Escolhi não menstruar (e não sou menos mulher por isso) - Mina
 
Seu Corpo / Reportagem

Escolhi não menstruar (e não sou menos mulher por isso)

A menstruação é um processo natural do corpo e tem sido efusivamente celebrada por alguns grupos, mas nem todas conseguem ter uma relação bonita com seu fluxo. Fomos entender os motivos e trazemos um abraço: "maior poder é justamente decidir o que é melhor para você sem pensar nos outros"

Por:
9 minutos |

Eu tinha 15 anos (essa idade tão tensa para a afirmação de quem a gente é e das nossas relações ao redor) quando, numa festa junina, manchei toda a calça jeans de sangue. Minha menstruação ainda não era regular e eu também não tinha o hábito de carregar absorventes. Levantei da arquibancada sem saber o que fazer. Tirei a camisa xadrez que usava sobre uma regata, amarrei na cintura e pedi socorro às amigas. Sorte que uma morava perto e pediu para a família me levar uma calça limpa e um absorvente. Desde então, muitos episódios semelhantes a esse se repetiram – mesmo eu já estando familiarizada com a menstruação

+ Leia também: 6 benefícios da masturbação
+ Leia também: Por que decidi tirar meu silicone

Já manchei vestido em casamento, cadeira no trabalho, pijamas mil. Mas o que sempre me incomodou, de verdade, era a mudança que aquele processo causava no meu humor. Brigava com meu pai (mais tarde passou a ser com meu namorado), chorava até com comercial de TV, ficava superansiosa e me achando feia. Quando tinha 20 e poucos anos, a ginecologista chegou a me receitar um ansiolítico para os dias de TPM. Tomei por um tempo, depois parei. Sentia culpa por tentar controlar algo que todo mundo falava que era natural às mulheres. 

“A verdade é que não amo menstruação – e talvez nunca irei me acostumar”

O tempo me ajudou a entender melhor meu corpo e a me acostumar. Agora, já sei exatamente por que estou autocrítica ou para baixo em alguns dias. Tento me acolher da melhor forma, mas a verdade é que não amo menstruar – e talvez nunca vá me acostumar. Inclusive, emendo ciclos do anel vaginal (que uso para controlar a anemia que o fluxo intenso me causa) e menstruo só a cada 2 meses. Conto isso para a infelicidade da minha psicóloga, que já tentou dizer que eu rechaçava o contato com o meu feminino e com a força que vinha daquilo. Esse tipo de comentário, aliás, exclui totalmente as mulheres trans e deixa culpadas muitas mulheres cis que decidem reduzir a frequência ou interromper completamente a menstruação. E preciso dizer, eu não estou sozinha aqui. 

Fluxo intenso e muitas cólicas

Lana Ohtani, 26 anos, já passou por esse conflito. Sua relação com o ciclo menstrual nunca foi positiva. “A minha vida foi marcada por cólicas e sangue. Menstruação sempre foi uma coisa penosa e isso me enlouquecia. Não era normal”, relata. Em 2016, mesmo tomando pílula anticoncepcional, que costuma reduzir mudanças hormonais relativas à ovulação, viu a sua TPM ficar mais intensa. O grande desconforto a levou ao médico, que fez o diagnóstico: estava com miomas no útero. Lana então passou por quatro histeroscopias – um tipo de raspagem do útero que exige anestesia raquidiana para removê-los. “Mas não resolveu. Eu tirava e eles logo voltavam”, conta.

Enquanto lidava com essa condição rara em mulheres jovens, tentava fazer as pazes com seu ciclo. A vontade de entrar em sintonia com a menstruação era enorme. Estimulada por postagens que falavam da filosofia do sagrado feminino – que se popularizou na internet, estimulando, entre outras coisas, uma relação mais natural com a menstruação – deixou a pílula de lado e comprou o copinho coletor para substituir o absorvente. “Achava bonita essa conexão que via em outras mulheres”, confessa. “Porém, simplesmente não pude transpor a barreira e começar a amar tudo isso”. 

Para mim, o feminino é um território vasto demais, com cenários diversos e habitantes singulares, não precisamos resumi-lo à menstruação. “Não é que eu não queira menstruar. O que eu não quero é tudo que vem junto, como a enxaqueca e a dor no corpo”, admite Lana, que vê uma certa romantização de um cenário que é tão complexo e individual. Digamos que o sagrado feminino como foi posto para ela, pareceu pouco acolhedor com as diferenças de cada corpo.

Pílula contínua

Não menstruar ainda é um tabu – sim, em 2022. Aliás, a menstruação como um todo segue sendo um tema velado – a discussão recente sobre a pobreza menstrual que o diga. Sem informação e com poucos debates, fica difícil para cada mulher entender como lidar com o assunto. É comum, por exemplo, as meninas ouvirem de ginecologistas, assim que passam pela menarca, que está na hora de começar a tomar pílula anticoncepcional para controlar os efeitos dos hormônios na pele e nos cabelos. A ginecologista Kátia Moitta, especialista em modulação hormonal, defende que isso não é o mais recomendado. “Ela só deve ser administrada 2 a 3 anos depois da primeira menstruação, assim esperamos o desenvolvimento do eixo hormonal e fica melhor de entender como o corpo se comporta em seus ciclos”, explica.

Por outro lado, ela derruba mitos sobre a contracepção continuada fazer mal ao corpo ou provocar redução de fertilidade. “Não há estudos que mostrem isso e nem é assim que se define a chance de uma gravidez”, garante. Kátia ressalta que, de todo modo, uma avaliação geral deve ser feita regularmente, afinal, nada é definitivo quando se trata do corpo humano. “A vida é cíclica. Existem gatilhos físicos, emocionais e ambientais que modificam nosso sistema – usando ou não o anticoncepcional. Cada mulher deve ser acompanhada e tratada de forma individualizada”, diz. 

“Não queria voltar ao inferno que era meu período menstrual”

Em alguns casos, com base no histórico familiar, é recomendado que seja feita uma bateria de exames a fim de identificar riscos de alteração de coagulação, reações a outros medicamentos tomados e até uma possível endometriose para iniciar ou prosseguir com a pílula. Clara Novais, 30 anos, fez um estudo aprofundado após descobrir que parentes próximos tinham trombofilia hereditária, ou seja, risco aumentado de trombose. O resultado deu positivo. Sua ginecologista então optou por trocar a pílula combinada, que incluía também estrogênio, por uma só de progesterona, que tem chances mais baixas de causar coagulação. “Fiquei muito feliz quando descobri que essa era de uso contínuo (interrompendo a menstruação), como a minha anterior, porque não queria voltar ao inferno que era meu período menstrual”, conta.

Clara começou a menstruar aos 14 anos e tinha tanta cólica que chegou a perder aula para ficar de cama. Incomodada com sintomas como inflamações na pele e TPM, começou a tomar pílula aos 18 – e se adaptou bem. No entanto, aos 27, estimulada por amigas que sentiram melhorias na libido e no emocional após cortar o anticoncepcional, decidiu fazer o mesmo para ver como o corpo reagia. “Foi péssimo”, desabafa. As inflamações na pele voltaram, as cólicas pioraram, o fluxo intenso retornou e, o pior de tudo, o emocional ficou em frangalhos. Clara enfrentava uma depressão e sentia a tristeza e a ansiedade serem potencializadas nos dias de TPM. “Se eu bebesse, era pior ainda. Chorava, sofria muito. Aí, no dia seguinte, menstruava e entendia o gatilho daquilo tudo”, compartilha. Outro problema era o fluxo intenso. Em certa ocasião, o sangue chegou a escorrer pela perna na frente de um casinho. “Parecia uma cachoeira, sujou o chão todo e o tênis do rapaz, fiquei muito sem graça.”

+ Leia também: A melhor primeira vez que alguém pode querer
+ Leia também: A importância do tesão

Decisão individual

Assim como aconteceu com Clara, mulheres levam em consideração o que as amigas falam ou as decisões alheias para tomar as próprias. “É um perfil que vejo no consultório, principalmente na geração millennial. Tem a ver com querer fazer parte de um grupo”, acredita a ginecologista e obstetra Carolina Ambrogini. De todo modo, a decisão de não menstruar ainda segue causando polêmica, já que muita gente vê isso como uma forma de desrespeitar um processo natural do corpo feminino. Mas ela alerta: “Não dá para ditar qual comportamento é certo. A verdade é que tem gente que sofre tanto com a menstruação que o melhor mesmo é interromper o ciclo”

“Resumir a mulher à sua relação com a menstruação é diminuir o feminino”

Bia Sant’Anna, 47 anos, é mais uma que seguiu a opinião das amigas e se arrependeu. Ela tem um histórico bom com métodos anticoncepcionais diversos. Usou pílula, DIU com hormônio… Em 2011, notou um aumento de coágulos no sangue menstrual. Ao fazer exames, foi identificada uma anemia forte e o médico sugeriu suspender a menstruação para aliviar o quadro. Aos 36 anos, com dois filhos, em meio à uma separação e tendo feito uma laqueadura, adotou a pílula de uso contínuo. “Foi a melhor coisa! Ali pensei: ‘nunca mais quero menstruar!’”, compartilha com entusiasmo. “Não sei por que nos sujeitamos a passar pela TPM.”  Mesmo feliz com essa decisão, posteriormente, Bia foi no embalo das amigas e interrompeu a pílula. Não gostou nada quando se viu às voltas com as cólicas e crises. “A gente já tem tanta coisa com o que se preocupar. Hoje, em vez de ouvir os outros, defendo a minha opinião”, ressalta. 

Recentemente, a filha de Bia menstruou pela primeira vez, aos 14 anos. A mãe ficou feliz que esse momento tenha demorado um pouco mais do que a média atual – que é de 12 anos – e tenta não ditar as decisões da filha. “Ela sabe que não menstruo e que tem liberdade para falar sobre isso, inclusive se optar pelo mesmo caminho. Por enquanto, vou ajudando ela a entender o corpo, porque tudo ainda é novidade”. 

Pra mim, fica a velha e boa lição: cada qual com seu cada um. E para finalizar, a ginecologista Carolina lembra que resumir a mulher à sua relação com a menstruação é diminuir o feminino. “Por muito tempo, nossos corpos ficaram sob domínio masculino – para algumas mulheres, essa ainda é uma verdade – e o maior poder é justamente decidir que é melhor para você sem pensar no outro e sem se sentir constrangida pelas opiniões contrárias”, defende. Por isso, Carolina procura conscientizar as mulheres dando todas informações que precisam para tomar suas decisões por conta própria. Afinal, o que funciona para uma não necessariamente funciona para todas. 

Mais lidas

Veja também