando-lhes sua autonomia e dignidade. Foi o caso de igrejas protestantes frequentadas por um bom tempo pela carioca e especialista veicular Juliana Reis, de 32 anos. Ali, ela não podia se assumir lésbica e passou por “processos de cura” e negação. “Foram anos da minha vida me anulando por ter aprendido desde nova que ser lesbica era pecado e contra as leis de Deus.”
Diante dessas situações, consideradas machistas e desrespeitosas por ela, Juliana decidiu não seguir mais nos cultos. A paulista Sônia L.* fez o mesmo após sofrer muita culpabilização por parte de sua igreja: “Engravidei antes do casamento e meu companheiro, que também era da igreja, me abandonou. Ele foi um pai ausente por muitos anos, mas me diziam que, se um dia Deus permitisse, eu seria feliz. Porque pra eles eu que tinha cometido o erro de engravidar, né?”. Foram muitos anos de terapia.
Nem sempre é preciso abandonar sua crença, mas, sim, rever caminhos
Para identificar comportamentos abusivos e errôneos por parte das entidades religiosas, é fundamental estar atento a sinais como manipulação, coerção, discriminação ou qualquer forma de violência verbal, emocional ou física.
Isso ainda faz sentido?
O primeiro passo para reconhecer essas posturas é questionar-se: “Esse momento que estou vivendo faz sentido para mim?”. Não necessariamente é preciso abandonar sua crença, mas, sim, rever alguns pontos e caminhos.
“Quando essa religiosidade é forte, possibilita uma presença crítica na religião; quando ela é débil, gera uma presença que delega a responsabilidade existencial para a religião, sem crítica”, diz Ênio Brito Pinto, psicólogo e doutor em ciência da religião pela PUC de São Paulo.
Segundo o especialista, no Brasil, a maioria das pessoas é educada para a obediência cega, não para a obediência crítica. “Coloque-se em posição de alguém que se mostra aberto a receber orientação espiritual, mas, ao mesmo tempo, não abre mão de sua autonomia e de sua capacidade de reflexão crítica”, reforça Mary.
Elas têm outras visões sobre Deus
O processo de deixar suas igrejas – e não necessariamente a religião – foi algo difícil para Camila, Juliana e Sônia, mas elas dizem que hoje têm uma vida mais feliz. Camila conta que ressignificou sua crença no divino e enxerga Deus de várias formas, e não somente na figura apresentada pelas igrejas. “Antes só ouvia Deus por meio da boca de um homem. Hoje, vejo Deus na natureza e em várias coisas”, diz.
“Preste atenção se as mulheres da sua igreja têm liberdade para se expressar e se transmitem alegria”
Juliana está casada e segue completa com sua companheira, mas faz um alerta: “Acho importante que instituições religiosas existam, mas também que elas andem de acordo com a lei. Se homofobia é crime, não pode haver um espaço onde isso seja legitimado por um livro. As instituições religiosas deveriam ser apenas um espaço de encontro, sem imposições”, diz.
Sônia deixou de frequentar por algum tempo a igreja em que estava, mas foi acolhida por outra “que não emite comportamentos julgadores”, segundo ela. E diz: “Prestem atenção nas mulheres que frequentam a sua igreja, se elas têm liberdade para falar, se elas têm liberdade para se expressar, se elas são mulheres que transmitem alegria”.